sábado, 7 de julho de 2018

Macroscópio – Chegou o calor (parece). Chegarão os fogos rurais?

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
A passagem de um ano sobre o trágico incêndio de Pedrógão Grande foi uma boa oportunidade para recordar o que então se passou, um pretexto para revisitar aquela região que só um drama sem nome conseguiu por no mapa, altura para fazer o balanço do que já foi feito e não foi feito para reconstruir casas, infraestruturas e vidas. Houve alguns bons trabalhos jornalísticos, e já darei conta de uma mão cheia deles, mas o foco deste Macroscópio é outro. É procurar responder ao desafio de saber se, agora que parece que o calor vai chegar, e que teremos um Verão mais parecido com que habitualmente são os nossos Verões, isso não trará consigo também os fogos rurais. Na verdade é um desafio sem resposta, como já verificarão. Mas é uma pergunta que serve de pretexto para recuperar alguns textos das últimas semanas que merecem ser conhecidos e lidos.
 
Deixem-me porém começar pela evocação da tragédia de Pedrógão, o que farei com referência a dois trabalhos multimédia (um deles um longo documentário) e a um conjunto de interessantes especiais que o Observador teve o cuidado de preparar e que podem ter passado despercebidos pois foram sendo publicados num tempo de febre do futebol. 
 
Começo pelo documentário, de quase hora e meia, um trabalho de Liliana Valente e Sibila Lind no Público: Eis que fazem novas todas as coisas. Sem a mesma ambição mas incluindo também um documentário, mas curto (cerca de meia hora) a outra referência multimédia é o trabalho de Joana Beleza e Christiana Martins no Expresso, A máquina do tempo – Pedrógão um ano depois
 
Quanto ao Observador e aos seus especiais, foram várias as abordagens, algumas mais visuais, outra mais no registo de reportagem. Ei-las: 
 
Feitas estas referências mínimas, a segunda parte desta newsletter terá um protagonista central: Tiago Oliveira, presidente da Estrutura de Missão para a Gestão dos Fogos Rurais. Técnico muito respeitado, nomeado depois da segunda grande tragédia do ano passado – a dos fogos de 15 de Outubro –, deu agora um conjunto de entrevistas que permitem perceber quer um pouco daquilo que tem andado a fazer, como sobretudo entender que lidamos com um problema que levará muitos anos a resolver, até porque a ocorrência de fogos florestais é natural na nossa geografia – o que não é natural são as dimensões que por vezes alcançam. 
 

Começo esta resenha pela mais extensa e completa das entrevistas a Tiago Oliveira, a que foi editada no Diário de Notícias: "O país continua muito vulnerável aos fogos. As pessoas muito expostas". Eis a passagem que sustenta o título: “O território continua muito exposto, a gestão florestal perdeu competitividade internacional e os matos acumulam-se dentro das florestas ou dos territórios, a agricultura continua numa lógica de abandono e a população não está ainda a mudar os seus comportamentos à velocidade que era desejável. E só lá conseguimos ir se houver uma abordagem sistémica, que mexa nas questões sociais, económicas e também técnicas, que envolva vários ministérios, que haja perseverança. Isto é um trabalho para gerações. Nós só estamos a ajudar a construir o prefácio.” Nesta conversa que percorre todas as frentes da prevenção e combate aos fogos rurais, Tiago Oliveira também aborda alguns mitos que têm vindo a ser alimentados a propósito do interior: “O nosso interior é o litoral da península ibérica. Se reconhecermos as fragilidades e debilidades do território, a falta de índices de fecundidade, a população envelhecida, não me parece ser possível imaginar voltar a fazer as pessoas regressar aos anos 60, em que viviam de uma forma muito difícil, no trabalho braçal muito intenso e em circunstâncias físicas e sociais e humanas muito precárias. Queremos recolonizar o país neste modelo agrário, numa economia agrícola não competitiva? Porque onde é que vai haver economia agrícola competitiva, é nos vales férteis ou nos sítios que são irrigados. O resto do país, que é 70%, tem que ter uma viabilidade florestal ou silvo pastoril.”
 
A entrevista ao Expresso é bastante mais curta, sendo que em “Continuamos a ter um território vulnerável”o responsável da Estrutura de Missão prevê que “Como há muita água no solo, podemos encarar o início do verão com relativa acalmia”. Porém é só o início, sendo que a reorganização do combate já está em curso: “A diretiva única, aprovada no momento certo, permite a flexibilidade dos recursos e todos os meios podem ser utilizados em múltiplas tarefas, como a fazer fogo controlado nalguns sítios. Fica a faltar a capacidade de planeamento e organização do ICNF, que tem pouquíssimos recursos e não consegue fazer as coisas à velocidade que gostaríamos. Isso é dramático.” Nessa entrevista também volta ao tema das fragilidades do nosso país: “As pessoas têm de meter na cabeça que o território continua vulnerável e os incêndios podem acontecer. Mas vamos estar preparados para reagir melhor, para que não aconteça o que aconteceu em 2017. Nunca vi tanta gente a trabalhar para isso. A questão é saber se o país valoriza suficientemente os seus recursos para, correndo bem esta e a próxima campanha de incêndios, continuar a suportar o que tem de ser feito.”
 
Finalmente a conversa que teve com a revista Visão foi organizada num texto corrido dividido em dez pontos, tantos quantos Os dez mandamentos do homem do fogo. De entre eles seleccionei o nono – “não perseguir moinhos de vento” – onde se procura contrariar o discurso dos incendiários com interesses ocultos que continua a dominar o debate sobre as causas dos fogos, algo que considera contraproducente e desvia as atenções das verdadeiras causas: "No calor do momento, todas as desculpas de natureza social, como o incendiarismo, ajudam a desresponsabilizar quem tem de fazer as coisas bem feitas", critica. "O homem da motorizada vermelha a lançar fogo? Isso eu nunca vi, e ando nisto há 20 anos.”
 
Para fazer companhia a estas três entrevista nada melhor do que uma quarta, esta com Henrique Pereira dos Santos, alguém que também combina várias competências e tem sido das vozes mais desassombradas e informadas sempre que se debate o tema dos fogos florestais. Realizada por Rita Carvalho e publicada no Ponto SJ (o portalde informação dos jesuítas em Portugal), essa conversa tem um título que agarra: “Em 2030, mais coisa menos coisa, vamos ter outro ano como 2017”. Exagero? Deixo-vos quatro destaques que ajudam a enquadrar aquela previsão, sendo que toda a argumentação é muito sólida: 
  • “Ninguém se propõe a resolver o problema dos sismos porque é uma idiotice, mas facilmente nos propomos a resolver o dos fogos, quando isso também é uma idiotice. O fogo, tal como o sismo, existirá sempre e está para além da nossa capacidade de o eliminar.”
  • “Temos uma situação geográfica muito particular: a velocidade de crescimento dos matos é muito grande porque os invernos são suaves e os verões razoavelmente húmidos. E temos uma característica meteorológica especial: uma dúzia de dias por ano em que as condições são muito favoráveis e onde se concentra 80% da área ardida”.
  • “A área ardida nos próximos oito anos funcionará como barreira, pois a redução dos combustíveis foi feita pelo fogo. São oito anos de calma, até o risco recomeçar a aumentar até aos 12 anos. Qualquer governo vai colher os frutos disso, dizendo: “Estou a tomar as medidas certas, verifiquem os resultados”. Em 2030, mais coisa menos coisa, vamos ter outro ano como este (2017).”
  • “A única contrapartida desta limpeza desenfreada é política. Se correr bem, foi resultado da ação do Governo. Se correr mal, pode dizer: “fizemos tudo o que era possível”. Em termos políticos corre sempre bem. Como a probabilidade de ocorrer uma desgraça como a de 2017 na vigência deste governo é baixa, funcionará até ao seguinte.”
 
Mas se Henrique Pereira dos Santos sabe do que fala, há quem fale e escreva mais para obter impacto mediático e prosseguir objectivos políticos. Desculpem a franqueza, mas é o que me ocorre dizer sobre o livro Como resgatar as florestas – Portugal em chamas, de João Camargo e Paulo Pimenta de Castro, que teve direito a uma pré-publicaçãono Público. Refira-se que João Camargo é genro de Louçã e a sua mulher é assessora parlamentar do BE, sendo que se apresenta como especialista em alterações climáticas do Instituto de Ciências Sociais apesar de aí ser apenas um estudante de doutoramento (com um título sugestivo: “Adaptação às Alterações Climáticas, nova metanarrativa para a Humanidade?”)
 
As teses destes dois autores foram durante criticadas em dois textos de opinião no mesmo Público, o primeiro de Manuel Carvalho (que será o novo director desse diário), O diabo travestiu-se de eucalipto– “Querer matar o eucalipto embrulhando-o nas provas de um crime pode fazer sentido nos devaneios idílicos dos que acreditam que a floresta dos nossos tempos é um mundo natural onde a humanidade redime os seus sonhos de pureza. Não é: mais de 90% das florestas do mundo são florestas de produção. Em Portugal temos área livre (32% do país são matos e incultos), temos ciência florestal, temos solos e climas, temos empresas de classe mundial e deitar tudo isto fora por causa das manias politicamente correctas ou dos devaneios de uma certa esquerda não é apenas uma estupidez: é, também, um atentado contra o país.” –, o segundo do já referido Henrique Pereira dos Santos, O Estado e o eucalipto– “A explicação para a expansão do eucalipto é simples: a fachada noroeste da Península Ibérica tem condições especialmente favoráveis à produção de eucalipto e, tão relevante como a primeira, o eucalipto tem um modelo de produção que é bastante mais adaptado ao regime de fogo que temos, isto é, permite cortes numa periodicidade em torno dos 12 anos (para menos) e o ciclo de fogo que temos anda pelos 12 a 15 anos. Acresce que um eucalipto ardido volta a rebentar, sem necessidade de investimento em plantações, para além de ter uma grande regeneração por semente, uma situação que é semelhante à dos carvalhos. É uma situação bem diferente do principal concorrente comercial do eucalipto, o pinheiro, esse sim, fortemente prejudicado pelo padrão de fogo que temos.”
 
Com os termómetros a aproximarem-se dos 30 graus no litoral e a passarem dos 30 no interior vamos poder ir à praia, mas creio que mesmo assim ainda não chegou o tempo dos avisos do IPMA, até porque as previsões de longo prazo para Julhoainda apontam para “precipitação com valores acima e temperatura com valores abaixo do normal”. No fundo a melhor garantia de que há menos condições para fogos catastróficos. Assim seja, e de resto tenham um bom fim-de-semana. 
 
 
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