É possível que todos já estejam cansados dessa espécie de “never ending story” que é a Caixa Geral de Depósitos. Na verdade é uma novela que deveria ter sido muito mais breve – e refiro-me apenas ao processo de apuramento de tudo o que correu mal no banco do Estado que é, também, o maior banco português. Essa condição recomendaria que tudo se esclarecesse com celeridade – mas essa condição também implicou que tudo tivesse uma enorme carga política e, sobretudo, lições políticas que nem todos parecem preparados para assumir. Por isso mesmo, e uma vez que amanhã, quinta-feira, Paulo Macedo será ouvido na Assembleia da República e, no final da semana passada, foi finalmente conhecida a auditoria levada a cabo ao que se passou naquela instituição entre 2000 e 2015, vale a pela fazer um ponto da situação. Para separar o trigo do joio e para que se possa ver alguma coisa no meio do nevoeiro que alguns gostariam que não se dissipasse.
Primeiro que tudo, alguma informação essencial, a começar pelo relatório final da auditoria da EY que foi entregue no Parlamento e que pode ser descarregado aqui. Neste relatório não deveriam estar visíveis os nomes dos clientes com grandes dívidas, mas a verdade é que o Parlamento acabou por divulgar sem querer versão da auditoria em que se podia ler informação escondida, como o Observador explicou. Fazendo-o foi-nos possível, por exemplo, ver como a dívida milionária de Berardo foi renegociada apesar de sinal vermelho da Direção de Risco , uma história contada em detalhe por Nuno Vinha, que em conjunto com Ana Suspiro também esteve a decifrar a auditoria para que se percebesse bem Como foram decididos os negócios mais ruinosos para o banco do Estado.
Um outro exercício bem interessante foi o realizado por Rafaela Burd Relvas no Eco, que em “Alguém mentiu” sobre a CGD? O que disseram os gestores e o que diz a auditoria, comparou o que disseram os antigos gestores quando foram ao Parlamento, onde “defenderam sempre a ideia de que todas as operações de concessão de crédito eram alvo de parecer pela direção de risco do banco público e de que as administrações respeitaram sempre estes pareceres” e aquilo que agora se sabe lendo este documento, isto é, que houve “várias dezenas de casos em que Caixa emprestou montantes avultados a grandes clientes sem respeitar as normas de concessão de crédito então em vigor, chegando mesmo a ignorar pareceres negativos da Direção Global de Risco.”
Num outro exercício de memória, Cristina Ferreira, do Público, foi ver por onde andavam alguns dos gestores envolvidos nas decisões mais polémicos, e concluiu que equipa de Santos Ferreira – a que tomou as mais controversas e ruinosas de todas as decisões – ainda hoje controla topo na banca: “As administrações do Banco de Portugal (BdP), da Associação Portuguesa de Bancos (APB) e dos três maiores bancos a operarem em Portugal são presididas e integradas por executivos que, entre 2004 e 2012, estiveram na Caixa Geral de Depósitos (CGD) e no BCP em equipas lideradas por Carlos Santos Ferreira. Um dos principais rostos visados no relatório de auditoria da EY por ter caucionado no banco público a aprovação de centenas de milhões de euros de créditos de favor, especulativos ou orientados politicamente, que acabaram por ter consequências milionárias no bolso dos contribuintes.”
Essas consequências em princípio já terminaram, mas regressando aos trabalhos que Ana Suspiro e Nuno Vinha têm vindo a editar no Observador, com base no que se pode extrair da auditoria, é assustador perceber, como escrevem hoje em Versão limpa da auditoria à Caixa. As 200 operações que provocaram perdas de 1.760 milhões que "A exposição da Caixa Geral de Depósitos aos créditos ruinosos que concedeu era, no final de 2015, de 4.926 milhões de euros, ou seja, superior ao total da recapitalização feita no banco público, que contou com 3.944 milhões de euros dos contribuintes."
Em contrapartida, se quiser olhar para a frente, pode acompanhar Edgar Caetano, que noutro Especial do Observador procura resposta para a pergunta: Milhões para a Caixa. Como é que se está a evitar que isto se repita? Saber se é suficiente fica ao seu julgamento, mas para o ajudar a pensar, deixo-lhe a seguir um conjunto de reflexões que tocam nalguns pontos pertinentes – relativos ao que se passou, ao que aprendemos e que ainda resistimos a aprender.
Primeira questão, a que todos deveríamos procurar responder e que foi colocada no Jornal de Negócios por Bruno Faria Lopes: Quem quer (mesmo) apurar responsáveis na Caixa? Eis o ponto: “A Caixa ilustra, como poucas instituições, a pequenez de uma certa elite que liga a política e a economia que se torna amiga da política. Há aqui pessoas sérias e competentes – não é tudo igual e conhecidos ou ex-colegas não são necessariamente cúmplices. Mas, sendo o incentivo de qualquer sistema deste tipo a autopreservação – e sendo a autopreservação, sua ou de um amigo, um incentivo natural em cada pessoa – só podemos estar cépticos quanto a esse famoso "apuramento de responsabilidades" com que se procura agora suavizar a pressão. Não é por acaso que estamos, em 2019, a falar de actos que aconteceram há mais de dez anos.”
Mas é necessário ser mais preciso, como foi Luís Rosa em Quem protegeu as mãos que roubaram a nossa Caixa?, recordando que de facto nem tudo foi igual naquele longo período de 2000 a 2015, bem pelo contrário: “Alguns dos principais contratos de crédito identificados na auditoria já eram conhecidos. Joe Berardo, Manuel Fino, La Seda/Artlant, a operação da CGD em Espanha, entre outros — tudo isso já era conhecido. A grande novidade da EY é o facto de ficar claro que uma boa parte desses créditos foram concedidos pelas administrações de Santos Ferreira e de Faria de Oliveira contra o parecer das direções de risco da Caixa. Ora esta grande novidade poderia ter sido conhecida (muito) mais cedo, se o PS, PCP e Bloco não tivessem protegido a CGD de um escrutínio intenso — pelo menos, tão intenso quanto aquele que ocorreu nos casos BPN e BES.”
É um ponto que Pedro Sousa Carvalho, do Eco, também sublinhou em Os ladrões fizeram o seu trabalho na Caixa, os polícias não, onde sublinhou: “É importante dizer que a auditoria da EY à gestão da CGD, por razões políticas e para agradar à esquerda e à direita, abrange um período longo, de 2000 a 2015. O que é injusto porque põe no mesmo saco todos os que por lá passaram: Armando Vara, Santos Ferreira, Carlos Costa, Faria de Oliveira, José de Matos, etc…. Um saco de porrada para que a opinião pública descarregue as frustrações depois dos 5 mil milhões de euros que tivemos de injetar no banco público (...). José de Matos, por exemplo, foi talvez um dos melhores presidentes da Caixa. Além de carregar o banco público às costas durante a crise, teve de limpar as imparidades que os outros fizeram.”
Também Paulo Ferreira, no mesmo Eco, em Cinco lições que já podemos aprender com a Caixa, destaca a importância de não cairmos na armadilha do “pântano do “são todos iguais”, onde todos podem afundar da mesma forma, nasce da falta de diligência no apuramento de responsabilidades concretas e individuais. Mas os que saem injustamente enlameadas nestes processos também têm são, muitas vezes, vítimas de si próprios. Porque perceberam o que se estava a passar e nada fizeram. Porque suspeitaram, mas preferiram ficar na dúvida. Porque preferiram não ter o incómodo – e pagar os custos, muitas vezes – de recusarem ser cúmplices passivos do assalto ao cofre forte. Porque dizer “não” e dar um murro na mesa é aborrecido, inconveniente, é mal visto internamente, vai gerar polémica, vai provocar inimizades.”
Insistir nesta diferenciação é importante, e aqui aproximamo-nos das responsabilidades da Assembleia da República e do trabalho que (não) foi feito pela primeira Comissão Parlamentar de Inquérito. Por isso agora, que vamos ter uma segunda CPI, convém ter presente a recomendação que Helena Garrido deixou no Observador, em Se os deputados quiserem, haverá culpados na CGD: “Com a informação disponível neste momento já é possível concluir que o período que gerou mais perdas para a CGD foi o que vai de 2005 a 2007, quando Carlos Santos Ferreira era presidente do banco e Armando Vara e Francisco Bandeira faziam parte da sua equipa. No relatório e contas de 2016 conclui-se que 39,5% das perdas apuradas nesse ano (imparidades) vieram de financiamentos concedidos entre 2005 e 2007.”
Há de facto um período durante o qual foi mais intensa a interferência política na direcção da Caixa e maiores os danos ao banco público por decisões de gestão que geraram enormes perdas. Foi um período político muito específico, de maioria absoluta do PS, como um primeiro-ministro muito particular, José Sócrates. Olhando para o esforço que foi feito na primeira Comissão Parlamentar de Inquérito para diluir os males da Caixa por um longo período de 15 anos e impedir o acesso aos documentos que só agora são conhecidos obrigam a reconhecer o ponto de vista de Hugo Soares, editado no Público. Em Uma Caixa sem surpresas o deputado do PSD recorda que “Nesta comissão parlamentar de inquérito, PS, BE e PCP deram as mãos e decidiram fazer uma barragem completa à descoberta da verdade. Mais: decidiram reduzir as audições ao mínimo, decidiram prescindir de documentos que os tribunais sucessivamente diziam que a CPI tinha direito a conhecer, decidiram votar contra a audição de depoentes essenciais (lembro que votaram contra a audição de Armando Vara!), decidiram contra a vontade de um presidente da comissão que se viu obrigado a demitir-se, decidiram impedir o uso de direitos potestativos, e, por fim, colocaram um fim extemporâneo à CPI.”
É neste quadro que certas vozes fazem diferença, e por isso regresso a Helena Garrido, pois ela fala-nos da carta que Ana Gomes escreveu à Comissão Europeia sobre a CGD, mas também sobre o Novo Banco – que nos vai continuar a exigir dinheiro –, considerando que “é uma boa fonte de inspiração de medidas que os deputados podem adoptar para que se faça o mínimo de justiça. Estudar a possibilidade de impedir o acesso a fundos comunitários por parte de grandes devedores que deixaram por pagar os seus créditos é uma hipótese que merecia ser avaliada.”
Este caminho ajudaria a contrariar uma velha tradição portuguesa, bem recordada por Luís-Aguiar Conraria no Público: Em Portugal, a culpa não morre solteira, vive solteira. Nesta crónica ele defende a ideia de que não bastará encontrar os responsáveis do passado, mas tratar de mudar procedimentos para prevenir repetições de erros no futuro, deixando uma importante pista: “Instituições mais transparentes, com maior lisura de procedimentos, onde a isenção é uma regra contribuem para criar eleitores exigentes e mais capazes de sacrificar vantagens de curto prazo em nome de políticas cujos efeitos benéficos são diferidos no tempo. Este parágrafo parece idealista, mas está alicerçado em dados bastante sólidos.”
Isto é tão ou mais importante se nos recordarmos que nos processos muito pouco transparentes do passado o que devia ser gestão bancária foi mais gestão política, algo que Ricardo Arroja recordou justamente no Eco em O problema do banco público: “É hoje sobejamente conhecido o papel que a CGD teve no financiamento de projectos-bandeira do poder político, em particular durante a governação PS antes da crise de 2008. (...) Daqui resulta que as perdas do banco resultaram em boa medida da política económica e industrial do governo PS, para a qual a CGD foi na altura instrumentalizada. O universo de pessoas sujeitas a escrutínio não se resume, portanto, aos gestores do banco. Ele deve ser alargado aos políticos que eventualmente terão instruído os gestores no sentido de votar determinados financiamentos, porventura, em condições negligentes ou dolosas. É aqui que reside o pecado capital desta estória, na ligação tóxica entre a política e a banca. Sobretudo quando o banco é público e está ali à mão de semear.”
Ora o banco ser público e a maioria defender que deve continuar a ser público coloca problemas que, por este passado não podem ser ignorados. É por isso que, de certa forma, João Vieira Pereira caminha num difícil equilíbrio na sua crónica no Expresso A Caixa do crime onde, por um lado, condena “A forma como foi usado o dinheiro do público para colocar em prática uma estratégia de domínio por alguns acionistas do BCP, ou como foram aprovados certos créditos por imposição política”, mas por outro considera que o Estado não pode tirar a mão da Caixa por causa do BCE e dos espanhóis: “O BCE e a Europa têm uma estratégia clara para a banca europeia. E Portugal não faz parte dessa estratégia. Para Frankfurt e Bruxelas, quando se trata de mercado bancário, nós somos parte de Espanha. A Caixa é o único banco com dimensão que ainda é português. Todos os outros são dominados por capital estrangeiro. Garantir um banco público é obrigatório. Mas para isso é preciso garantir que a Caixa está imune aos criminosos do passado.”
Gostaria de estar mais convencido de que a Caixa está realmente imune aos criminosos do passado porque o país aprendeu a lição – o país como um todo, não apenas o que se mostra tonitruante nas audições de uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Mas Portugal é Portugal, e por isso não sei – não sei mesmo – se já aprendemos o suficiente, pois não deixar de notar o que o meu colega Miguel Pinheiro notou, e destacou, aqui no Observador em A CGD e o palácio de Berardo (com Goucha lá dentro): “Oito dias depois de ser conhecida a auditoria à Caixa, Berardo, um dos grandes devedores do banco, mostrou um dos seus palácios a Manuel Luís Goucha. Como sabem todos os patriotas, Portugal é assim.”
Esta última nota é porventura aquela que justifica todas as anteriores, a preocupação que teima em manter-se. Lamento que seja com ela que fecho o Macroscópio de hoje, mas tinha de ser. Resta-me apenas desejar-vos boas leituras e bom descanso.
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