quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Lanterna no horror talibã

 

  • Péricles Capanema

Amputação das mãos por crime de furto. Entre 1996 e 2001 o talibã governou o Afeganistão (ou o Emirado Islâmico do Afeganistão, nome oficial que voltou a valer): foram comuns execuções públicas, amputação de mãos por furto, massacre de etnias rivais, aplicação cruel e generalizada da sharia, a lei muçulmana. Em decorrência, isolamento internacional, só três países reconheciam o regime — Arábia Saudita, Paquistão, Emirados Árabes Unidos. Os talibãs continuariam encarapitados no poder, sabe lá Deus até quando, não fosse a invasão norte-americana do país. Em agosto de 2021, reconquistou o poder militarmente. É totalmente ignoto quanto durará sua mão no leme do país, para desgraça certa dos afegãos e horror duvidoso do mundo. A propósito, um dos fundadores do talibã, o mulá Nooruddin Turati [foto abaixo], declarou há pouco para a Associated Press que as execuções e as amputações de mãos voltarão a fazer parte do cotidiano: “Todos nos criticaram pelas punições no estádio, mas nunca dissemos nada sobre suas leis e punições. Ninguém vai nos dizer quais devem ser nossas leis. Seguiremos o Islã e faremos nossas leis sobre o Alcorão. Cortar as mãos é muito necessário para a segurança”.

Apoios de importância. Um movimento sem apoio popular expressivo [ou indiferença generalizada] não permaneceria cinco anos no poder nem o reconquistaria, quase vinte anos depois, à frente de 70 mil homens armados. Qual o segredo da força talibã? É o que em parte pretendo mostrar.

Gigantesca população rural empobrecida e iletrada. O Afeganistão, país montanhoso, quase 650 mil quilômetros quadrados, tem população na casa de 32 milhões de habitantes, dos quais aproximadamente 4,6 milhões vivem em Cabul. Três quartos dos habitantes (por volta de 75%) habita a zona rural (Brasil, menos de 15%). Ali predomina agricultura de subsistência, pouca ou nenhuma possibilidade de crescer na vida, escassa ajuda governamental, quando existe, juventude largamente analfabeta funcional (ou analfabeta inteira).

Nacionalismo religioso. Na zona rural se recruta a maioria dos talibãs; em geral da etnia pashtun, aproximadamente 50% da população, o que acentua a nota nacionalista do movimento. Jovens em torno de 20 anos, fuzil na mão, que repetem em árabe trechos do Alcorão incompreensíveis para eles, sentem realização pessoal e sentido na vida ao participar da guerra por Alá (jihad). Válvula de escape, são alguém. Sua presença reforça a de fundamentalismo islâmico, cujas raízes estão nas madraças (escolas muçulmanas, talibã significa estudante) de orientação salafista, em grande parte financiadas com dinheiro saudita. São poucos na juventude rural os que têm condições de se casar antes dos 30 anos (e até depois), em ambiente que desvaloriza fortemente o adulto sem mulher e filhos. É generalizada a pedofilia entre homens adultos e meninos.

Papoula, ópio e heroína. Boa parte dos agricultores afegãos cultiva papoula, lindas flores grandes, ora brancas, às vezes rosas, ainda violáceas ou vermelhas; planta que tem propriedades oleaginosas, alimentares e medicinais. Não é pela beleza, pouca coisa é utilizada em fármacos, menos ainda se destina a adorno doméstico. O foco do interesse é o látex, rico em substâncias tóxicas, com o qual se produzem o ópio e a heroína. O país é o maior produtor mundial de ópio e heroína, 80% do total, e a papoula é a mais rendosa fonte de renda para os agricultores. Em finais de 2020, suas plantações cobriam cerca de 240 mil hectares. Nos últimos anos, os talibãs, nas áreas controladas por eles, cobravam taxa pela produção de ópio e heroína. Nada cobravam pela simples venda da papoula. No primeiro governo talibã esse comércio continuou. Certamente assim continuará a partir de agora.

Vida cotidiana no campo e na cidade. Nos vinte anos de governo sob ocupação dos Estados Unidos quase nada mudou na vida do campo, em especial para as mulheres. A situação assim permanecerá, tudo o indica. E ali, em especial nas áreas habitadas pela etnia pashtun, não existe oposição forte à administração talibã. A perda dos direitos das mulheres impacta pouco a população feminina no campo; a vida delas não ficou diferente. E isto em um contexto em que 90% das mulheres afegãs sofrem abusos físicos e sexuais, abusos psicológicos e casamentos forçados; culpados habituais, a parentela. Convém recordar, a renda per capita do Afeganistão é de 500 dólares por ano, em torno de 130 vezes menor que a dos Estados Unidos. A expectativa de vida, 43 anos (81 anos a da Alemanha). E o país vive em estado de guerra civil mais ou menos ininterrupta desde a década de 1970. O fim da guerra já traz alívio. Tudo somado, é o terceiro país em número de refugiados do mundo, pouco mais de 2,6 milhões de pessoas, atrás apenas da Síria, sujeita ao terror da guerra civil contínua, e da Venezuela, que padece a hediondez sem fim do chavismo, o socialismo do século XXI — aliás, regime xodó do PT e de boa parte da esquerda brasileira. De outro modo, as necessidades prementes da vida tomam praticamente toda a atenção da grossa maioria dos afegãos. De imediato, querem em Cabul um governo que minore seus sofrimentos e preocupações, melhore chances de sobrevivência. Ou, pelo menos, que não as piore.

O apoio externo. O talibã recebeu de 1996 muito dinheiro proveniente dos países árabes do Golfo; o governo paquistanês também ajudava. Agora, tem um aliado poderoso: o governo chinês. Da Rússia não virá oposição.

Manter vivo o horror, providência urgente. Mais, crescer na rejeição, dever moral, estaqueamento para futura solução efetiva. Haverá perenidade no inferno afegão se o choque inicial nos países livres for gradualmente substituído pela indiferença e esquecimento diante do tormento contínuo, à maneira de Sísifo, dos sequelados do fundamentalismo islâmico. Pelo contrário, a tortura certamente será efêmera se crescerem na opinião ocidental a solidariedade e a compaixão cristã. Aqui está a atitude correta e sensata, inconformidade de proporções amazônicas. Ela inundará todos os ambientes. Só assim se dissipará a perspectiva apocalíptica da tortura perene de um país martirizado. O Afeganistão então disporá de recursos para trilhar via diferente, distanciando-se de suplícios dantescos, rumo aos quais agora é arrastado por forças poderosas, internas e externas.

ABIM

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