Hoje vamos falar de uma área do conhecimento que poucos se calhar ouviram falar: “meta-ciência”. Apesar de soar um pouco estranho, a meta-ciência (ou a ciência da ciência) procura aumentar a qualidade da investigação científica enquanto reduz o “desperdício”. E que “desperdício” é esse? É toda a investigação que não consegue ser aplicada com sucesso ao dia a dia porque os processos que levaram aos resultados científicos não foram os mais correctos. E há muitas formas desses processos serem feitos de forma incorrecta. A escolha dos resultados que se publicam, por exemplo. Em alguns casos, quando os cientistas publicam os seus resultados em revistas da especialidade há a tendência de deixar de fora os chamados resultados negativos, ou seja, aqueles resultados que não deram diferenças estatisticamente significativas entre os grupos experimentais. Perdem-se assim dados importantes que seriam essenciais para a análise dos resultados por terceiros. Ou, numa desvirtuação do processo científico, desenvolver a hipótese experimental no final do projecto, e não no início, como deveria ser feita. Ou ainda, a escolha de testes estatísticos que não são os adequados à amostra (ou amostras) que existem. Muitas outras incorrecções poderiam ser aqui descritas, mas o resultado final seria sempre o mesmo. Um trabalho de investigação que tem problemas na sua concepção e que como tal leva a dificuldades na sua repetição por outros grupos ou mesmo a que o mesmo consiga resultar em algo tangível para a nossa sociedade, seja um novo medicamento ou uma nova tecnologia.
Um outro problema que a Ciência enfrenta é o facto de muitas vezes não ser aberta, isto é, não se ter acesso aos dados originais que foram obtidos pelos cientistas. Apenas uma pequena percentagem de investigadores carrega os dados obtidos no decurso de um trabalho científico em repositórios abertos, para que possam ser re-analisados por outros. Isto é um problema porque não é fácil assim averiguar a qualidade dos mesmos. Ou, ainda noutro contexto, muitas publicações científicas, para serem visualizadas, requerem o pagamento de taxas às revistas científicas onde são publicadas. Isto impede o fácil aberto aos trabalhos publicados. Uma percentagem ainda pequena deposita os manuscritos científicos em repositórios abertos e gratuitos para que possam ser consultados e analisados pelos seus pares.
É preciso assim conseguir “certificar” a ciência que se faz como aberta, reproduzível, e de confiança. É este o objectivo da meta-ciência, aumentar a qualidade e o impacto da investigação científica, reduzindo o gasto em ciência sem qualidade. O conceito envolve a optimização interactiva de elementos-chave do processo científico, como métodos, produção de relatórios e sua disseminação, e reprodutibilidade do que foi feito e reportado. Isso inclui a optimização da abertura dos dados científicos (por exemplo, partilha de dados, algoritmos, protocolos e materiais), a melhoria do uso de métodos (estatísticos, laboratoriais, computacionais e clínicos) e a criação de uma cultura de avaliação e recompensa da investigação que os cientistas fazem, alinhada com a responsabilidade, confiabilidade e utilidade dessa mesma investigação, com um impacto significativo nas nossas vidas.
Ao fim ao cabo, a Ciência modela o mundo que conhecemos. A Ciência salva vidas, como se pode ver na recente epidemia de COVID-19 e em outras epidemias, que se calhar já nem nos lembramos do nome. A Ciência igualmente pode servir para servir de justificação para decisões políticas, muitas vezes sendo distorcida para servir esses mesmos interesses. Nestes casos, teremos de ter a certeza de que a Ciência é feita da maneira correcta e aberta possível para que realmente cada Euro investido em investigação científica tenha de facto impacto na Sociedade.
É na sequência do descrito acima que a Universidade de Coimbra coordena actualmente o projecto Excelscior, um projecto financiado pela Comissão Europeia. O principal objetivo estratégico deste projecto é promover a reprodutibilidade e a interdisciplinaridade da investigação, tornando a ciência mais eficiente por meio do melhor uso dos dados experimentais, mais confiável por meio de uma melhor verificação e, em última instância, mais transparente (aberta) e responsiva às necessidades da sociedade, em total conformidade com as políticas das melhores práticas de Ciência Aberta incorporada ao processo científico. Para por em prática o projecto Excelscior na Universidade de Coimbra, convidámos o Prof. John P.A. Ioannidis, Professor de Medicina, de Epidemiologia e Saúde Populacional e, de Estatística e Ciência de Dados Biomédicos, na Universidade de Stanford, Califórnia, EUA. O Prof. Ioannidis alcançou reconhecimento mundial como principal especialista em Meta-Ciência, tendo co-fundado os centros METRICS (um centro altamente influente e interdisciplinar na Universidade de Stanford) e METRIC-B (para o qual o Prof. Ioannidis recebeu uma prestigiosa bolsa Einstein no Instituto de Saúde de Berlim). O seu trabalho até à data recebeu o mais alto reconhecimento internacional e transformou a ciência em biomedicina e em várias outras áreas. Atualmente, ele está entre os dez cientistas mais citados do mundo.
Estamos certos que a Meta-Ciência, uma área em crescimento, vai transformar para melhor a Ciência que se faz em Portugal e garantir que cada vez mais a investigação científica contribui para a melhoria do nosso dia-a-dia e para fazer diferença nas nossas vidas.
O projeto EXCELSCIOR recebeu financiamento do Horizonte Europa da UE sob o contrato de financiamento nº 101087416. No entanto, as opiniões expressas neste artigo são apenas autor e não refletem necessariamente as da União Europeia ou da Direção-Geral de Investigação e Inovação. Nem a União Europeia nem a autoridade financiadora podem ser responsabilizados por elas.
Paulo J. Oliveira
Investigador Principal com Agregação e Coordenador do projecto Excelscior
CNC – Centro de Neurociências e Biologia Celular, CIBB, Universidade de Coimbra
Fonte: APImprensa
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