Há
uma ideia popular de que o filósofo é um tipo que sabe falar eloquentemente e
que pensa muito sobre a vida. A famosa estátua do pensador de Auguste Rodin
transmite essa imagem, a do sujeito que está a pensar. Mas nunca se sabe o que
está o pensador de Rodin a pensar. Bem, é uma estátua e as estátuas não pensam.
Mas a forma como olhamos para a estátua é também a forma como olhamos para
muitos supostos filósofos. São tipos que pensam, que pensam tão profundamente
que nunca sabemos bem o que estão na verdade a pensar (se é que estão a pensar
coisa alguma). Deve ser por causa disto que nas escolas secundárias por onde
passo, quando estou cheio de sono e sem paciência para conversar ou conviver,
há sempre alguém que deixa escapar o comentário: “Então, o filósofo está a
pensar? Não penses demasiado”.
Nesses
momentos não estou realmente a pensar, pelo menos a pensar filosoficamente, mas
estes comentários fazem-me questionar se um tipo a pensar é parecido com um
tipo cheio de sono. Segundo essa imagem popular, até é. Tal como um cientista é
um tipo de bata branca, óculos muito graduados, cabelos no ar e língua de fora,
um filósofo é um tipo com ar sonolento. Claro que o ar de sono numa pessoa que
não estudou filosofia não passa disso mesmo, ar de sono. Mas o ar de sono em
alguém que estudou filosofia já não é ar de sono, é ar de pensador solitário e
afastado das amarras da pobre realidade. E claro que isto é idiota. Mas é um
facto que muitos filósofos fazem desta idiotice um modo de cuidar da sua imagem
pública. Ainda me lembro do meu ex-professor de universidade a quem passei umas
cassetes com uns discos gravados e quando o questionei se tinha gostado dos
discos respondeu (com ar de sono): “Sabe, não sei pois a minha percepção da
realidade parece-me transfigurada nos últimos tempos e sou incapaz de formar
uma opinião de gosto”.
Já
na altura estas palavras a nada me souberam e postulei a hipótese de que aquela
atitude não passava de gabarolice. Como saberia aquele professor qual o momento
em que a sua percepção não estava perturbada ao ponto de lhe possibilitar uma
opinião de gosto? Se estivermos com gripe a nossa disposição para ter uma opinião
gustativa fica realmente muito perturbada.
Não
posso dizer que também não me aproveitei um pouco desse snobismo filosófico.
Deu-me jeito para disfarçar alguma timidez com as raparigas. Ou bebia uns
copos, ou exibia-me como um tipo sério, profundo e complexo, com uma capacidade
de amar platónica e com uma extraordinária sensibilidade de análise da
realidade e da vida. E acreditava naquilo, na altura. Mais tarde li em livros
que estas coisas não passam de snobismo e eu sabia-o bem, mas não me dava jeito
admiti-lo. Não posso jurar que os meus professores snobes o fossem somente para
impressionar as raparigas, mas o snobismo filosófico serve para impressionar
pessoas diferentes em circunstâncias diferentes.
Por
exemplo, na mais simples tarefa da vida social, o snobismo filosófico pode
servir para nos prestarem mais consideração no atendimento público. As pessoas
apercebem-se que aquele tipo de ar sonolento é inteligente. E o snobismo
filosófico serve também para que considerem o snobe um tipo culto, quando na
verdade nem o é assim tanto. Fica sempre bem lançar, a meio de uma conversa
qualquer (o snobe não discute nem argumenta) uma qualquer citação de cor, que
se aplica como se encaixasse perfeitamente na situação. “Como disse…” — e
pimba, cita-se um autor que toda a gente respeita mas ninguém realmente lê.
Esta atitude é capaz de impressionar os mais incautos.
Mas
o snobe tem os seus inimigos declarados. Entre eles encontramos aqueles que têm
a mania que são muito práticos e que não estão para aturar as metafísicas
delirantes. Para esses, os snobes filosóficos tiram mestrados e doutoramentos,
dizem ler os livros no original e ostentam um ar altivo e sempre interrogativo.
Das situações mais cómicas é encontrar um snobe filosófico e um indivíduo que
tenha a mania de ser muito prático. É que nem um nem outro são muito práticos e
em regra a confusão é quase certa.
O
snobe não lê livros introdutórios. Esses são, para os snobes, muito básicos,
elementares. Fala deles como quem fala de um qualquer livro de crianças, ou
daqueles que toda a gente lê só porque são muito acessíveis. O snobe despreza o
conhecimento comum e a divulgação do saber e isto porque essa divulgação ameaça
precisamente a posição pseudo-intelectual e pseudo-sapiente do snobe.
Um
dos aspectos curiosos que os snobes têm quando alguém discorda deles é atirarem
logo à cara do seu interlocutor que essa questão não é simples, que se trata de
uma questão muito mais profunda e que exige uma investigação séria. O snobe
afirma que investiga tudo mas tem o hábito de passar mais tempo a falar do que
a investigar, e passa mais tempo a citar de cor autores do que propriamente a
discutir problemas. O snobe é um exibicionista do conhecimento dos outros, uma
espécie de vendedor de colchões a fazer permanentemente montra do seu produto
sem compreender muito bem de que é feito esse produto.
Mas
onde encontrar os snobes? Os snobes começam por ser adeptos ferrenhos do
carreirismo académico e por isso as universidades são viveiros de snobes a
tirarem mestrados, seminários de matérias esotéricas e doutoramentos. Raramente
um snobe discorda de outro snobe. Falam como iguais, como elementos da mesma
tribo. O que distingue os snobes das outras pessoas é o grau oferecido pelas
instituições académicas. E raramente um snobe admite que falha. Em regra o
snobe também sofre da mesma injustiça que Jesus Cristo e arrasta uma cruz quase
do mesmo tamanho (ainda que a cruz dos snobes seja feita de esferovite).
Os
snobes também gostam de falar “na minha tese”, “na minha investigação”, “na
conferência que dei e que toda a gente aplaudiu”. Normalmente os snobes não
escrevem livros. O que fazem é publicar na revista dirigida por outro snobe,
que só os snobes lêem. O perigo de um snobe publicar um livro a expor as suas
ideias (que como disse normalmente são ideias dos outros repetidas à exaustão),
é o de ser lido por quem não é snobe, pelos filósofos e intelectuais simples
mas sérios. Isso seria a morte do artista, razão pela qual normalmente os
snobes odeiam os filósofos sérios que publicam livros sérios, que podem ser
lidos por qualquer pessoa que por eles se interesse.
Na
Crítica está disponível um pequeno livro que retracta bem o snobismo
filosófico. Publicado há uns anos pela Gradiva/Jornal Público e traduzido por
Desidério Murcho, chama-se Especialista Instantâneo em Filosofia e o autor é
Jim Hankinson.
Rolando
Almeida
Escola
Básica e Secundária Gonçalves Zarco, Madeira
31
de Outubro de 2009 ⋅
Opinião
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