Ninguém quer ser vítima, morremos todos de vergonha.
Morremos de vergonha que se saiba que os nossos pais discutem constantemente até ao ponto de se agredirem. Morremos de vergonha que se saiba que os nossos pais nos batem. Morremos de vergonha que se saiba que o nosso namorado nos deu uma estalada, uma vez… Morremos de vergonha que se saiba que o nosso marido nos bate, muitas vezes. Morremos de vergonha que se saiba do pior: o pai dos nossos filhos fez o impensável aos nossos filhos.
Ninguém quer ser vítima.
Nem eu.
Houve um momento da minha vida, já há vários anos, em que precisei de fazer psicoterapia. O primeiro psicólogo que consultei comportou-se de modo deontologicamente incorreto, num momento em que me encontrava especialmente fragilizada. Não foi muito grave, e assim que percebi que o comportamento do psicólogo não se adequava ao que deveria ser, ao que eu precisava, mudei de terapeuta. Mas não fiz queixa. Há uns meses, em conversa, contei o que se tinha passado a uma psicóloga. Ficou escandalizada por eu não ter feito queixa e pediu-me, por favor, para me queixar. Explicou-me: “Esse psicólogo continua a dar consultas! E se não foi só contigo?”. Tem toda a razão. Mas eu não fiz, nem vou fazer queixa.
Porquê?
Ninguém quer ser vítima e morremos todos de vergonha.
Não fiz queixa porque estava fragilizada e confusa. Estava a recuperar de uma depressão pós-parto e não tinha espaço emocional para lidar com uma queixa, de qualquer natureza. Queria seguir em frente. Ficar melhor. Estava com uma depressão e quem é que acredita numa mulher deprimida? Tinha uma ou duas mensagens no telemóvel que atestavam alguma coisa, mas foi preciso ter outras opiniões para me confirmarem que tinha decidido bem ao mudar de terapeuta. Não confiava na minha avaliação, no meu juízo. Foi por puro instinto que me afastei. Se tivesse racionalizado a situação, teria mantido o terapeuta. Em meu prejuízo e sofrimento. Não fiz queixa, e não vou fazer queixa.
Porquê?
Morremos todos de vergonha enquanto desprezamos e duvidamos das vítimas.
Não vou fazer queixa, e estou errada. Durante estes anos todos, duvidei sempre da minha avaliação. Tenho a certeza que fiz bem ao mudar de terapeuta. Mas será que o comportamento do psicólogo em questão foi assim tão censurável? Será que não sou eu que estou a ser especialmente sensível e mesquinha? Afinal, não foi mesmo nada de grave, não foi nenhum crime. E eu estava deprimida! E será que não houve culpa minha, também? Não terei feito alguma coisa que explique a violação dos deveres deontológicos por parte do meu psicólogo? O problema não estará em mim? Estas são as razões pelas quais não vou fazer queixa. Porque a sociedade ensinou-me a duvidar da minha avaliação. Sou mulher. Estava deprimida. O Senhor Dr. terapeuta é psicólogo formado. Ele saberá melhor o que é compatível com a deontologia. E quem sou eu para prejudicar a carreira de outra pessoa assim do nada, assim por quase nada? Tinha um Mestrado quando isto sucedeu. Sou doutorada em Direito Penal, hoje. Não fiz queixa, não vou fazer queixa. Não quero revisitar aquele momento de fragilidade e traição por parte de quem tinha o dever de utilizar todos os seus conhecimentos e a sua especial posição de influência para me ajudar a ultrapassar a depressão. Não quero relembrar-me desses momentos. E estou errada. É a psicóloga escandalizada que tem razão.
Se calhar, devíamos morrer todos de vergonha.
Morremos de vergonha que se saiba que os nossos pais não podem pagar a visita de estudo. Morremos de vergonha das roupas usadas. Morremos de vergonha que se saiba que aquela pessoa com quem saímos nos violou. Morremos de vergonha que se saiba que não temos dinheiro para irmos de férias. Morremos de vergonha que se saiba que estamos desempregadas. Morremos de vergonha que descubram que o nosso marido nos traía. Morremos de vergonha que se saiba que estamos deprimidas. Morremos de vergonha que se saiba que somos frágeis. Morremos de vergonha de ter vergonha. Não porque tenhamos feita algo de errado. Não porque a falta seja nossa. Apenas porque a nossa situação não corresponde ao que as expectativas e as convenções sociais ditam que é o bom e o desejável: não alcançámos a meta a atingir. Falhámos a meta quando nascemos daqueles pais. Falhámos a meta quando casámos com aquela pessoa. Falhámos a meta quando passámos naquela rua. Falhámos a meta quando escolhemos aquele curso. Falhámos, claro, a culpa é também nossa, e por isso vamos morrendo de vergonha, em silêncio, cheias de medo que nos descubram as falhas e nos espetem os dedos em repúdio social.
Enquanto isso, há quem morra mesmo, por vergonha.
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