Acredito que a maioria de vocês estará familiarizada com o nome de Miguel Esteves Cardoso. Seja uma coisa só de nome, porque foi aquele escritor que tinha um palavrão num livro, ou porque o leem no jornal Público, a verdade é que a maioria das pessoas consegue associar o nome à profissão, sabe que é um homem de letras. Que é um homem de palavras.
Falo-vos hoje de uma crónica em particular, escrita para o jornal, e que se intitula de “Calem-se”. Assim. Seco, duro. Poderíamos estar perante um apelo a que se calassem as mentes que não percebem alguns direitos fundamentais de igualdade, poderíamos pedir que se calassem as mentes tacanhas que vêm com discursos de terceira acerca da ajuda a refugiados/as, poderíamos pedir que se calassem os sons de todas as armas disparadas. Mas não. A crónica de MEC, que apela ao silêncio, pede apenas e só para se silenciarem aqueles/as que dizem “portugueses e portuguesas”.
A crónica tem em si uma argumentação que poderá ser, do ponto de vista linguístico, válida. Até certo ponto. A verdade é que aprendemos, na escola, que quando se fala de um plural misto, a palavra a utilizar deverá ser proferida no masculino. Mas é verdade também que a língua portuguesa, riquíssima, permite-nos fazer a distinção entre o sexo masculino e feminino. Outras línguas haverá em que tal não acontece. Pessoalmente, considero estas línguas mais justas para todos e todas. Não há género nas palavras, não há, como o autor diz, “graus”, não há pessoas de primeira e de segunda.
Obviamente que a evolução da língua não foi um exercício ponderado e refletido nas questões do feminismo. Obviamente também, que quando alguém pronuncia “portugueses”, tal como quando alguém pronuncia “eles”, não está automaticamente e deliberadamente a tentar mostrar a supremacia dos machos. Não é isso que está em causa. Em causa está fazer com que todas as pessoas se sintam iguais nos discursos. Porque um dos objetivos dos discursos é mesmo esse: que as pessoas sintam que é para elas.
Não vou ser hipócrita: também eu me refiro muitas vezes “aos portugueses”, tal como “aos amigos”. Mas daí a defender que o comportamento inverso é errado, vai um pequeno grande passo. Um pouco como o exercício físico – eu, preguiçosa nata, não mexo o rabo do sofá para ir ao ginásio ou para dar a volta ao quarteirão, o que não significa que ache errado que as outras pessoas o façam.
Tenho a certeza que o MEC, quando vai à padaria, não diz que a dona Filomena é “um padeiro” excecional. Tal como acredito que se sentiria desconfortável, ou desconsiderado, se no meio de um grupo maioritariamente de mulheres, onde estivesse inserido, se dirigissem apenas “às portuguesas”. Os substantivos são para ser utilizados, as mulheres devem ser tão consideradas como os homens e, portanto, “portuguesas e portugueses” é tão válido de se utilizar como “homens e mulheres” ou “cães e gatos”. A diversidade da nossa língua permite-nos alcançar um bocadinho da diversidade das nossas pessoas. Eu, quando estiver com o rabo alapado no sofá, sentirei sempre uma pontinha de orgulho quando ouvir alguém a dirigir-se a mim, mulher, e não a um ser amorfo que se imiscui no meio dos homens. Sentir-me-ei sempre culpada quando eu não o fizer. Para muitos/as, serão apenas palavras e preciosismos. Para outros/as, é uma questão de igualdade. E repito: pela igualdade, não nos calaremos.
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