A pergunta tem de ser feita, sobretudo hoje e agora, depois da vitória substantiva que o milionário e animador televisivo teve nas primárias republicanas desta terça-feira. Como o Observador escreveu, Not over yet, mas quase. Trump e Hillary triunfam. Se a vitória da antiga primeira-dama corresponde às expectativas como que se iniciou a actual corrida presidencial nos Estados Unidos, que muitos anteviam como um passeio para Hillary (não está a ser), o que verdadeiramente desconcerta é não se ver forma de parar Donald Trump. É no fundo a mesma pergunta que já colocámos há uns dias no Observador - Alguém pode impedir Trump de chegar à Casa Branca? -, mas uma pergunta que faz cada vez mais sentido. Porque já são muitos os que dizem que os dirigentes republicanos já não parecem ter forma de parar a sua ascensão.
Há mesmo desespero entre as lideranças estabelecidas, e não só, algo de que demos conta em Os republicanos que põem Reagan às voltas na campa. Os “republicanos” a que aqui nos referíamos eram em primeiro lugar Donald Trump, mas também o segundo homem na corrida, o senador pelo Texas, Ted Cruz. Nesse artigo recolhiam-se diversos testemunhos, como o do historiador Lewis L. Gould, professor emérito da Universidade do Texas e autor do livro Grand Old Party — A History Of The Republicans, que considerou que “Isto não é a campanha com mais insultos do Partido Republicano. Isto é a campanha com mais insultos de sempre, independentemente do partido. Nunca tínhamos visto nada assim”. Mais: “Isto é inédito na política norte-americana. Nós costumávamos pensar que os candidatos presidenciais eram figuras dignas, mas isso não se vê em Trump. Ele tem uma boca muito, muito suja. O instinto dele é insultar os outros. E os outros seguem-lhe o exemplo”,
Mas talvez a sua resposta mais surpreende foi à nossa pergunta sobre se, nestas primárias de 2016, Ronald Reagan teria alguma hipótese de ser o escolhido pelos republicanos: “Nem pensar!”, responde o historiador, com a voz a soar de forma estridente no telefone. “Ele recusava-se a trocar insultos. Isso é o que fez Kasich, e isso serviu-lhe de quê? Os tempos que o Partido Republicano atravessa demonstram que não há espaço para negociação, às vezes quase que não há espaço para a razão, no sentido filosófico. Se Reagan concorresse hoje em dia, seria varrido por Trump!”
Importa pois perceber este fenómeno, algo que no Observador já tentámos num Explicador - Quem é, afinal, Donald Trump? – mas que é um trabalho sempre incompleto. Bret Stephens, colunista residente do Wall Street Journal, equipara-o a alguns populistas iliberais que têm vindo a chegar ao poder por meios democráticos. Escreve ele em Staring at the Conservative Gutterque “Mr. Trump exemplifies a new political wave sweeping the globe—leaders coming to power through democratic means while avowing illiberal ends. Hungary’s Viktor Orban is another case in point, as is Turkey’s Recep Tayyip Erdogan. A Trump presidency—neutral between dictatorships and democracies, opposed to free trade, skeptical of traditional U.S. defense alliances, hostile to immigration—would mark the collapse of the entire architecture of the U.S.-led post-World War II global order. We’d be back to the 1930s, this time with an America Firster firmly in charge.”
Há um traço comum entre estes líderes: o seu autoritarismo. É um autoritarismo que muitos também vêem em Trump, um autoritarismo que até pode estar a ajudar ao seu sucesso, como se explicava America craves a strongman. Donald Trump is it, um artigo do Telegraph onde se citavam especialistas em sondagens que têm estudado as motivações daqueles que votam Trump: “Matthew MacWilliams, founder of a political communications firm, has been testing the factors that turn voters into Trump supporters. His surveys found the key wasn't race, age, income, church attendance, ideology or education: it was attitudes to authoritarianism. Donald Trump's supporters are looking for a strongman. (…) Understand this, and the Trump message – strong versus weak, winners and losers, nativism, fear of the other – makes sense. It is an attractive message in 2016 America. (…) Beyond the liberal salons of New York and Washington lies a country wondering what happened to the American dream. The old deal - work hard and you will succeed – was shattered by the global economic collapse of 2009. So when Mr Trump talks of his admiration for Vladimir Putin, plenty of voters see not a gaffe but a reminder that a strong leader restored pride to a broken country.”
Claro que isto pode ser muito assustador, pelo que o conhecido colunista do Financial Times, Martin Wolf, não está com meias medidas ou meias palavras: Donald Trump embodies how great republics meet their end. Para ele, “Mr Trump is a promoter of paranoid fantasies, a xenophobe and an ignoramus. His business consists of the erection of ugly monuments to his own vanity. He has no experience of political office. Some compare him to Latin American populists. He might also be considered an American Silvio Berlusconi, albeit without the charm or business acumen. But Mr Berlusconi, unlike Mr Trump, never threatened to round up and expel millions of people. Mr Trump is grossly unqualified for the world’s most important political office.”
Também encontrei um paralelo semelhante numa análise de Andrea Rizzi no El Pais, Lo que Berlusconi explica de Trump. Mesmo sublinhando as muitas diferenças entre os dois políticos, considera-se que “ambos parecen capaces de hablar –con palabras y ejemplo a la vez- a los amplios sectores de las sociedades occidentales decepcionados por el tiempo moderno. A esos individuos inquietos por las transformaciones inducidas por las migraciones, descabalgados de su estatus laboral por la globalización y las revoluciones tecnológicas, despojados de la convicción de que el futuro siempre sería mejor. Individuos en dificultad y desorientados, nostálgicos por tanto del pasado y sus valores, apegados al espíritu de su nación, ¡pero el del tiempo en el que les iba mejor, a ellos o sus homólogos predecesores!: Make America Great Again! Y Forza Italia! Individuos resentidos ante la clase política tradicional que no supo ofrecerles los resultados anhelados, proteger su estatus o su expectativa de progreso.”
Este tipo de deriva está a lançar o pânico entre as elites republicanas, sendo muito interessante ver o que escrevem dois dos intelectuais neoconservadores mais influentes, Robert Kagan e Max Boot. O primeiro, num artigo no Washington Post, é muito cruel para a forma como os republicanos têm feito política nos últimos anos: Trump is the GOP’s Frankenstein monster. Now he’s strong enough to destroy the party. Eis um dos seus argumentos: “Let’s be clear: Trump is no fluke. Nor is he hijacking the Republican Party or the conservative movement, if there is such a thing. He is, rather, the party’s creation, its Frankenstein’s monster, brought to life by the party, fed by the party and now made strong enough to destroy its maker. Was it not the party’s wild obstructionism (…) that taught Republican voters that government, institutions, political traditions, party leadership and even parties themselves were things to be overthrown, evaded, ignored, insulted, laughed at? (…) This would not be the first revolution that devoured itself.”
Já o segundo, escrevendo no USA Today, dá conta do seu desespero em Trump is a character test for the GOP. Escreveu aí que “This is, in general, a moment of testing for Republicans. It is a character test. Do you believe in the open and inclusive party of Ronald Reagan? Or do you want a bigoted and extremist party in the image of Donald Trump? I have been a Republican my entire life, but I will never support Trump. If voters nominate him, they will confirm everything bad that Democrats have ever said about the GOP. A Trump nomination will splinter the party, sully its good name—and increase the risk that a dangerous demagogue will assume the most powerful position in the world.”
Deixem-me repetir uma frase que me parece crucial: “? I have been a Republican my entire life, but I will never support Trump.” Ora Boot está longe de ser uma voz isolada. Há muito mais gente a pensar o mesmo. Mais: há até quem comece a defender a necessidade de um “terceiro partido”, como fez um professor de direito constitucional da Universidade de Georgetown, Randy E. Barnett, no mesmo USA Today, em As Trump rises, consider a 3rd party. É um texto sincero: “I have long vocally opposed third parties as irrational in our two-party system. They inevitably drain votes away from the major party closest to them, thereby benefiting the major party that is even worse. But strategies must adjust to circumstances. If Trump wins the GOP nominations, one of two things will happen, either of which would be disastrous for the Constitution and for the country.”
O sucesso de um “terceiro partido” seria sempre algo bastante remoto, mas já aconteceu no passado. Em Can the GOP Survive Donald Trump?, um artigo da revista Mother Jones, recorda-se isso mesmo: “It's been more than 100 years since a major political party had to deal internally with a basic question critical to its existence. The Whig Party collapsed because of profound disagreement within its ranks over slavery, and in 1852 its anti-slavery faction successfully blocked the nomination of the party's own Millard Fillmore, then the incumbent president. (…) If Trump snags the nomination, Republicans will have to decide between submitting to his will—that is, accepting his demagoguery, bigotry, buffoonery, and erratic ideology—or bolting. This will be a moment of truth (or lies) for every Republican.”
Todos eles terão, no fundo, se saber se seguem ou não a indicação clara da última edição da The Economist: Time to fire Trump. Razões para fazerem algumas coisa não lhes faltarão: “Almost the only policy Mr Trump clearly subscribes to is a fantasy: the construction of a wall along the southern border, paid for by Mexico. What would he do if faced with a crisis in the South China Sea, a terrorist attack in America or another financial meltdown? Nobody has any idea. Mr Trump may be well suited to campaigning in primaries, where voters bear little resemblance to the country as a whole, but it is difficult to imagine any candidate less suited to the consequence of winning a general election, namely governing.”
E nós, que não somos americanos e não podemos votar nestas primárias, temos também de procurar perceber melhor a natureza do fenómeno que está a desenrolar-se perante os nossos olhos. É isso que Rui Ramos procurou fazer hoje no Observador, num artigo intitulado Trump: de que é feito o populismo? Nele escreve que não nos podemos limitar a repetir o que todos, ou quase todos, vão dizendo e escrevendo: “A ideia feita é que o populismo e o radicalismo são, num sistema político, gerados de fora. Não é o que temos aqui. O que temos é uma classe política capaz de transmutar-se, e não apenas disposta a explorar o sentimento anti-sistema, mas até a promovê-lo. Afinal, Sanders é um senador e Trump é um milionário, celebridade televisiva e amigo de políticos. Não há apenas aqui uma “revolta de baixo”, mas uma espécie de “revolta de cima”.”
Gostava de poder escrever, nesta altura, que ainda há muita água para correr debaixo das pontes, mas a verdade é que depois desta “super terça-feira” o caminho está cada vez mais difícil para o candidato republicano que perecia ter mais condições para disputar a vitória nas eleições de Novembro com Hillary Clinton, o senador pela Florida Marco Rubio. O seu Estado votará ainda antes do final de Março, e nessa altura se saberá se ele tem realmente força (e delegados) para chegar à Convenção republicana em condições de ser nomeado candidato à Presidência dos Estados Unidos. Até lá, e certamente muito para além dessa data, teremos Trump a perturbar todas as contas e a subverter todas as regras.
E por hoje é tudo. O Macroscópio, como de costume, regressa amanhã.
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