Os mercados de Natal são uma tradição com séculos na Alemanha. E a Breitscheidplatz é aquela praça de Berlim que todos facilmente identificamos com as suas ruínas de uma igreja que invocam a II Guerra. O que aí aconteceu ao início da noite da passada segunda-feira foi mais um choque a acrescentar a tantos que marcaram o ano que está quase a acabar. Foi como que uma reedição de Nice, com menos vítimas, com mais dúvidas, pelo menos até ao momento em que escrevo, sobre a autoria do atentado. Mas a sensação, agora que passaram 48 horas, é que o choque e a indignação que marcaram os primeiros ataques podem estar a ser substituídos por uma sensação de habituação e, ao mesmo tempo, pelo percepção de que se está a perder o pé. Os textos que hoje reuni são, julgo eu, reflexo disso mesmo.
Começo pelo que parece cada vez mais óbvio – ou, como escreve Raffaello Pantucci, um especialista em terrorismo, no Telegraph, que This worldwide day of terror shows that in the age of globalisation, nowhere is safe. Até por isso vale a pena recordar tudo o que se passou segunda-feira: “The murder of a diplomat [Ancara], the driving of a truck into a crowd at a Christmas market [Berlim], a shooting at a mosque [Zurique] and the conviction of an attempted mass murderer of Muslims in New York will all have different consequences and they involve very different groups and ideologies. Yet they are all part of the same phenomenon, both predictable and confusing at the same time. Together they show how acts of terror on random civilians now appear to have no borders, with events in far flung lands tied inextricably to our daily lives at home.”
Ou seja, comvém não perder de vista o quadro global mesmo se nos focamos em Berlim onde, como recordou Jorge Almeida Fernandes, no Público, em Angela Merkel, o alvo virtual, se verificou mais uma vez que “O terrorismo não visa apenas provocar pavor aos seus alvos e demonstrar aos adeptos que é capaz de causar danos maciços aos inimigos, inclusive como método de recrutamento. Pretende desencadear uma espécie de “guerra civil” na Europa, levando à adopção de medidas extremas contra as comunidades muçulmanas.”
Nessa “guerra civil” a verdade é que o que se passou é, como escreve a Der Spiegel, Germany's Nightmare, Merkel's Nightmare. Isto porque “The attack on Berlin has the potential for shaking up German politics. Angela Merkel said what she needed to say, but her task of reuniting the country ahead of next fall's general election just became more difficult.” E ficou mais difícil porque a chanceler é a primeira responsável por uma política de acolhimento de refugiados que desde o primeiro momento lhe criou problemas na Alemanha (e muito boa imagem fora da Alemanha). O Wall Street Journal ilustrava isso mesmo com números, em Berlin Truck Crash Unnerves Europe’s Center: “A poll by Spiegel/TNS research in September found 82% of Germans wanted Ms. Merkel to change her migrant policy. Only 15% thought Ms. Merkel should stick to her present course. A further hardening of the mood could force Ms. Merkel, who has tread a fine line this year between a broadly welcoming message and a gradual tightening of refugee policies on the ground (…). The event could also radically change the way Germans—and the authorities—think of security in the era of blind, random terror.”
Mudar a forma como as autoridades alemãs lidam com o tema do terrorismo: eis exactamente um dos problemas que está em cima da mesa pois num país onde é impossível esquecer o que se passou no seu século XX, o que tem limitado, por exemplo, o grau de vigilância que a sociedade politicamente tolera. Isso mesmo é questionado pelo mesmo Wall Street Journal no seu editorial A Terrorist Truck in Berlin, que defende que “Germany needs a debate about migration and surveillance.” Em concreto, “Germany is due for a wrenching debate about how to balance the fear of its past against the severity of the Islamist dangers it faces now. Mrs. Merkel’s magnanimous welcome last year must be tempered by real-world threats that are growing.”
Não parece possível, de facto, fugir ao debate dessas políticas, mesmo considerando que desde o seu gesto de há um ano a chanceler tem vindo a procurar ajustar o seu discurso. Esse é um dos temas abordados por João Almeida Dias no Observador, num texto onde procura fazer uma síntese dos desafios políticos do momento. Em Depois de Berlim, que futuro está guardado para Angela Merkel? ele sublinha, por exemplo, que não é apenas com a oposição à sua direita, o partido anti-imigração AfD, que a chanceler tem problemas – o mesmo sucede com alguns dos seus aliados de sempre: “Se é verdade que a grande parte das críticas à sua política de refugiados partem da AfD, também não pode ser ignorada as várias tomadas de posição dos democratas-cristãos da Baviera, da CSU, que representam a CDU naquela região. O líder da CSU, Horst Seehofer, disse na semana passada que o seu partido se “recusa” a fazer parte de um Governo que não imponha um limite de 200 mil refugiados permitidos a entrar por ano na Alemanha. “Queremos assegurar o povo de que nós seremos parte de um Governo que cumpre as suas promessas”, disse.”
(No Observador vale também a pena ler a reportagem de Tiago Carrasco, em Berlim, “Eu podia ter tido mais coragem…”, sobretudo pelo que esta revela do estado de espírito que se vive na capital da Alemanha. Enquanto uns berlinenses garantem que “de uma coisa este terrorista pode ter a certeza, é que Berlim não é uma cidade que se amedronta porque já passou por muito pior. Vai manter o seu espírito aberto e multicultural”, outros dizem que é tempo de mudra: “Há algum tempo que achava que tinha sido um erro receber tanta gente sem registar devidamente as suas identidades”, diz Ulf Schneider, de 52 anos, que se decidiu ontem a deixar de votar em Merkel para escolher o AfD.”)
De facto, como se recorda no texto da Spiegel que citámos atrás, “Seehofer has been fighting for months against Merkel's political course in the refugee crisis. He isn't just concerned about holding onto power in Bavaria, he is also worried about growing political competition on the right wing in the form of the populist Alternative for Germany (AfD). Overnight, the AfD sought to gain momentum from the attack by directly blaming Merkel's policies for making it possible in the first place and with derisive comments in social networks”.
Mais directa, a britânica Spectator, numa crónica de William Cooka escrita de Munique, elabora sobre How Angela Merkel divided Germany. Neste caso concreto, como tem vindo a permitir que se cave um fosso entre a CDU e a CSU bávara, aliados de sempre: “This, in a nutshell, is why Bavarians are so disgruntled: Munich was the first stop for Merkel’s million Middle Eastern refugees. To Bavaria’s conformist voters, the AfD is an anathema, yet Merkel’s liberal conservatism no longer represents their views.”
Nikolaus Blome, director adjunto do tabloide de maior circulação no país, o Bild, escreve hoje no Financial que For Merkel and for Germany, compassion has a price. O seu raciocínio é que, face a todos estes desenvolvimentos, é toda a estratégia recentemente desenhada pela CDU para as eleições do próximo ano que pode estar em causa: “Ms Merkel’s campaign for the 2017 election is set to focus on two words aimed at providing comfort in times of turmoil: “security” and “no experiments”. This slogan was deployed successfully by her Christian Democrat (CDU) party during the cold war. As of today, both will be severely undermined by the Berlin attack — with no alternative at hand, either in terms of a viable candidate or in terms of strategy. (…) So all the chancellor can hope for is that mainstream Germans will do as they normally would: rally behind which ever government they have and remain calm.”
Mas deixemos agora a Alemanha e o seu futuro para referir três reflexões políticas mais gerais, todas elas questionando opções que temos tomado na forma como retratamos o terrorismo, o enfrentamos ou “compreendemos”, assim como sobre como se devemos compreender o mundo novo em que vivemos, não quer dizer que nos conformemos com o ponto onde chegámos:
- Aqui chegámos, de Helena Matos no Observador, é uma reflexão muito ácida sobre todas as desculpas que fomos encontrando para não chamarmos terrorismo ao terrorismo, concluindo melancolicamente que “É triste e vai piorar. O terrorismo e a intolerância apenas se limitaram a ocupar o espaço que deixámos vazio ao confundir o apagamento dos nossos valores com o respeito pelo outro. (…) Temos de parar neste exercício de transferência da responsabilidade do terrorismo para com as suas vítimas. Nesta espécie de apologia da clandestinidade daquilo que marca a nossa forma de vida. Esquecemos que só quem se respeita a si próprio e valoriza aquilo que foi e é consegue respeitar e, não menos importante, acolher os outros.”
- Da compreensão ao ódio, de Henrique Monteiro no Expresso, é um texto que aborda a mesma temática, também sublinhando temos de nos conformar menos com o discurso dominante que nos tolhe os movimentos: “Talvez se não fôssemos tão influenciados pela sociologia das margens, aquela que passou a vida a estudar a desgraça dos marginalizados e nunca se preocupou tanto com o caminho dos integrados, tivéssemos percebido que doutrinas do tipo da de Rudolph Giuliani nos poderia ter ajudado. Se ao primeiro sinal – o vidro partido, a pintura nas paredes, o carro riscado – tivéssemos agido em vez de compreendido, talvez eles não chegassem ao ponto a que chegaram. E, se assim fosse, menos viriam ter com eles, porque não tinham quem os recebesse. Talvez a vida fosse mais segura.”
- O mundo que está a nascer em Aleppo, de Rui Ramos no Observador, é o único destes textos que foi escrito antes dos acontecimentos de segunda-feira, mas julgo que vale a pena reflectir sobre a sua abordagem, pois no fundo o que ele nos diz é que temos de enfrentar um mundo onde os Estados Unidos já não explicarão tudo, já não tratarão de tudo, já não servirão para bode expiatório de tudo o que nos choca: “Sem os EUA, isto é, sem o sentimento de responsabilidade pelos outros sugerido pelo poder americano, o resto do mundo ameaça perder sentido para os públicos europeus e norte-americanos. Os EUA não estão em Aleppo? Não queremos saber de Aleppo: são todos maus, é tudo muito complicado. Começámos assim a ver em Aleppo o que será o mundo sem os EUA: um mundo sem lógica e sem interesse.”
Antes de terminar, uma última chamada de atenção para um texto que permite, apesar de tudo, algum optimismo, pois às vezes as coisas mudam e para melhor, como sucedeu mesmo aqui ao nosso lado. Em España, 12 años sin atentados o El Pais explica porque “No es una casualidad que en la última década nos hayamos librado del zarpazo yihadista que azota Europa”. Não sei se alguns dos nossos puristas, e garantistas, vão gostar desta leitura, mas a verdade é que Espanha passou, no final do século passado, de uma política muito permissiva face aos possíveis jihadistas – “Entonces no eran detenidos como ahora, se les daba cuerda para saber hasta donde eran capaces de llegar. Algunos les veían como luchadores románticos en lejanos desiertos, en tipos inofensivos en nuestro país.” – para algo próximo da tolerância zero: “A las detenciones preventivas —se actúa al menor indicio de actividad para evitar sorpresas como las del 11-M— se suman ahora las órdenes de detención “exprés” contra los yihadistas que viajan a Siria, algo impensable antes de la aparición del ISIS. La iniciativa policial la apoyan los jueces y fiscales de la Audiencia Nacional, un órgano en el que la implicación de sus profesionales en esta lucha es total. El 23% de las investigaciones de este tribunal están relacionadas con sospechas de yihadismo. Ahora se les detiene antes de que empiecen a andar. Esta política ha evitado durante los últimos 12 años varios atentados.” O texto é relativamente longo mas vale pelo cuidado colocado na sua fundamentação.
Termino hoje por aqui, com desejos de um bom descanso e que possam aproveitar algumas das minhas sugestões de leitura.
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