Esta quarta-feira os holandeses vão às urnas. Nos boletins de voto estarão os nomes de 28 partidos diferentes, mas todas as atenções estão centradas num só: o PVV, liderado pelo histriónico e populista Geert Wilders que, depois de um ano a liderar todas as sondagens, está agora taco-a-taco com o VVD, o partido maioritário da coligação governativa do primeiro-ministro Mark Rutte, um liberal. No entanto, apesar de Rutte ter vindo a adoptar uma linguagem cada vez mais próxima da de Wilders – como o Wall Street Journal nos conta em Dutch Leader Takes Populist Turn to Fend Off Far-Right Party –, o resultado do primeiro teste eleitoral na Europa pós-Trump permanece relativamente incerto.
Hoje, no Observador, João Almeida Dias interrogava-se, num especial em que deu voz a vários cientistas políticos holandeses, sobre Até onde vai Geert Wilders, o político mais anti-Islão da Europa? Como ele escrevia, “os outros partidos não querem viabilizar um Governo dele — mas isso será a maior prenda que lhe podem dar”. Wouter van der Brug, professor de Ciência Política na Universidade de Amesterdão, um dos especialistas com quem falou, explicou-lhe que "A história da Holanda é a mesma da que vemos noutros países do nordeste da Europa (...). As pessoas acham que os seus problemas vão ser resolvidos se o país voltar a ter o controlo das suas fronteiras, se voltar a comandar plenamente os destinos da nação e, especialmente, se se conseguir proteger do que se diz ser a 'invasão' do Islão."
Também a The Economist, na sua mais recente edição, não deixava de notar, em Dutch voters’ anger is fuelling populism, que mesmo que os partidos do sistema saiam vitoriosos desta eleição, é sempre possível uma surpresa: “For now, the polls show Mr Wilders’s support continuing to sink. But some Dutch wonder whether the country is in for a Trump-style surprise. Because the Freedom Party has been shut out of coalitions, a vote for it carries little cost. Sywert van Lienden, a former political activist now working for the mayor of Amsterdam, says he has heard even dissatisfied D66 supporters considering a protest vote for Mr Wilders. “When the curtain closes, you never know how strong that ‘fuck ’em’ factor will be.”
Para ter uma ideia mais clara dos sentimentos que cruzam a sociedade holandesa vale a pena ler os testemunhos recolhidos pelo Financial Times em Dutch election: in the words of voters, um conjunto de depoimentos reunidos em colaboração com o maior diário holandês, o Algemeen Dagblad. Seleccionei dois desses depoimentos, que vão em direcções opostas, mas que me pareceram bastante reveladores:
- Carla has lived in Eindhoven, the country’s fifth-largest city, for her entire life. She has seen a clear shift in political preference over the past decade: “People are angry at the elite in The Hague. They do not feel heard. This will cause them to cast a protest vote for [anti-immigration candidate Geert] Wilders. I am voting for Wilders. Hopefully he will not be prime minister, but I definitely consider it an opportunity to put the elite in The Hague in its place.”
- Entrepreneur Ronald Smallenburg, who lives in multicultural Amsterdam, has seen a growing trend of voters reacting against populist sentiment. Mr Smallenburg is a longtime member of the progressive pro-EU party D66: “I see a slowly growing countermovement from people who are increasingly annoyed by the populist right and want to do something to resist it: respond in the media, demonstrations, debates. I see this both in my city and across the country. Over the past few weeks, I have noticed that [Mr Wilders’ Party for Freedom] PVV is slowly falling in the polls and growing outrage about the PVV has increased. It may be that I exist in the Amsterdam bubble where I never encounter PVV voters.”
Já o New York Times fez uma reportagem em que ouve holandeses de origem muçulmana, alguns deles ocupando lugares importantes na sociedade. Em With Coming Election, the Netherlands Considers a New Relationship to Muslims procura-se perceber o ambiente que rodeia esta eleição que, como se escreve a abrir, “coming ahead of others in France, Germany and possibly Italy, will be the first test of Europe’s threshold for tolerance as populist parties rise by attacking the European Union and immigration, making nationalistic calls to preserve distinct local cultures.”
Mas atenção: não nos fiquemos apenas pelas reportagens jornalísticas. Se quisermos compreender um pouco melhor a sociedade holandesa, como os seus lados luminosos e os seus lados sombrios, é indispensável ler José Rentes de Carvalho, o escritor português que vive no país das tulipas há seis décadas. Em A Ira de Deus sobre a Europa ele conta-nos como viu a Holanda ir mudando e como ele próprio vive muitas das inquietações dos eleitores que, agora, são capazes de ir votar nos partidos anti-sistema. Obra polémica, perturbadora mas sobretudo muito sincera, nela se escreve, logo no prefácio, que “... o hedonismo, a ausência de ideais, uma mansidão que não distingue muito da cobardia, aqui e ali um tolo sentimento de superioridade, de «valores» e «civilização», são outros tantos factores da nossa provável derrota. O comportamento «bonzinho» de não nos defendermos de quem nos ataca, de respeitar quem não nos respeita, de insistirmos em estender a mão a quem nos despreza, por certo encontra alguma justificação na doutrina cristã, mas é atitude contraproducente numa situação de conflito, sobretudo quando a parte contrária aplica a estratégia bélica de Clausewitz, enquanto a nossa opta pelo adiamento e dá prioridade aos jogos de computador, às amizades e aos likes do Facebook.”
É neste quadro geral que devemos enquadrar o choque entre as autoridades holandesas e turcas durante este fim-de-semana, altura em que Haia proibiu a entrada no país de dois ministros de Erdogan que pretendiam fazer campanha junto da comunidade emigrante no quadro do referendo convocado para Ankara onde se pretende reforçar os poderes do Presidente da República, um referendo visto por muitos como uma forma de consagrar a deriva autoritária na Turquia. Mas antes de um ou dois comentários, recordemos o que se passou com a ajuda do Le Monde, através do seu “descodificador” Comprendre la crise diplomatique entre la Turquie, l’Allemagne et les Pays-Bas:
- En Allemagne, plusieurs meetings ont été annulés début mars dans plusieurs villes. Le ministre turc de la justice a annulé un déplacement dans le pays et le président s’est emporté jusqu’à évoquer des « pratiques nazies » de la part de Berlin. (…)
- Les Pays-Bas ont interdit l’atterrissage, samedi 11 mars, de l’avion du ministre turc des affaires étrangères, Mevlut Cavusoglu, alors qu’il allait se poser à Rotterdam pour un meeting de soutien. Quelques heures plus tard, la ministre de la famille, Fatma Betül Sayan Kaya, a été reconduite à la frontière avec l’Allemagne, qu’elle avait franchie en voiture. Le premier ministre néerlandais, Mark Rutte, a invoqué un risque à l’ordre public, déclarant que « ces rassemblements ne doivent pas contribuer à des tensions dans notre société ». (…)
- En Autriche, un meeting électoral en présence d’un cadre du parti AKP a été interdit le 10 mars par la commune de Hörbranz au Vorarlberg (ouest du pays) en raison de « risques de trouble à l’ordre public ».
- En Suède, un meeting en faveur de la réforme a été annulé après que le propriétaire de la salle de réunion a résilié le contrat de location sans explication, a annoncé l’agence de presse turque Dogan dimanche.
- En Suisse, un meeting électoral présidé par un responsable du parti AKP a été interdit le 10 mars par la police du canton d’Argovie en raison d’un « risque de trouble à l’ordre public ».
- En France, le ministre turc des affaires étrangères a pu participer, le 12 mars, à une réunion publique à Metz, organisée par une association turque. Critiqué pour avoir autorisé le rassemblement, le ministère des affaires étrangères a dit que le meeting ne présentait pas « de menaces à l’ordre public ».
O mesmo Le Monde era depois muito duro e assertivo relativamente ao que a Europa devia fazer face ao discurso das autoridades turcas. No editorial Quand le président turc provoque l’Europe escrevia-se que “L’Union européenne doit, au plus vite et unanimement, dire sa solidarité active avec ceux d’entre ses membres que Recep Tayyip Erdogan a traités d’une façon intolérable – à commencer par l’Allemagne.” A seguir explicava-se como é preocupante a deriva autoritária de Ankara: “La Turquie, qui a réussi d’admirables réformes tout au long des années 2000 dans le cadre d’un système parlementaire, se doterait alors d’un régime présidentiel. Cette évolution parachèvera et habillera juridiquement la dérive autoritariste de M. Erdogan. Elle rapprochera le régime turc du modèle dictatorial moyen-oriental.”
Acontece porém que a escalada verbal entre diferentes capitais europeias e a Turquia é, na opinião da correspondente da Spiegel, aquilo que neste momento melhor serve os interesses do regime. Em Erdogan's Perfect Storm nota-se que “Ankara is piling on in its dispute with the Netherlands” e que “Turkey is calling for retaliation in the "harshest ways" and President Erdogan has found the perfect election issue”. Algo que se explica melhor ao dar vez à oposição: “Tuna Beklevic, the head of the "No" Party, a group opposing the proposed constitutional reforms, has described the events as the "perfect storm." The dispute with Europe, he said, was precisely the kind of thing Erdogan had hoped for. Beklevic fears the scandal will mobilize nationalist voters. "It could provide Erdogan with exactly the 2 to 3 percentage points that will ultimately decide the referendum."
Ou seja, a dureza do governo de Mark Rutte no seu braço-de-ferro com o regime de Erdogan pode render internamente, mostrando ao eleitorado tentado pelos populistas que ele também sabe ser firme, mas ao mesmo tempo joga a favor desse mesmo Erdogan num referendo de que pode sair uma Turquia bem menos democrática. São tempos difíceis estes que vivemos.
E por hoje é tudo. Tenham bom descanso e boas leituras.
Mais pessoas vão gostar da Macroscópio. Partilhe:
no Facebook no Twitter por e-mail
Leia as últimas
em observador.pt
Subscreva
as nossas Newsletters
Nenhum comentário:
Postar um comentário