O uso do Facebook, de Mark Zuckerberg, para consumo de notícias ainda é o preferido pelos brasileiros. Foto: Reuters/Leah Millis |
Andressa Kikuti
Doutoranda em Jornalismo da UFSC e pesquisadora associada do objETHOS
Na semana passada, um texto publicado pelo jornalista Leonardo Foletto no site Baixa Cultura chamou a atenção. Ele falava sobre as mudanças ocorridas no espírito do tempo com relação à cultura digital, e que vivemos um momento de “ressaca da internet”. Para ele, fomos tão cegados pelas esperanças de libertação prometidas pela rede mundial de computadores (de nos livrarmos da informação dada exclusivamente por grandes grupos midiáticos, de todo mundo poder ter voz, de criar tecnologias sociais), que descuidamos, ou não conseguimos prestar a atenção, em algo perigoso que crescia debaixo de nossos narizes: a ascensão dos monopólios das empresas de tecnologia. Depois do “porre de otimismo”, como o autor chama, acordamos reféns de gigantes como o Facebook, o Google e a Amazon, que ditam o que seus usuários veem (ou deixam de ver) na web, além de captarem e comercializarem nossos dados pessoais como bem entendem.
Só para contextualizar o cenário, os dados do relatório Reuters Digital News Report, publicado em junho deste ano, apontam que o smartphone é tido por 72% dos respondentes brasileiros como um dos principais dispositivos de acesso à internet (em 2013 era apenas 23%). Só que, com a qualidade ainda precária das conexões móveis, somadas à venda de pacotes que privilegiam as redes sociais por parte das operadoras (desrespeitando a neutralidade de rede), muitos usuários acabam restringindo sua navegação somente a esses acessos. Não à toa, brasileiros são alguns dos usuários mais entusiastas de mídias sociais e aplicativos de mensagem do mundo. Ainda segundo o estudo, embora o uso do Facebook para consumo de notícias tenha caído sensivelmente com relação a 2017 (de 57% para 52%), ele continua sendo o preferido. Cresceram em popularidade o WhatsApp e o Instagram para este mesmo fim, ambos também pertencentes a Mark Zuckerberg. O grande problema relacionado a isso já é bem conhecido: o Facebook (bem como as demais mídias sociais citadas) não foi feito para notícias. Portanto, o feed de seus usuários não é construído com base em critérios jornalísticos sobre aquilo que é importante, mas sim a partir de algoritmos que privilegiam aquilo que as pessoas já estão acostumadas a ver e curtir, criando bolhas de informação que confirmam pontos de vista. Como afirma Jaron Lanier em palestra no TED2018, mais do que redes sociais, essas empresas são moduladoras de comportamento.
Parece que parte da responsabilidade sobre esta falta de percepção sobre as transformações da cultura digital é também do jornalismo. Relembrando um discurso de 2014 de Emily Bell, diretora do Tow Center for Digital Journalism, o jornalismo precisa cobrir a tecnologia como questão de direitos humanos e como uma questão política. Nas palavras dela, “precisamos parar de apenas noticiar a fila por um iPhone e começar a cobrir tecnologia como algo a ver com sociedade e poder. Nós precisamos explicar esses novos sistemas de poder ao mundo”. No mesmo sentido, o advogado e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS), Ronaldo Lemos (2012), afirma que “o bom jornalismo de tecnologia precisa considerar todas as suas dimensões sociais: políticas, econômicas e científicas. Para que isso aconteça, precisa ser feito sem medo de represálias e sem meias palavras”. Estamos indo na direção certa?
A pesquisa intitulada “A tecnologia nos jornais brasileiros: configurações temáticas e hipermidiáticas das seções de tecnologia do Estadão, Folha de S. Paulo, Correio Braziliense e Gazeta do Povo” (KIKUTI, 2015), que trata especificamente do tema, concluiu que, pelo menos no que diz respeito às seções de tecnologia desses jornais tradicionais no Brasil, mais da metade do conteúdo que é publicado trata de lançamentos, como novos aparelhos, jogos e serviços de streaming, e notícias relacionadas ao mercado multimilionário de grandes empresas, além de outros assuntos ligados à Economia (para ser mais exata, tais temas ocuparam 58% da seção de tecnologia da Gazeta; 63,1% na do Correio Braziliense; 55,3% no Link do Estadão; e 38% no Tec, da Folha, no mês da coleta (setembro de 2014)). Outros temas como direito na web (com questões sobre privacidade, legislação, embates legais e crimes cibernéticos), cultura digital (comportamento on-line e produção cultural) e inovações tecnológicas (sem cunho mercadológico) também apareceram, mas de forma mais pontual.
É claro que a estrutura dessas seções influencia nas suas características e limitações: todas sofreram reduções de espaço e investimento, reflexos da crise dos jornais: o Link, por exemplo, surgiu (em 2004) como um ambicioso veículo cross media e depois virou caderno voltado para a cultura digital, mas em 2013 (com a reformulação do Estadão) foi reduzido a uma seção de duas páginas dentro do caderno de Economia; o Tec (da Folha) também deixou de circular como caderno em 2014, virando parte da editoria de Mercado. Com essa decisão editorial de vincular a tecnologia à área de Economia, dá até para entender o porquê da ausência de uma abordagem mais política e social nessas editorias… A representação da tecnologia nos jornais brasileiros acaba sendo um misto entre uma concepção instrumentalista – que trata a tecnologia como sendo ferramentas, equipamentos criados para uma diversidade de tarefas -, e utilitarista – que confere a ela uma visão funcionalista, exaltando sua finalidade e dando menos atenção aos processos envolvidos em sua elaboração.
O jornalismo sobre tecnologia em veículos tradicionais no Brasil ainda está longe de alcançar a expectativa de um conceito mais social, embora seja possível verificar exemplos de notícias com determinado esforço neste sentido, mas não de forma estrutural, como seria desejável – e segue a lógica das modificações decorrentes das transformações ocorridas nas empresas jornalísticas. Cumpre a busca por um equilíbrio comercial, mas em alguns momentos ignora um papel importante do jornalismo na sociedade, que vai muito além de simplesmente informar: também envolve contextualizar, resgatar, problematizar assuntos de interesse público, principalmente quando as pessoas precisam de orientação sobre determinado tema (como é o caso, sem dúvida, da influência das empresas de tecnologia em nossas ações cotidianas, nas informações que recebemos e na segurança de nossos dados). Afinal, neste momento de abundância informativa, a relevância do jornalismo se sustenta no exercício do contra- poder, no questionamento do status quo e no fornecimento de informações de qualidade que capacitem as pessoas a agirem frente às questões importantes do cotidiano. Quem sabe esteja aí parte do antídoto para a “ressaca da internet”.
Fonte: objethos
Referências:
LEMOS, R. Futuros possíveis. Porto Alegre: Sulina, 2012.
KIKUTI, A. A tecnologia nos jornais brasileiros: configurações temáticas e hipermidiáticas das seções de tecnologia do Estadão, Folha de S. Paulo, Correio Braziliense e Gazeta do Povo. Dissertação. Programa de Pós-graduação em Jornalismo. Ponta Grossa: UEPG, 2015.
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