Por Natasha Romanzoti, em 25.06.2018
Segundo um novo artigo publicado por Bernardo Kastrup, doutor em engenharia da computação pela Universidade Tecnológica de Eindhoven (Holanda) e especialista em inteligência artificial, o distúrbio da personalidade múltipla pode oferecer uma solução para um problema crítico em nossa compreensão da natureza da realidade.
Mas como é que um distúrbio neurológico pode nos ajudar a explicar o universo e tudo que existe nele?
Bom, isso requer algum conhecimento prévio da condição e dos problemas do estudo da realidade. Kastrup, ao lado do psicoterapeuta Adam Crabtree e do pesquisador em psiquiatria e comportamento neural Edward F. Kelly explicaram ao portal The Scientific American tudo o que precisamos saber para entender a questão da consciência universal.
Vamos por etapas:
O cérebro das pessoas com distúrbio de personalidade múltipla
Em 2015, médicos da Alemanha relataram o caso extraordinário de uma mulher que sofria do que é tradicionalmente conhecido como “distúrbio de personalidade múltipla”, uma condição hoje chamada oficialmente de “distúrbio dissociativo de identidade” (DDI).
A mulher exibia uma variedade de personalidades (“alter egos”), sendo que algumas delas alegavam ser cegas, embora a paciente pudesse enxergar normalmente.
Os médicos realizaram exames de eletroencefalografia na mulher, inacreditavelmente verificando que a atividade cerebral normalmente associada à visão não estava presente enquanto um alter ego cego estava no controle do corpo da mulher, mesmo que seus olhos estivessem abertos. Se um alter ego com visão assumia o controle, a atividade cerebral normal retornava.
Esta foi uma demonstração convincente do poder das formas extremas de dissociação, uma condição na qual a psique dá origem a múltiplos centros de consciência operacionalmente separados, cada um com sua própria vida interior privada.
A DDI é real. Então o que pode nos dizer sobre a vida?
A história dessa condição remonta ao início do século XIX, com a maioria dos casos sendo relatados da década de 1880 até a década de 1920 e, novamente, da década de 1960 até o final da década de 1990.
Além do estudo de 2015, outras técnicas modernas de neuroimagem ofereceram evidências de que o distúrbio é real. Por exemplo, em 2014, os médicos realizaram varreduras cerebrais funcionais em pacientes com DDI e atores simulando DDI. Os pacientes reais mostraram diferenças cerebrais claras quando comparadas àquelas dos atores, o que indicou que a DDI tem uma impressão digital de atividade neural identificável.
A distinção de identidade também afeta de forma complexa a memória, particularmente em casos extremos.
Embora não possamos explicar precisamente como esse processo dissociativo ocorre em um nível criativo, a evidência clínica, no entanto, nos força a reconhecer que a condição tem implicações importantes para nossas visões sobre o que é e não é possível na natureza
Realidade física e o problema difícil da consciência
De acordo com a visão metafísica dominante do fisicalismo (segundo a teoria do fisicalismo, todos os aspectos da realidade, inclusive estados mentais e afetivos, somente adquirem plena compreensibilidade e concretude se analisados como realidades físicas), a realidade é fundamentalmente constituída por coisas físicas externas e independentes da mente. Os estados mentais, por sua vez, devem ser explicáveis em termos dos parâmetros dos processos físicos no cérebro.
Um problema-chave do fisicalismo, no entanto, é sua incapacidade de compreender como nossa experiência subjetiva – como é sentir o calor do fogo, a vermelhidão de uma maçã, a amargura da decepção e assim por diante – poderia surgir de meros arranjos de coisas físicas.
Entidades físicas, como partículas subatômicas, possuem propriedades relacionais abstratas, como massa, spin, momentum e carga. Mas não há nada sobre essas propriedades, ou sobre a maneira como as partículas são organizadas em um cérebro, em termos das quais se pode deduzir como é o calor do fogo, a vermelhidão de uma maçã ou a amargura da decepção. Isso é conhecido como o “problema difícil da consciência”.
Para contornar esse problema, alguns filósofos propuseram uma alternativa: essa experiência é inerente a toda entidade física fundamental na natureza. Sob esse ponto de vista, chamado “panpsiquismo constitutivo”, a matéria já tem experiência desde o início, não apenas quando se organiza na forma de cérebro. Até mesmo partículas subatômicas possuem alguma forma muito simples de consciência. Nossa própria consciência humana é, então, alegadamente constituída por uma combinação das vidas interiores subjetivas das inúmeras partículas físicas que compõem nosso sistema nervoso.
A consciência e o problema de combinação
Como nada na ciência e na filosofia é muito fácil de ser explicado, o panpsiquismo constitutivo tem um problema crítico próprio: não há nenhuma maneira coerente de esclarecer como os pontos de vista subjetivos de várias partículas subatômicas poderiam se combinar para formar pontos de vista subjetivos de nível mais alto, como o meu e seu. Isso é chamado de “problema de combinação”.
Uma forma de resolvê-lo é postular que, embora a consciência seja de fato fundamental por natureza, ela não é fragmentada como matéria. A ideia é estender a consciência para todo o tecido do espaço-tempo, em vez de limitá-la às partículas subatômicas individuais. Essa visão – chamada de “cosmopsiquismo” na filosofia moderna, mas que pode ser reduzida ao que classicamente tem sido chamado de “idealismo” – é que existe apenas uma consciência universal. O universo físico como um todo é a aparência extrínseca da vida interior universal, assim como o cérebro e o corpo vivos são a aparência extrínseca da vida interior de uma pessoa.
Não é preciso ser um filósofo para perceber o problema óbvio dessa última ideia: as pessoas têm campos de experiência particulares e separados. Normalmente, não podemos ler os pensamentos de tudo que existe, nem estamos cientes do que está acontecendo no universo o tempo todo, certo? Seria bom, mas…
Portanto, para que o idealismo seja sustentável, é preciso explicar – pelo menos em princípio – como uma consciência universal dá origem a múltiplos centros de cognição privados, mas simultâneos, cada um com uma personalidade e senso de identidade distintos.
O universo e suas múltiplas personalidades
É aqui que entra a dissociação. Sabemos empiricamente que a consciência pode dar origem a muitos centros operacionalmente distintos de experiência simultânea, cada um com sua própria personalidade e senso de identidade.
Portanto, se algo análogo ao DDI acontece em um nível universal, uma única consciência universal poderia, como resultado, dar origem a muitos alter egos com vidas internas privadas, como a sua e a minha. Nesse caso, todos seríamos alter egos da consciência universal.
Se alguma forma de DDI universal acontece, os alter egos da consciência universal devem ter uma aparência extrínseca. Kastrup teoriza que essa aparência é a própria vida: os organismos metabolizadores são simplesmente o que os processos dissociativos de nível universal parecem.
Conforme ele explica ao portal Scientific American, o idealismo é uma visão tentadora da natureza da realidade, na medida em que elegantemente contorna dois problemas indiscutivelmente insolúveis: o problema difícil da consciência e o problema da combinação. A dissociação oferece um caminho para explicar como uma consciência universal pode se tornar muitas mentes individuais, proporcionando uma maneira coerente e empiricamente fundamentada de dar sentido à vida, ao universo e a tudo que existe.
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