Duas em cada cinco mulheres que cometem suicídio são indianas. Segundo o estudo da revista “The Lancet”, a principal causa é o casamento precoce
Lakshmi é a deusa da riqueza. Esta deusa aparece desenhada com quatro braços que seguram duas flores de lótus e um pote cheio de ouro. Na Índia, por tradição, o nascimento de uma mulher é comparado à chegada de Lakshmi, é um momento que traz luz à vida das famílias. Ou deveria. A verdade é que a realidade dos dias de hoje não segue este princípio. Ter uma filha na Índia não é bom sinal, e as agressões contra as mulheres começa ainda no ventre, mesmo antes de nascerem. Estima-se que entre 2000 e 2014, 47 em cada mil mulheres indianas tenham feito um aborto, motivado pela descoberta do sexo do bebé. O estatuto de deusa depressa se desvanece e as ainda meninas são lançadas para a vida adulta demasiado cedo, sobretudo do ponto de vista ocidental.
Nita Singh saiu de Nova Deli, a capital da Índia, há oito anos e veio para Portugal. “Aqui as coisas são muito diferentes, as mulheres podem andar na rua e podem trabalhar, lá não. Há poucas mulheres que trabalham, os maridos não deixam”, conta a jovem de 25 anos ao i. O estatuto das mulheres na Índia é pouco reconhecido, vivem essencialmente para a família e existem inúmeros casos de suicídio. Quase 40% dos suicídios femininos em todo o mundo têm o carimbo da Índia. Segundo um estudo publicado pela revista médica “The Lancet”, que analisou dados desde 1990 até 2016, esta realidade tem vindo a crescer nos últimos anos. Transformando a realidade em números, 62% das próprias mulheres indianas admitem e aprovam que os maridos possam bater nas esposas.
A Índia tem cerca de 1,3 mil milhões de habitantes, o equivalente a 18% da população mundial, e a principal causa de morte de mulheres entre os 15 e os 39 anos é o suicídio. A percentagem de mulheres que terminam com a própria vida é o triplo daquilo que seria esperado num país com os indicadores socioeconómicos da Índia. No estudo, os suicídios são ainda descritos como “uma crise de saúde pública” e “desproporcionalmente elevados”.
Porquê? Nita Singh recorda uma história que se desenhou há dois anos. Nessa altura, já estava em Portugal, mas mantém contacto frequente com os amigos que continuam na Índia, e está sempre a par do que acontece com eles, sobretudo com as suas amigas. Uma delas, na altura com 22 anos, apaixonou-se por um rapaz. Até aqui, nada de estranho, já que as relações fazem parte da condição humana. Mas na Índia, um relacionamento fora do controlo da família e iniciado por livre vontade, pode ser fatal. “Ela estava com o rapaz às escondidas, sem o pai e a mãe saberem. Um dia, a família descobriu e foi uma confusão muito grande, é proibido, a família não aceitou”, disse Nita Singh. No dia seguinte, a história terminou como terminam as histórias de cerca de 20 000 mulheres indianas, por ano, desde 1997. “Ela comeu ou bebeu alguma coisa e apareceu morta”. Nita acredita que a amiga se suicidou por não aguentar a pressão da família e pelo medo das represálias no futuro. “Isto acontece muito, as mulheres matam-se”, acrescenta a jovem indiana.
Os motivos que levam as mulheres indianas a acabar com a própria vida são inúmeros e, segundo indicado pelo estudo da revista “The Lancet”, a principal razão é o matrimónio precoce, um quinto das mulheres indianas casa-se antes dos 15 anos. Na Índia, as jovens não têm poder de escolha, tudo é feito de acordo com a vontade da família – o marido, o dia e até a hora do casamento. “Lá na Índia casamos muito cedo, com 18 anos ou menos. Eu casei muito cedo e foi a minha família que escolheu o meu marido, eu não escolhi nada”, revela Nita.
A vida das mulheres indianas tem um efeito bola de neve e as causas do elevado número de suicídios estão todas ligadas. O casamento precoce e escolhido sem o seu consentimento não lhes dá liberdade financeira, que por sua vez lhes confere um baixo estatuto social. A maternidade precoce e a violência doméstica são também fortes razões para colocar termo à vida.
No meio deste cenário, “é muito difícil ser mulher. Na minha terra, os homens é que mandam”, conta a jovem indiana, que vai ao encontro do que diz o estudo da revista “The Lancet”, que alerta para a fragilidade e para os sérios problemas das raparigas indianas. “As normas sociais são muito regressivas. Na aldeia, uma rapariga é chamada a filha do seu pai, depois a mulher do seu marido e a seguir, se tiver um filho homem, a mãe do seu filho”, revela uma das autoras do estudo. A perda de identidade coloca as mulheres sob o peso da fragilidade, estando assim mais expostas à depressão. E nestes casos, os sistemas de ajuda para a saúde mental são escassos para as mulheres.
A Thomson Reuters Foundation também revelou este ano um estudo que coloca a Índia no topo da lista dos piores países para as mulheres, com o Afeganistão, a Síria e a Arábia Saudita a ocupar os lugares seguintes. A Índia atinge este estatuto devido, sobretudo, ao alto risco de violência sexual.
Leis que “protegem” as mulheres Apesar de as leis mudarem, as manifestações contra a violência a mulheres continuam. Isto, porque o número de crimes aumenta. Para combater o crescimento de crimes violentos contra as mulheres no país, o governo indiano aprovou em abril deste ano a pena de morte para condenados por violação de crianças com menos de 12 anos. Esta medida surgiu no seguimento de vários casos recentes, entre eles, a violação e assassínio de uma menina de oito anos no estado indiano de Jammu-Kashmir. Este caso específico desencadeou um estado de revolta e levou milhares de indianos às ruas de Nova Deli para exigirem o fim da violência sexual contra às mulheres. Segundo dados do Gabinete Nacional de Registos Criminais, na Índia são denunciados cerca de 100 crimes de agressão sexual por dia. Os dados de 2016 registaram 39 mil alegadas violações, um aumento de 12% face ao ano anterior.
Em 2013, o governo promulgou leis que elevam para 20 anos a pena máxima de prisão para violadores, criminalizou a perseguição e o tráfico de mulheres e, além disso, foi reduzida a idade em que um homem pode ser acusado e julgado, passando dos 18 para os 16 anos. No entanto, e apesar das leis que têm sido aprovadas, no mês de maio de 2018 uma rapariga indiana foi raptada da própria casa e violada por um grupo de homens. A justiça: 100 abdominais e uma multa de 50 mil rupias, o equivalente a cerca de 640 euros.
Pelo elevado número de suicídios, pelo crescente número de crimes sexuais, “as mulheres indianas ainda têm de lutar muito”, refere Nita Singh, enquanto compara a liberdade e os direitos femininos na Índia e em Portugal.
Fonte: ionline
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