Inicialmente esta newsletter esteve para ser sobre algumas extraordinárias reações ao que se passou entre Serena Williams e o árbitro português Carlos Ramos na final do Open de Ténis dos Estados Unidos. Mas depois de o Observador ter procurado responder num especial à questão sobre se a Polémica com Serena poderá minar a luta feminista?, Luís Aguiar-Conraria tocou no nervo mais sensível dos debates em Culpado por ser português. Como ele escreveu chegou-se a um ponto em que “Não interessa o que se passou no court de ténis. Para saber que Carlos Ramos é culpado basta ter dois dados em conta: 1º, Serena Williams é uma mulher negra; 2º, Carlos Ramos é um português branco.”
Há na verdade todo um debate interessante sobre o sexismo no desporto e Martina Navratilova no New York Times – em What Serena Got Wrong – escreveu provavelmente o melhor artigo sobre o tema sem deixar de condenar o comportamento de Serena. O extraordinário foi o que se passou a seguir, como conta Conraria: “Sendo Navratilova uma das melhores tenistas de sempre, sendo mulher e tendo sido também vítima de sexismo, seria de esperar que tivesse uma grande autoridade para falar do assunto. Mas, como alguém lembrou na secção de comentários ao seu artigo, ela tem um problema. É branca. Como é branca não pode perceber as queixas de Serena. Mas logo alguém deu uma resposta à altura. É verdade que é branca, mas, em compensação, é homossexual.”
Ou seja: o que se defende não vale pela inteligência do argumento, mas pela cor da pela, pelo sexo ou mesmo pela nacionalidade de quem o defende – e isso condenou inexoravelmente Carlos Ramos aos olhos de colunistas/académicas/activistas citadas nesse artigo, como Crystal Fleming que, no Twitter, defendeu, por exemplo, que a explicação para o que acontecera à tenista norte-americana não tivera a ver com o seu comportamento em campo mas com o facto de “Carlos Ramos was born in 1971, in Lisbon — under a dictatorship where “ultra orthodox patriarchy” reigned supreme. His sexism in the women’s final must be understood not only in the context of global misogyny but also the extreme sexism that still ravages Portugal”- today.Ou como Rebecca Traister que, na The New York York Magazine, em Serena Williams and the Game That Can’t Be Won (Yet). What rage costs a woman, misturou tudo: “Ramos’s censure of Williams on Saturday night cannot be disentangled from her gender and race any more than the other recent obstacles she’s faced, from the physical toll of pregnancy, to her profession’s status-tax on it, to her higher risk of maternal mortality and postpartum complication.”
Este texto de Luís Aguiar-Conraria e as formas caricaturais de debate que critica permitem-me no entanto levá-los para um outro debate que mostra como dois órgãos de informações tidos como referências podem lidar de formas radicalmente diferentes com um mesmo dilema. Refiro-me em concreto à americana New Yorker e à britânica The Economist. Ambas as revistas tiveram a mesma ideia: convidar Steve Bannon, o génio da propaganda por trás da eleição de Trump, para eventos em que desafiariam as suas ideias. Sem surpresa as tribos anti-Bannon invadiram as redes sociais e, nessa altura, a New Yorker resolveu desconvidar quem já tinha convidado enquanto a The Economist manteve a sua posição. Vejamos como se justificaram os directores dessas publicações:
- David Remnick da New Yorker (num memorando enviado ao staff da revista) começa por recordar que a entrevista a Bannon, que ele própria faria num Festival organizado pela revista, fora preparada durante meses, mas que o seu anúncio provocara uma forte reacção nas redes sociais. Sendo assim, “I’ve thought this through and talked to colleagues — and I’ve re-considered. I’ve changed my mind. There is a better way to do this. Our writers have interviewed Steve Bannon for The New Yorker before, and if the opportunity presents itself I’ll interview him in a more traditionally journalistic setting as we first discussed, and not on stage.”
- Zanny Minton Beddoes, directora da The Economist, optou por escrever directamente aos leitores, The Open Future Festival and Steve Bannon. Nesse texto recorda o objectivo do festival – “The Open Future festival is the culmination of an initiative to mark this newspaper’s 175th anniversary. Our goal is to remake the case for liberal values in the 21st century by engaging in a global conversation about our world view with our supporters and, crucially, our critics.” – e defende de forma vigorosa a ideia de que só confrontando em terreno aberto as ideias de que se discorda elas podem ser derrotadas: “The future of open societies will not be secured by like-minded people speaking to each other in an echo chamber, but by subjecting ideas and individuals from all sides to rigorous questioning and debate. This will expose bigotry and prejudice, just as it will reaffirm and refresh liberalism. That is the premise The Economist was founded on. When James Wilson launched this newspaper in 1843, he said its mission was to take part in “a severe contest between intelligence, which presses forward, and an unworthy, timid ignorance obstructing our progress.” Those words have guided us for 175 years. They will guide our debates at the Open Future festival on September 15th. That is why our invitation to Mr Bannon will stand.”(Sem surpresa a The Economist abre as suas colunas a quem apoia e a quem critica a sua opção, dando voz em On refusing and agreeing to speak at an event with Steve Bannon, a duas opiniões contrastantes.)
A posição diferente das duas revistas suscitou também ela bastantes comentários, como o de Bret Stephens no New York Times, que em Now Twitter Edits The New Yorker, considera que a cedência da revista à pressão das redes sociais coloca uma questão perturbante: “The next time we journalists demand “courage” of the politicians, let’s first take care to prove that we know what the word means, and to exhibit some courage ourselves.”
Sejá lá como for, tivesse ou não ocorrido esta controvérsia, o Macroscópio de hoje não poderia passar sem chamar a atenção para a importância do texto que faz a capa da The Economist, precisamente na edição em que a revista comemora o seu 175º aniversário: A manifesto for renewing liberalism: Success turned liberals into a complacent elite. They need to rekindle their desire for radicalism. Não tenho a pretensão de resumir o conteúdo deste documento cuja leitura considero fundamental, indispensável mesmo. Mas deixo-vos uma passagem, entre muitas outras possíveis: “True liberals contend that societies can change gradually for the better and from the bottom up. They differ from revolutionaries because they reject the idea that individuals should be coerced into accepting someone else’s beliefs. They differ from conservatives because they assert that aristocracy and hierarchy, indeed all concentrations of power, tend to become sources of oppression. Liberalism thus began as a restless, agitating world view. Yet over the past few decades liberals have become too comfortable with power. As a result, they have lost their hunger for reform. The ruling liberal elite tell themselves that they preside over a healthy meritocracy and that they have earned their privileges. The reality is not so clear-cut.”
Há neste manifesto tudo o que não há nas lutas tribais das redes sociais de que são reflexos tanto as polémicas sobre Serena Williams como os convites e desconvites a Steve Bannon. Para haver tribalismo não pode haver tribos só de um lado. As “bolhas” em que só se fala com os que concordam connosco podem ser confortáveis, mas cegam-nos para as realidades do mundo. E as apostas nas identidades como explicações que se sobrepõem aos argumentos e à inteligência podem começar por ser apenas formas de recusa de pensar para acabarem a cavar divisões que nos fazem recuar ao tempo dos extremos e das guerras civis. Por isso, e também porque hoje é sexta-feira e ao fim-de-semana podem ter mais tempo para ler, a minha última sugestão vai precisamente para uma crítica de Francis Fukuyama às políticas identitárias publicada na Foreign Affairs, Against Identity Politics – The New Tribalism and the Crisis of Democracy. Trata-se, de novo, de um longo e interessante ensaio a merecer leitura atenta, no qual se defende, em síntese, que “People will never stop thinking about themselves and their societies in identity terms. But people’s identities are neither fixed nor necessarily given by birth. Identity can be used to divide, but it can also be used to unify. That, in the end, will be the remedy for the populist politics of the present.”
E é tudo por hoje e por esta semana. Tenham bom descanso e melhores leituras, se possível com pontos de vista contrastantes que ajudem a abrir a cabeça, não a fecharmo-nos na nossa concha.
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