Uma nova norma clínica ditou o fim da proibição da dádiva de sangue para os homossexuais e bissexuais, mas a ILGA tem recebido denúncias de pessoas que veem a sua intenção de dar sangue recusada com base na orientação sexual
Não é nova a polémica da recusa da dádiva de sangue a homossexuais, mas uma publicação do Serviço Nacional de Saúde (SNS) nas redes sociais, na semana passada, fez soar os alarmes mais uma vez. “As reservas de sangue do tipo zero negativo (conhecido por O negativo) estão em baixa. Instituto Português do Sangue e da Transplantação apela à dádiva do sangue do tipo O negativo”, lia-se no alerta da entidade, lançado na última quarta-feira, dia 13 de março.
A publicação foi partilhada e comentada por várias pessoas, algumas delas queixando-se de continuarem a ser impedidas de dar sangue devido à orientação sexual, mesmo depois de, em Portugal, os homossexuais e bissexuais terem deixado de ser considerados um grupo com risco infeccioso acrescido. E ao i, a ILGA – Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual e Transgénero confirma a discriminação: “O que está a acontecer é que, ao longo destes últimos nove meses, temos recebido várias denúncias de pessoas – e normalmente são homens – segundo as quais, a partir do momento em que dizem que têm um parceiro, independentemente de há quanto tempo têm ou não essa relação, são automaticamente excluídas da doação de sangue, apesar de a norma não dizer isso”, lamenta ao i Marta Ramos, diretora executiva daquela associação. “Nos primeiros meses, quando a norma entrou em vigor, isso não acontecia, mas entretanto começámos a receber denúncias desse tipo”, acrescenta.
Em setembro de 2016 – como, de resto, o Instituto Português do Sangue e Transplantação (IPST) lembra ao i –, a Direção-Geral da Saúde (DGS) publicou uma norma clínica relativa aos “Comportamentos de Risco com Impacte na Segurança do Sangue e na Gestão de Dadores: Critérios de Inclusão e Exclusão de Dadores por Comportamento Sexual”, depois de 18 anos sem se mexer nessas regras. No documento, que esteve em consulta pública, passava a ser permitido aos homossexuais e bissexuais doarem sangue – o critério deixava de ser a orientação sexual, impondo-se que tanto homens como mulheres com contacto sexual com trabalhadores do sexo ou homossexuais e bissexuais esperassem um ano antes de doarem sangue, aplicando-se o mesmo requisito nos casos em que os potenciais dadores tivessem tido parceiros portadores de VIH. O mesmo documento retirava homossexuais e bissexuais da categoria de população com “risco infeccioso acrescido”. Em seis de fevereiro de 2017, contudo, a norma foi atualizada e os termos alterados: homens que têm sexo com homens (HSH) passaram a ser considerados como uma subpopulação com risco infeccioso acrescido.
Contudo, a norma mudou uma vez mais, no dia 16 de fevereiro do mesmo ano. E passou a não especificar subpopulações com risco acrescido: “O(s) indivíduo(s) com risco infeccioso acrescido para agentes transmissíveis pelo sangue foram avaliados em Portugal, em estudos realizados no ano de 2012. No entanto, evidência mais recente, a nível nacional e internacional, tem demonstrado que o risco acrescido varia de país para país. Por esta razão vai ser iniciado um estudo de investigação para avaliar o nível de risco no contexto cultural e social português”. O texto dava conta, ainda assim, de que “os critérios de suspensão baseados em comportamentos sexuais, incluindo sexo oral, estão indubitavelmente associados a um aumento de prevalência de doenças infecciosas, algumas das quais transmissíveis pela transfusão. Há um conjunto de variáveis que afetam o nível de risco por comportamento sexual: consumo de álcool e drogas previamente ou durante contacto sexual, número de parceiros (sequenciais ou concorrentes), práticas sexuais desprotegidas (para doenças infecciosas), parceiros com infeções sexualmente transmissíveis (IST), participação em práticas homossexuais ou heterossexuais anais”, mantendo, no entanto, a suspensão da dádiva por um ano nos casos em que se tivesse verificado contacto sexual com pessoas com risco infeccioso acrescido.
A sucessão de atualizações criou nos potenciais dadores e no público, como assinala Marta Ramos, alguma confusão. “A norma foi atualizada e há muita gente que continua a achar que a norma que está em vigor requer a abstinência de relações sexuais durante pelo menos um ano, mas essa não é a verdade. A norma que está em vigor não tem qualquer tipo de impedimento em razão da orientação sexual. Refere-se única e exclusivamente a comportamentos de risco que as pessoas podem ou não ter independentemente da sua orientação sexual”, explica a responsável ao i.
“Quando as pessoas nos contactam, aquilo que lhes pedimos é para apresentarem uma reclamação no livro de reclamações do estabelecimento – mas muitas vezes são carrinhas itinerantes, portanto é mais complicado. Aí, o que fazemos é pedir às pessoas para entrarem em contacto com o IPST e apresentarem uma reclamação por escrito”, esclarece Marta Ramos. Nalguns casos, contudo, a resposta do IPST tarda em chegar: “Algumas dessas pessoas dão-nos feedback a dizer que não têm resposta do IPST, o que é preocupante. Já encaminhámos também algumas pessoas para a provedoria de Justiça, que pede também que contactem o IPST e só depois, então, a provedoria pode atuar”.
Empenhada em chegar a uma resolução para determinar o fim da discriminação na dádiva de sangue, a ILGA pediu uma audição a Marta Temido assim que a nova ministra assumiu funções. Desde aí, a associação tem estado a colaborar não com a ministra da Saúde, mas com a secretária de Estado da Saúde, Raquel Duarte, “numa estratégia mais global em questão de orientação sexual e identidade de género”, que inclui também a questão da dádiva de sangue. E não planeiam questionar o IPST? “Ainda não o fizemos porque estamos à espera que alguns dos casos que estamos a acompanhar tenham ou não uma resposta por escrito do IPST para perceber o que se passa”, justifica Marta Ramos, que nota que nem sempre as dádivas são recolhidas por técnicos do IPST. “O IPST sempre se escudou no facto de, quando havia práticas discriminatórias, essas práticas poderem ter vindo de profissionais de outras áreas nas quais o IPST não tem competência para atuar. No entanto, pelo menos dois dos casos que estamos a acompanhar são de técnicos do IPST. Estamos a aguardar um prazo decente de resposta do IPST, mas uma não resposta também é uma resposta”, defende a diretora executiva da associação de defesa dos direitos LGBTI.
Fonte: Jornal i
Site oficial Litoral Centro http://litoralcentro-comunicacaoeimagem.pt/
Nenhum comentário:
Postar um comentário