quinta-feira, 22 de outubro de 2020

A arte de esconder o principal

 

  • Péricles Capanema

Em circunstâncias excepcionais pode ser virtuoso encobrir o fundamental. De outro lado, algumas vezes presenciamos o triste artifício de velar o principal, quando deveria estar desvelado. Na mesma direção, agravando, a censurável e até a criminosa maquiavelice de encapotar o principal, cujo conhecimento escarrapachado favoreceria o bem comum.

O conto de Pepe Ladino. Respiguei em papéis amarelados conto que vem ao caso. História narrada (relato resumidamente) desde começos do século XX, passa de pai a filho, deu-se em Tunja, cidade fincada na região colombiana de Boyacá. Viveu lá faz muito um homenzinho atarracado chamado pelos seus de Pepe Ladino, useiro e vezeiro trampolineiro que frequentava com olhos gordos os pontos de compra e venda de esmeraldas da cidade. Um belo dia entrou furtivamente numa casa antiga, que conhecia bem desde menino, pertencente a simpático e idoso casal de mineradores, Pancho e Concha, de momento empobrecidos. Lolita, a empregada, já meio cega, na residência desde adolescente, mantinha o local em perfeita ordem. Pepe Ladino, silencioso, abriu em cômoda da sala de jantar uma gaveta pequena, dali retirou o que hoje seriam 100 mil pesos colombianos (em torno de 150 reais), destinados a compras em um armazém. Sem que ninguém percebesse, levantou um taco no meio da sala, arrancou de dentro uma pedra verde, engoliu-a, colou a madeira de novo e perfeitamente, socou bem. Era esconderijo só conhecido dos donos da casa em que ficava oculta a mencionada pedra verde, na verdade valiosíssima esmeralda — brilho intenso verde escuro profundo levemente azulado, pureza perfeita, um tesouro. Pepe Ladino não parecia ter pressa. Tropeçou desajeitadamente num tapete puído e caiu. Lolita chegou correndo e gritou temerosa: “Dios mio, Flaco, o que está fazendo aqui?”. Flaco era o apelido de infância de José, conhecido no seu meio como Pepe Ladino. Flaco havia sido empregado naquela casa quando muito jovem; ali fazia pequenos trabalhos. Vez por outra ainda a visitava. Flaco lamuriou, estava morrendo de fome, sem emprego e sem tostão, queria só um dinheirinho para comer. Devolveu logo os 100 mil pesos para Lolita, que lhe deixou 5 mil pesos nas mãos. Foi embora choroso, pedindo mil desculpas, nunca mais repetiria coisa tão feia.

Pepe Ladino soube bem recuperar a esmeralda. Conhecia bem mina em Muzo, os pontos de comércio das pedras, tinha contatos, sabia onde colocar com bom preço a mercadoria valiosa afanada; e logo depois botou o pé na estrada, sumiu, nunca mais foi visto.

Os anos pingaram lentos. Tudo mudou muito na região. Pepe Ladino foi ficando figura esvaecida na memória local e acabou esquecido de praticamente todos. Pequeno acontecimento doméstico para o casal Pancho e Concha, uma neta querida iria se casar proximamente e a avó, finalmente, achou ótima aplicação para a esmeralda que guardara por décadas a fio. Venderia a joia; os recursos seriam usados na compra de um apartamento para a moça, bom começo de vida. Com cuidado arrancou o taco. Nada encontrou abaixo. Quem teria rapinado a esmeralda? Não existiam suspeitos. Sua neta ficou sem o apartamento. Ninguém desconfiou do Flaco, o menino bom que tantas vezes havia ajudado na casa.

O conto sobre Pepe Ladino atrai a atenção para realidades ocultas (as principais e as secundárias) em tantas situações mundo afora.

Principal e secundário no STF. Vou me deter hoje apenas sobre uma de tais situações, que atingirá a todos nós. Nela, o acobertamento do principal provavelmente lesará interesses do Brasil, de seu povo; em outra perspectiva, trucidará restos da civilização cristã entre nós. Começo.

Relator da indicação do desembargador Kássio Nunes Marques para a vaga do Supremo Tribunal Federal, aberta com a aposentadoria do ministro Celso de Mello, o senador Eduardo Braga (MDB – AM) divulgou parecer ditirâmbico sobre o candidato, entregue à Comissão de Constituição e Justiça do Senado. O magistrado, segundo o senador, é exemplo de “garra e perseverança”. Sem dúvida, boas características. A Constituição exige outros predicados, a mais de brasileiro nato, 35 anos, menos de 65 anos: notável saber jurídico e reputação ilibada.

O senador Eduardo Braga minimizou os longos e repetidos plágios atribuídos ao desembargador nas teses acadêmicas defendidas. Claramente ferem a conduta ilibada e o decoro que se exigem de um ministro do STF. Minimizou também, chamemo-las assim, as imprecisões, para não as qualificar de falsificações e inverdades, constantes do currículo do desembargador Kássio Marques. Erros de tradução, descuidos, críticas vazias de conteúdo, diria o relator, fatos sem importância. É claro, chocam os critérios de conduta ilibada de dona de casa comum. Não chocaram um senador da República.

Condições anacrônicas para a vida pública brasileira. Compreende-se, aliás; estamos todos habituados com nossos hábitos republicanos. Aqui a linguagem chula, o palavrão, na escrita e na boca, a má educação, já quase são obrigatórios para a vida pública. O primarismo boçal deixou de chocar. Está moribunda em nossa vida pública a noção central de ordem natural civilizada (muito aperfeiçoada ao longo dos séculos pelo perfume cristão) da obrigação moral de exemplaridade — do bom exemplo, enfim — que tem o superior (qualquer superior, na espécie, o homem público), expressa no caso pelo decoro, boa educação, compostura, gravidade, moralidade. E assim não espantam falsificar currículo e plagiar teses acadêmicas, na vida pública brasileira atual, “normal”, “faz parte”, “é do jogo”.

Esmeralda. Outro ponto, este mais importante. Poderá até surpreender à maior parte dos leitores, mas no caso do desembargador Kássio Marques, o currículo grosseiramente falsificado e os plágios deprimentes são enormemente secundários — os 100 mil pesos. Desviam a atenção do principal — a esmeralda. O principal se compõe de três pontos.

Primeiro ponto. Ampliação dos casos de aborto legal. A dissertação de mestrado do desembargador Kássio Marques discorre sem nenhum reparo sobre o aborto como direito da saúde da mulher. Cita Dworkin, diz que o Judiciário pode ser acionado para impor lei contra a maioria conservadora do povo. É ativismo judicial, retrocesso civilizatório. Poderemos ter ministro novo do STF votando a favor da ampliação dos casos de aborto legal permitido, calcando compromissos que todos julgavam sagrados na última campanha eleitoral e estapeando o eleitorado conservador que levou o Sr. Jair Bolsonaro à curul presidencial. Este ponto está detalhado em meu artigo “Nuvens negras”.

Segundo ponto. Opiniões favorecedoras do chavismo. Os ditadores Chávez e Maduro levaram a Venezuela por um caminho parecido com o de Cuba e sonhado entre nós pelos adeptos do petismo. Contra esta proposta foi eleita a chapa Bolsonaro-Mourão em 2018. A explicação desatinada que o douto Sr. Kássio Marques dá para o desastre venezuelano é exatamente igual à dos maiorais do petismo: o problema foi a queda dos preços do petróleo. Tal queda levou a Venezuela a “níveis de decréscimos econômicos jamais vistos”. Quando o preço estava bom, a propensão de sonhar com um chavismo róseo o levou a fantasiar sem amarras: “Com a alta do barril a Venezuela experimentou níveis de prosperidade jamais vistos”. O que mais interessa — as opiniões infelizmente deixam transparecer indisfarçável simpatia pela política chavista. Aqui também o tema está detalhado no artigo “Nuvens negras”. E aqui também, dói dizê-lo, sente-se estapeada a maioria antipetista que votou pela chapa vitoriosa em 2018, julgando que haveria rejeição enérgica às políticas de Chávez, Fidel Castro, Maduro. Irá se sentir traída no voto de 2018 se houver no STF (e lá já existem ministros simpáticos a medidas de esquerda) mais um ministro que vote habitualmente com eles.

Terceiro ponto. A execução da pena após condenação em segundo grau. Portanto, antes do trânsito em julgado da decisão. O STF mudou o entendimento por maioria apertada, 6×5 a favor da execução da pena só após o trânsito em julgado. Celso de Mello votou com a maioria. O desembargador Kássio Nunes Marques tem afirmado, é assunto para o Congresso. Ou seja, não irá mudar o rumo da atual maioria. E os jornalistas têm dito, os líderes partidários decidiram não decidir. Vão deixar como está, a Constituição não será tocada neste ponto. De outro modo, continuará aqui aberta a porta para a corrupção, praticada em grau amazônico durante a era petista. A decepção de setores que sonhavam com uma vida pública decente e temem a continuação de esquemas corruptos está em todos os meios de divulgação.

Mostrar os plágios e as falsidades do currículo evidenciam ausência da conduta ilibada e certamente indicarão falta de notável saber jurídico. Inabilitam para o exercício do cargo é o entendimento de grandes juristas e de políticos de destaque. No caso em questão, contudo, na prática, valem pouco; em linguagem figurada, uns 100 mil pesos. Postas as circunstâncias, é pouco provável que mudem os votos da maioria dos senadores. Tudo parece indicar, o acordo já está feito, dele participam dirigentes dos três poderes, envolve a maioria do Senado, o desembargador Kássio Nunes Marques foi aprovado. Só um fato de momento improvável determinaria o oposto.

Resta aos brasileiros preocupados com o futuro pátrio ter clara a noção de que o principal é manter viva a apreensão e a reação. Os indícios são de que correm sérios perigos no STF as instituições brasileiras enraizadas em nosso passado cristão. São ameaças iminentes, contínuas e de longa duração. O mais importante é a esmeralda; 100 mil pesos valem bem menos.

ABIM

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