“Nos dias de tempestade, dizem os pescadores, vê-se, no oco das ondas, as pontas das flechas de suas igrejas (da cidade de Is); nos dias de calma, escuta-se subindo do abismo das águas o som dos sinos”.
- PériclesCapanema
Paradoxos estonteantes. “Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra” (Mt 5, 4). “Mas os mansos possuirão a terra” (Sl 36, 11). “On ne règne sur les âmes que par le calme” (só se reina nas almas pela calma). Três citações, origens diferentes, as duas primeiras da Sagrada Escritura, a última de Talleyrand (1754-1838) (cito de memória, li em texto dele, pode ter origem diversa). Sempre me impressionaram pelo paradoxo atordoante. Aos mansos, não aos violentos e aproveitadores, está destinada a terra. Contrassenso à primeira vista, a sabedoria convencional diria o contrário: mansos não possuem nada, não conquistam nada, são presa fácil de oportunistas e ferozes. Quando os mansos conquistaram alguma coisa? Nunca, dir-se-ia. A terra não é dos conquistadores? O salmista afirma igual: “Os mansos possuirão a terra”. E o domínio dos espíritos (das almas) pertence aos calmos, serenos e sossegados, nunca aos endurecidos, enfurecidos e irrequietos, é convicção de um dos grandes diplomatas franceses. E de tantos outros. Tudo à primeira vista, repito, agride a sabedoria convencional. Quanto aos dois textos da Escritura, escrevo, claro, como observador comum, não pretendo entrar em exegeses bíblicas.
Exasperação suicida. Afundo no presente. No Brasil (de modo semelhante no mundo, “servata proportione”) fermentar exasperações de moralismo duvidoso tornou-se recurso usual dos que esperam com elas angariar adesão popular maciça. Em especial por meio das redes sociais, onde campeia a desinformação e a má-fé; o vale-tudo, enfim. “Eu vim para confundir e não para explicar”, a boutade de Chacrinha ganhou surpreendente atualidade, virou bússola para numerosos ativistas. Ficaram comuns as ondas de insultos e ataques, repito, de modo marcante nas redes sociais, em que a falta de escrúpulos, o relativismo moral, a boçalidade ufana, bem como o garganteio de argumentos toscos, a linguagem chula e a catadupa de palavrões se destacam como recurso habitual do embate político. Tudo isso pode gerar popularidade em certa faixa do público, contudo cria repulsa em outras; desprestigia. “On ne règne sur les âmes que par le calme”, advertiu o ladino Talleyrand.
O decoro esbofeteado na ânsia da popularidade. Não só o decoro; também a correção. No sopesamento de vários fatores, tal tipo de popularidade, parece, mantém abertas as possibilidades para vitórias eleitorais em 2022. Vai valer a pena lá na frente? Não creio. Popularidade evapora fácil; sua perda pode deixar sequelas graves.
Afastamento, desgaste, cansaço, desilusão. Consequência da estratégia acima esboçada em traços rápidos, hoje a popularidade de algumas correntes e líderes está se nutrindo largamente no pântano da exasperação. Não irei aqui analisar aspectos do fenômeno no âmbito da esquerda, limitar-me-ei à direita e ao centro. Nas possibilidades de expansão do centro e da direita deixará feridas de cura difícil, já que provoca aversão no brasileiro decente, acostumado com correção e bons modos, segmento gigantesco. Agastamento que se manifesta no afastamento, cansaço, desilusão. E, com isso, no debate público, já agora, está órfã faixa sadia do público; “sanior pars” autêntica, sobre a qual discorri em artigo anterior. Esta parte, uma “cathédrale engloutie” no mar da opinião brasileira, pode decidir o rumo das eleições em 2022 — não nos surpreendamos, ojo! Tentemos ouvir o bimbalhar de seus sinos, pois os mansos possuirão a terra. Faço um desvio: a catedral submersa é um prelúdio de Claude Debussy, que tem como inspiração lenda bretã. Existiria, perto da ilha de Ys, submersa, uma catedral que mostra as flechas de suas torres nas manhãs claras e bimbalha seus sinos. “Nos dias de tempestade, dizem os pescadores, vê-se, no oco das ondas, as pontas das flechas de suas igrejas (da cidade de Is); nos dias de calma, escuta-se subindo do abismo das águas o som dos sinos”, escreveu Ernest Renan (1823-1892) sobre a lenda.
A pacatez enjeita exasperações. Volto ao tema. Arrisco-me a estar completamente errado, mas desconfio que hoje, políticos dos mais variados quadrantes que apostam na tensão artificial e tantas vezes oca, perdem contato, cada vez mais, com o que qualifiquei de “sanior pars”, a faixa mais sadia do público. Ela gosta do decoro, da compostura, da boa educação, da inteligência e da argúcia na cena pública. Abomina ambientes convulsionados — o setor é aparentado com os mansos, têm relações próximas. Busca a resolução de dificuldades de seu quotidiano, desinteressa-se pela encenação postiça e grandiloquente de disputas sem conteúdo. Em 14 de dezembro de 1982 em artigo na “Folha de S. Paulo”, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira analisou os resultados eleitorais de pleito recente, em que ele reconhece, a esquerda tinha levado a melhor:
“O fato palpável, certo, indiscutível, sobre o qual mais diretamente incide nossa atenção, é esse inegável progresso da esquerda. […] Desdenho o procedimento do avestruz que, quando se aproxima o inimigo, mete a cabeça num monte de areia.”
Mas observa, havia perigo para todos no aproveitamento dos resultados:
“Em outros termos, se os esquerdistas, ora tão influentes no Estado (Poderes 1, 2 e 3), na Publicidade (Poder 4) e na estrutura da Igreja (Poder 5), não compreenderem a presente avidez de distensão do povo brasileiro, deixarão de atrair e afundarão no isolamento. Falarão para multidões silenciosas no começo, e pouco depois agastadas”.
Os perigos continuam a existir na presente quadra histórica. Os pacatos também têm parentesco com os mansos.
Avidez de distensão. Continua o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira:
“A História dá inúmeros exemplos de regimes que não se mantiveram porque não souberam entender coisas destas. Soube compreendê-las, por exemplo Luís XVIII o monarca criptoesquerdista, voltairiano e ladino. Por isto morreu tranquilamente no trono da França em 1824. Sucedeu-lhe Carlos X, seu irmão cavalheiresco, distinto e gentil como um raio de sol, deleitável no trato como um favo de mel. Mas ele era um bom direitista, ao qual faltava (como isso é frequente entre direitistas) qualquer sutileza política. Pôs-se ele a governar contra a esquerda com um afinco e uma precipitação que pôs aos berros o setor visado. A bem-amada modorra se foi rarefazendo. A maioria abandonou Carlos X que caiu no vácuo. Substituiu-o — grande “virtuose” em operar distensões — Luís Felipe, o rei burguês, o ‘rei-guarda-chuva’, o qual ficou no trono até que, cansada por fim de pacatez, em 1848 a França o atirou ao chão”.
Quem avisa, amigo é. Vai adiante o artigo:
“O Brasil de hoje quer absolutamente pacatez. Se a esquerda vitoriosa não souber oferecê-la, esvanecer-se-á. Se o centro e a direita não souberem conduzir sua luta num clima de pacatez, terá chegado a vez deles se esvanecerem. Bem concebo que algum leitor exasperado me pergunte: mas, afinal, quem ganha com essa pacatez? — Até aqui não tratei disto. Mostrei que perderá quem não a souber ter. Quem ganhará: a direita? o centro? a esquerda? — Quem conhecer as verdadeiras fibras da alma brasileira e souber entrar em diálogo pacato com essas fibras”
2022 terá muito de 1982. Sei, 1982 era uma realidade, 2022, outra. Tanto assim diferente? No frigir dos ovos, lá na frente, os pacatos, triunfantes, (aparentados com os mansos) podem empurrar os exasperados, vencidos, para fora do tabuleiro. E que sejam preservados o ânimo e a capacidade de ação em especial da “sanior pars”, mansa, em boa parte pacata. O futuro do Brasil depende de como ela se fortaleça e prospere. Bem-aventurados os mansos.
ABIM
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