quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

DA UTOPIA À BABEL

 

Trinta anos depois do Tratado de Maastricht, a substituição da Cristandade pela utopia de uma República Universal é meta da Revolução anticristã. O fracasso e a agonia daquele Tratado inverteram os rumos.

  • Luis Dufaur

Fonte: Revista Catolicismo, Nº 854, Fevereiro/2022

Num dia 7 de fevereiro, há exatos trinta anos, na cidade holandesa de Maastricht, os chefes de Estado e governo dos 12 países que então constituíam a União Europeia (UE) assinaram um Tratado de repercussão mundial, cujas consequências ainda abalam a Europa e o mundo.

Desde o Tratado de Bruxelas de 1948, uma sucessão de acordos — aceitos até com agrado pela opinião pública devido aos benefícios econômicos e a paz que prometiam — foi modelando a futura UE. Mas, depois do Tratado de Maastricht, tudo iria mudar.

Basta ver a rumorosa saída da Grã-Bretanha da UE (o Brexit); os contínuos protestos contra a cúpula da UE sediada em Bruxelas; as decisões do Parlamento Europeu, com sede em Bruxelas e Estrasburgo. Ainda há pouco, por ocasião da passagem do ano 2021/2022, a bandeira da UE foi retirada apressadamente do Arco do Triunfo, em Paris [foto abaixo], devido à forte indignação popular que suscitou.1

Parlamento Europeu em Estrasburgo

Longa e cuidadosa manobra

Os tratados iniciais primavam pela ambiguidade sorrateira entre o que seus inspiradores utopistas e redatores diziam e o que visavam. Poucos discerniram o que eles traziam no bojo. Exemplo desses raros espíritos com discernimento foi o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, que em 1950 visitou a Europa, esperando encontrar líderes conservadores legítimos — chefes de casas reais, dignos eclesiásticos, nobres e militantes — que defendessem a integridade da Cristandade.

Na sala de espera da casa de Dom Roger Beaussart (1879-1952), Bispo-auxiliar de Paris, ele conheceu um distinto nobre, amigo do eclesiástico, que o convidou para um almoço no seleto Automóvel Club, onde lhe fez uma confidência: “A Europa está mudando de um modo inimaginável, porque em vez de caminhar para uma dilaceração entre as correntes de opinião que a dividem, pelo contrário, caminha para uma síntese. Está sendo preparada uma Europa unida, cujo centro será, provavelmente, Estrasburgo.

“Está sendo preparado um Parlamento e um governo da Europa que farão desaparecer as diversidades nacionais. Vão ser eliminadas as fronteiras alfandegárias […] A Europa terá, portanto, um só mercado consumidor, com uma só indústria e um só comércio geral. No interior dos países haverá uma composição desde o partido comunista até as correntes monarquistas mais radicais. […]

“As Casas Reais e a antiga nobreza vão mandar deputados para o Parlamento de Estrasburgo. E o senhor poderá ver sentado o Arquiduque Otto de Habsburgo e a expressão mais moderna de extrema esquerda caminhando no mesmo rumo”.Naquele instante, Plinio Corrêa de Oliveira discerniu que tal plano era uma manobra para extinguir os restos da Cristandade, carregados de bênçãos, aos quais ele havia consagrado sua vida, seu coração e seu porvir.

Afinal, o resultado do plebiscito francês foi angustiante para os “maastrichtianos”, Mitterrand não venceu como queria, o Tratado não convenceu, passou muito apertado, forçado e a contragosto. Jornal italiano e conhecida revista grancesa noticiam o desastre

O pior acontece

Nos anos seguintes, a “confidência” revelada a Dr. Plinio em Paris tomou corpo na pirâmide burocrática dos tratados e acordos acima referidos. Por fim, no início dos anos 90, o objetivo que a manobra ocultava estava sendo articulado para pô-lo em prática. Políticos utopistas, pragmáticos ou sonhadores, revolucionários ou conservadores, anunciavam em jornais e livros que a hora crucial para por em prática a “confidência” — até então meio secreta — havia chegado.

O Tratado de Maastricht iria decretar o fim das soberanias dos países membros, ou seja, a sua morte. A redação do Tratado era ininteligível para a quase totalidade dos homens, mesmo para os mais habituados ao linguajar jurídico e diplomático. Maastricht preludiava outras fusões em grandes grupos geográficos — como foi o caso do nosso pernibambo Mercosul —, que no final se unificariam numa imensa República Universal, velho sonho anticristão.

Naqueles anos, jovens europeus discípulos de Dr. Plinio que se encontravam na capital paulista me convidaram para ajudá-los no extenuante esforço de ler, desintrincar e resumir a vasta documentação oficial relativa à manobra. Reunimo-nos numa comissão e, uma vez vista toda a matéria, expusemo-la ao Dr. Plinio. Para ele, a novidade estava só na explicitação com que os fautores do Tratado de Maastricht efetivavam a velha “confidência” de Paris no longínquo ano de 1950.

Um inesperado e um fracasso

O volumoso, indigesto e confuso Tratado de Maastricht

Numa dessas conversas, Dr. Plinio disse algo que muito nos impressionou: “Eles têm uma consciência muito grande de que estão dando um passo perigosíssimo que pode dar numa catástrofe […]. No fundo, trata-se da implantação de uma ditadura mundial, porque todas as nações ficam sujeitas a um plano feito por tecnocratas a serviço de utopistas, que no fundo são ocultistas que querem implantar uma irreligião nova e um mundo novo. Os utopistas exigem dos tecnocratas algo que tem um risco medonho”.

Em seguida Dr. Plinio explicitou o que chamou de “risco medonho”: “Mesmo uma nação de dimensões pequenas, se bem de grande cultura, como a Dinamarca, que recuse o plano da unificação europeia, pode encrencar toda a manobra. É a famosa metáfora do carro guiado por muitas juntas de bois. De repente um boi resolve se deitar na estrada e para tudo”.3

O Tratado assinado deveria ter uma ratificação solene segundo as Constituições de cada país, pois exigia renúncias às respectivas soberanias. Em junho de 1992, enquanto participava da Eco-92 no Rio de Janeiro visando documentar o que a ecologia gestava para o futuro, vi estarrecido num quiosque, uma manchete de que o povo da Dinamarca recusara em plebiscito o Tratado de Maastricht. E se um país não o ratificava, o Tratado ficava inválido. A previsão do Dr. Plinio, feita numa reunião de comissão, havia se cumprido com a recusa da Dinamarca!

Voltando para São Paulo, os jornais traziam mais uma “bomba”: o presidente socialista da França, François Mitterrand, havia convocado um plebiscito extraordinário — não requerido pela Constituição — visando obter um voto esmagador que deixaria a Dinamarca de queixo no chão. Todas as normas francesas para manifestações públicas estavam suspensas e todos os europeus presentes no país poderiam agir livremente para falar do Tratado.

Foi assim que a massa dos políticos, sindicalistas, mídias etc., da Europa e do mundo se engajou para atender ao pedido de Mitterrand. Filósofos, escritores, políticos e eclesiásticos esquerdistas, liberais ou conservadores faziam lobby sobre o eleitor da França. O líder socialista espanhol Alfonso Guerra disse: “Ficamos vesgos de tanto olhar para o que acontecia na França”.

O presidente Mitterrand enviou um documento para cada francês explicando o que dizia o Tratado que ninguém entendia. Na capa só constava: “Lettre à tous les Français”, de punho e letra do próprio presidente. Plinio Corrêa de Oliveira teve em mãos um exemplar desse documento e comentou a inteligência do golpe, dado com o talento francês. Tudo foi posto em ação para obter o resultado visado.

Heroica campanha

Estátua de d’Artagnan em Aldenhofpark, Maastricht

Mas a Société française pour la défense de la Tradition, Famille et Propriété (a TFP francesa), com o contributo pessoal de militantes de outras TFPs europeias, saiu às ruas em campanha distribuindo o manifesto “A TFP diz não a Maastricht. Pode-se aprovar um tratado ininteligível?”. O manifesto foi publicado em sua íntegra no jornal Le Quotidien de Paris em 18-9-1992. Era a luta de David contra o Golias do establishment político-midiático internacional. As faixas com slogans da TFP passaram a incluir o perfil de um mosqueteiro — o histórico d’Artagnan, morto na tomada de Maastricht nas guerras de Luís XIV — com a frase: “1673: d’Artagnan morre em Maastricht – 1992: Maastricht se esforça para matar a França”. Mais ainda, a TFP francesa inaugurou uma flor de lis dourada no topo dos mastros de seus estandartes grandes. O público francês não precisava mais: ficava evidente a oposição ao Tratado de Maastricht e que este se opunha à Cristandade e à autêntica França.

O manifesto esclarecia concisamente a essência do Tratado: que ele se articulava em eixos fundamentais que feriam a soberania do país que o assinasse; que extinguia as Forças Armadas e a defesa nacional; instaurava uma moeda única (o atual euro); acabava com a política externa e de segurança independente; abolia as fronteiras entre os países membros; criava uma “cidadania europeia” e corroía as nacionais; fundia gradualmente os Poderes Judiciários num só poder europeu; impunha uma política ambientalista única; e, por fim, não concedia nenhuma opção para se abandonar o Tratado.

Quem mandaria no topo da pirâmide de dependências burocráticas criadas ou reforçadas pelo Tratado? Depois de ponderar todos os dados, o manifesto da TFP francesa foi taxativo: “Nas culminâncias do edifício comunitário, seus chefes planarão a uma altura que se verifica menos em um avião do que em um disco-voador […]. Será inevitável que no alto dessa União Europeia se forme uma nomenklatura como foi, na ex-URSS, a nomenklatura soviética”.4

Afinal, o resultado do plebiscito francês foi angustiante para os “maastrichtianos”: um empate técnico que um grande jornal qualificou de resultado “ni-ni” (nem sim nem não); outro periódico deu o título: “Ou…i”, e outro “Le petit Oui”, e um britânico: “So narrow” (“Estreito demais”). “Maastricht está morto no espírito da quase totalidade dos franceses”, escreveu Jacques Calvet,5 um dos redatores do Tratado. Mitterrand não venceu como queria, o Tratado não convenceu, passou muito apertado, forçado e a contragosto.

Das análises de jornais e intelectuais franceses, Dr. Plinio tirou a seguinte conclusão: “Com esse resultado, o plano todo do Tratado dá a impressão de um animal ferido por um tiro numa parte substancial e se arrasta sangrando sobre a lama ou sobre a neve, e que não sabe para onde andar. Eles não estão conseguindo levar a opinião pública para onde querem porque o cetro da mídia não comanda mais. O que resta à pessoa que tem o poder na mão? É virar a mesa. Nós vemos cada vez mais as incógnitas fazerem uma torre de Babel a partir da qual ninguém sabe para onde as coisas vão”.6

A TFP francesa saiu às ruas em campanha distribuindo o manifesto “A TFP diz não a Maastricht. Pode-se aprovar um tratado ininteligível?”. Na foto, em frente à Catedral de Notre-Dame de Paris.

Utopia substituída por Babel

Numa trapaça histórica, os mesmos chefes de Estado reformaram a recusada Constituição Europeia com o nome de Tratado de Lisboa, com a condição de que ele não seria submetido ao voto popular

O plano de Maastricht ainda avançou, mas colidindo com uma opinião pública que já não temia contestar a cúpula da União Europeia. Em 29 de outubro de 2004, os chefes dos países da UE apresentaram uma Constituição Europeia elaborada sob a batuta do ex-presidente francês Valéry Giscard d’Estaing7 que radicalizava Maastricht. Mais uma vez, o povo francês tinha que aprová-la em plebiscito. E em maio de 2005 os franceses a repeliram, sendo acompanhados em junho do mesmo ano pelo povo holandês. Os países membros eram então 25, e apenas 18 confirmaram.

Numa trapaça histórica, os mesmos chefes de Estado reformaram a recusada Constituição Europeia com o nome de Tratado de Lisboa, com a condição de que ele não seria submetido ao voto popular. Esse Tratado entrou em vigor no dia 1º de dezembro de 2009, porém com tantas emendas, ressalvas, contorções jurídicas e ‘colas’ de outros tratados para conseguir o consenso dos países descontentes, que perdeu o caráter de uma Constituição válida para todos.

A história da marcha do “animal ferido que se arrasta sangrando sobre a lama ou neve” continua até os presentes dias sob a forma da extensíssima onda de protestos populares contra o “disco voador” que comanda a UE. Merece destaque a ruptura definitiva da Grã-Bretanha com a UE, que submergiu a utopia maastrichitiana num caos de negociações e disputas.

 Também se podem assinalar as intérminas e furiosas oposições da Polônia e da Hungria às ameaças ditatoriais da UE, por esta se opor às reformas de estruturas do tempo soviético e lhes querer impor a agenda LGBT e normas contrárias à família. Há ainda as exceções ao Acordo de Schengen, que regulava a livre circulação dos cidadãos comunitários estipulada no Tratado de Maastricht. Acrescem-se a exigência da Suécia de não adotar o euro para assinar o Tratado de Maastricht e a recusa de 76.8% da população da Suíça de ingressar na UE.

Balanço 30 anos depois

Três décadas depois, o Tratado de Maastricht ainda vive, ou morreu? O “animal ferido” exala bafejos agônicos, porém a utopia não morreu. Outras mãos tentam recolher a tocha que bruxuleia no chão. De Moscou, Vladimir Putin insiste na quimera da Eurásia — uma nova União Europeia do Atlântico até Vladivostok, cuja capital estaria em Moscou, e não em Bruxelas.

Putin acrescenta uma enganação bem no estilo da KGB, na qual ele se formou: essa nova EU, ou Eurásia, seria “conservadora”. Como prova, irriga com dinheiro movimentos e líderes conservadores opostos aos diktats de Bruxelas. Resta ver se essa proposta seduzirá os melhores. Se não o conseguir, Putin não esconde a vontade de partir para uma guerra, ameaçando ou mesmo invadindo a Europa.

Também Pequim rumina essa utopia e constrói uma ciclópica nova “Rota da Seda”,8 que conectaria com as mais avançadas tecnologias povos a ela escravizados. Essa “rota” atravessaria a Europa e a Ásia, entraria pelo mar no Alasca, e no Peru — pelo sul, furando os Andes, rasgando a Amazônia e chegando às grandes cidades brasileiras na costa atlântica, até atingir um Polo Logístico Antártico na Argentina. O plano é para além de ousado e ainda em vias de execução, mas o sonho anticristão é o mesmo.

Assim sendo, onde está a verdadeira esperança? Só numa magnífica reação do ideal de Cristandade, como acenou Plinio Corrêa de Oliveira: “Quando os homens resolvem cooperar com a graça de Deus, são as maravilhas da História que assim se operam: é a conversão do Império Romano, é a formação da Idade Média, é a reconquista da Espanha a partir de Covadonga, são todos esses acontecimentos que se dão como fruto das grandes ressurreições de alma de que os povos são também suscetíveis. Ressurreições invencíveis, porque não há o que derrote um povo virtuoso e que verdadeiramente ame a Deus”.9

A recusa do Tratado de Maastricht poderia inserir-se numa reação que dá continuidade a esses grandes ressurgimentos católicos.

Manifesto da TFP francesa: “Será inevitável que no alto dessa União Europeia se forme uma nomenklatura como foi, na ex-URSS, a nomenklatura soviética”

ABIM

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Notas:

  1. Reuters, https://www.reuters.com/world/europe/eu-flag-removed-arc-de-triomphe-after-causing-stir-2022-01-02/
  2. “Minha Vida Pública”, pp. 393 e ss., Artpress, São Paulo, 2015.
  3. Anotações 27-12-89.
  4. “Le Quotidien de Paris”, 18-9-1992.
  5. “Le Monde”, 27/28-3-94.
  6. Anotações 12-10-92.
  7. Cfr. Wikipedia “Treaty establishing a Constitution for Europe”, https://en.wikipedia.org/wiki/Treaty_establishing_a_Constitution_for_Europe.
  8. Durante séculos os artigos preciosos da China: especiarias, sedas, marfins, porcelanas etc. foram levados por imensas caravanas que iam até o Mediterrâneo. Os comerciantes venezianos os revendiam por toda a Europa. Essas caravanas faziam a chamada “Rota da Seda”, possuiam muitos percursos e recolhiam preciosidades da Índia; tapeçarias da Pérsia etc. Hoje Pequim está refazendo a nova “Rota da Seda”: uma imensa e variada rede de autopistas, trens e portos para inundar o mundo com mercadorias e agentes do Partido Comunista Chinês.
  9. Plinio Corrêa de Oliveira, Revolução e Contra-Revolução, Parte II, Cap. VII, nº 2, Artpress, São Paulo, 1998.

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