Izabel
Sadalla Grispino *
“A
alma de toda cultura é a cultura da própria alma”, já diziam os filósofos
gregos.
Em
meio a tanta desorganização, a tanta frustração na correspondência de atitudes humanas,
presencio, comovida, uma clínica médica – Serviço de Nefrologia de Ribeirão
Preto – de atendimento alentador, em termos de humanização e de qualidade de
serviços prestados. É dirigida por médicos de alto gabarito, de indiscutível
competência, factor, por si só, indicador de tranquilidade, de confiança no
tratamento ministrado.
Nela,
há uma preciosa interacção médico-paciente. Uma actuação cuidadosa de todos, na
busca de melhor qualidade de vida aos doentes. Este é colocado em primeiro
plano. Tudo é programado a seu favor, em seu benefício. É clínica com status de
escola, além dos cuidados médicos, ensina, orienta, apoia, respeita a dor, as
queixas, compreende a revolta, o medo que a doença traz. Cuida do contexto
geral do paciente. Junto à técnica, ao conhecimento, cultiva-se a
sensibilidade, a cultura humanitária, a consciência social de ajuda a quem
sofre, ricos ou pobres, às desigualdades reinantes na sociedade.
Esta
clínica revive, em mim, comportamentos familiares, exercitados por dois irmãos
médicos, José e Elias, um deles, José, já falecido, que, por seu idealismo, seu
devotamento aos doentes, recebeu o cognome de apóstolo da medicina, dado por
seus conterrâneos. Numa visão avantajada, Dr. José aplicava ao doente a visão
holística, preocupado com sua integralidade, vendo-o no seu todo, nos seus
aspectos, físico, mental, emocional. Tinha seu olhar voltado mais para o
doente, como ser humano passível de fragilidade, apreensões, inseguranças, do
que para a doença. Cada doente confere uma especificidade peculiar à doença,
dizia ele, por isso, temos que tratar o doente para chegar à doença.
A
minha aproximação com a clínica deu-se através de um irmão, Jorge, doente renal crónico, necessitado de hemodiálise. Foi uma aproximação gradual, que se
acentuou com as reuniões mensais realizadas com os paciente do turno e com seus
familiares, congregando clínica, paciente e família.
Assisto,
há dois anos, às reuniões do turno em que meu irmão faz a hemodiálise. Todas
elas presididas pela médica Maria
Terezinha Infantosi Vannucchi. Dra. Terezinha sempre se faz acompanhar de uma
outra colega ou de uma enfermeira, ou de ambas, e quando há orientações
burocráticas a passar – preenchimento ou renovação de fichas, encaminhamento de
receitas, de exames clínicos etc. – também de um funcionário da secretaria.
O
doente, nessa clínica, caminha confiante, bem informado, orientado passo a
passo, com cordialidade, com afecto. Dra. Terezinha tem a faculdade de conduzir
a reunião com descontracção, brincadeiras, tiradas jocosas, fazendo um ambiente
alegre, apesar – ou por causa – da seriedade que a doença imprime.
Nessas
reuniões, ela faz um balanço geral dos acontecimentos ocorridos no turno
durante aquele mês. Após os cumprimentos calorosos, geralmente inicia-as
dizendo: “Neste mês, felizmente, não perdemos ninguém ou perdemos fulano de
tal, que partiu, deixou este plano, com certeza está redimindo, no outro lado,
tudo que passou por aqui”.
Trata
a morte como fato natural, como fato que envolve a todos nós, seres mortais,
doentes renais ou não. É como se dissesse: essa senhora, a dona morte, uma
nossa antiga conhecida, vem a passos curtos ou a passos largos, mais cedo ou
mais tarde, a todos alcançar e a todos igualar. Ela é de todos e a todos
pertence; tratemos de nos cuidar, de viver o melhor que pudermos para atrasar
sua vinda. Consegue desanuviar os semblantes, tirar o pavor da morte em termos
pessoais. Faz-nos sentir que navegamos num mesmo barco, barco dos conflitos,
das apreensões, das alegrias e tristezas, que a existência nos oferece. O que
faz a diferença no barco é a característica do problema, “para uns, de um
jeito, para outros, de outro jeito”.
Um
grande respeito ao enfermo nota-se quando a doutora os nomeia – eles não são um
número – fala a todos declinando os seus
nomes, que são muitos, o que comprova a aproximação, o contacto directo e frequente por parte dela. Conhece bem a todos, comenta caso a caso, deixando
passar coragem, perspectiva de vida boa, embora bem limitada. Consegue melhorar
o astral, a auto-estima, fazendo-os se sentirem capazes de sonhar, de ainda
construir. Essas reuniões são verdadeiras terapias de apoio.
Forma-se,
ali, uma grande família de doentes renais crónicos, confraternizando-se, solidarizando-se na esperança e na dor. Todos participam da vida de todos,
conhecendo os problemas específicos de cada um.
A
capacidade de entrega, de falar a linguagem do amor, de amenizar as dores, de
sorrir, coloca, nessa insigne doutora, o distintivo das mãos estendidas, da
fraternidade, da estrela que traz o brilho da esperança. Permita Deus que tal
comportamento contamine, se prolifere, resgatando, na praxe médica, a
consciência ética, religiosa, valores, hoje, tão esquecidos da sociedade como
um todo.
Vivendo
as emoções e o espírito das reuniões, fiz estes versos:
RECICLAR-SE
PARA VIVER
Quando a dor vem e vai a esperança,
Lembre que o sol sempre aparece,
Que há entre Deus e o homem forte aliança,
Que o sol se põe e a noite acontece.
Depois do tombo vem o sorriso,
Todos passam pelo mesmo ciclo,
Dente de leite e dente do siso,
Ninguém foge da dor, do conflito.
Acreditar, caminhar com fé,
Saber esperar, ter paciência,
São as armas dessa existência.
A mente é dona da alta maré,
Como a avestruz, se enterra no escuro,
Como a fénix, voa para o futuro.
* Supervisora de ensino aposentada
(Publicado em abril/2001)
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