terça-feira, 11 de abril de 2017

VOLTA NIXON, ESTÁS PERDOADO


O acto de coscuvilhar a vida alheia banalizou-se tanto como tirar selfies. Por que raio o cidadão Trump – embora sendo mais cidadão do que os outros – haveria de ser excepção se excepção não foram, por exemplo, a Senhora Merkel, a legítima presidenta Dilma e outros amigos, aliados, inimigos e assim-assim?

José Goulão | AbrilAbril, opinião

pesar de todos os desmentidos e das mil e uma juras de inocência, parece estar hoje confirmado que as agências de espionagem norte-americanas, então sob as ordens da Administração Obama, escutaram as conversas e esmiuçaram a vida do candidato presidencial Donald Trump e sua gente, procurando tirar proveitos eleitorais em favor da candidata Clinton.

É verdade que, tendo em conta a realidade dos tempos modernos e o folclore circense em que se transformaram a política de Washington e o seu proclamado respeito pelos direitos dos cidadãos, haver espantação e especulação em torno de tal assunto é facto merecedor de registo.

Ao longo das décadas mais recentes acumularam-se as evidências de que os presidentes norte-americanos e as NSA's, CIA’s e FBI’s, mais os Google’s e Yahoo’s ao serviço do tentacular aparelho administrativo imperial de devassa, espiolharam a vida de toda a gente em todo o mundo recorrendo à infernal parafernália tecnológica e intrusiva de que foram dotados.

O acto de coscuvilhar a vida alheia banalizou-se tanto como tirar selfies. Por que raio o cidadão Trump – embora sendo mais cidadão do que os outros – haveria de ser excepção se excepção não foram, por exemplo, a Senhora Merkel, a legítima presidenta Dilma e outros amigos, aliados, inimigos e assim-assim?

WikiLeaks e Edward Snowden demonstram-nos que, hoje em dia, governar é espiar; e a solidez do poder é directamente proporcional à capacidade para conhecer e tirar proveito das incidências da vida dos cidadãos contribuintes, eleitores, dirigentes ou mesmo pares em funções. Por isso, seguindo a ordem corriqueira das coisas, o sistema global de olhos e ouvidos que serviu Obama e outros estará hoje sob comando de Trump, porque não é uma extensão do poder discricionário deste ou daquele presidente mas sim uma comunidade que faz funcionar um monstruoso big brother indissociável do sistema de dominação global.

Porta-vozes de Obama e Hillary Clinton desfazem-se em justificações para alegar que nada queriam saber da vida do seu rival eleitoral, nem poderiam querer saber porque isso iria contra os seus «princípios». Ora todos estamos cientes: é a verdade da mentira.

Porém, Devin Nunes, um republicano que preside à Comissão de Informações da Câmara dos Representantes, veio dar conta de que lhe chegou às mãos um relatório onde se admite que a NSA (Agência de Segurança Nacional), a CIA e o FBI espiaram Trump por conta de Obama e a favor de Clinton, mas tudo não passou de um lamentável processo «acidental».

O documento explica que Trump e os membros da sua equipa de campanha foram escutados secretamente, em telefonemas privados, porque os seus interlocutores de ocasião eram pessoas que estavam sob vigilância – as informações são omissas sobre o facto de se tratar, ou não, de escutas com ou sem mandato judicial. Isto é, Trump e os seus apenas foram escutados por tabela, um argumento tão óbvio que já está desacreditado nas nossas prosaicas guerras domésticas de que são intérpretes os espiões do forte da Ameixoeira.

Um tal «acidente» não aconteceu apenas no território dos Estados Unidos; vale por dizer que os atarefados olhos e ouvidos não enxergam e escutam apenas a partir dos centros imperiais, o que só pode surpreender quem desconhece a existência dos «cinco olhos»; não a régua com que os mestre-escolas sovavam os alunos de antanho, mas sim as cinco pontas da espionagem universal anglo-saxónica: Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia.

Daí que tenha sido apurado, pelo menos, o envolvimento do GCHQ do Reino Unido na devassa da campanha de Trump, o que foi prontamente desmentido pela nobre espionagem de Sua Majestade. No entanto, foi esta a ocasião que o espião-mor do reino e do GCHQ, Robert Hannigan, escolheu para se demitir, invocando razões pessoais, sendo substituído por Jeremy Fleming. Branco é, galinha o pôs.

Voltemos às explicações de Devin Nunes, para tentar perceber um pouco melhor o caso da «espionagem acidental». O deputado validou esta versão tornada pública, mas não deixou de estranhar um facto: ao contrário do que é costume com a documentação do género que recebe na sua função de presidente da Comissão de Informações da Câmara dos Representantes, o relatório em causa omite o nome das pessoas sob escuta que falaram ao telefone com Donald Trump e os seus servidores de campanha.

O facto censório deu que pensar a Devin Nunes – e faz-nos pensar a todos – sobretudo se tivermos em conta que o documento reconhecendo as escutas «acidentais» foi assinado por quatro pesos pesados da anterior administração: Susan Rice, embaixadora de Obama nas Nações Unidas; Ben Rhodes, conselheiro adjunto de comunicação e, por sinal, subscritor do relatório que fixou a versão oficial dos atentados de 11 de Setembro de 2001, portanto um guru da propaganda; John Brenan, director da CIA; e o super espião James Clapper, chefe dos chefes da confraria das agências de espionagem norte-americanas.

O «acidente» das escutas de um candidato presidencial em plena campanha não é assunto virgem nos Estados Unidos. Em 1972, há 45 anos, espiões ao serviço do presidente e candidato republicano, Richard Nixon, instalaram a parafernália intrusiva possível nessa época para registarem imagens e conversas no edifício Watergate, sede do Partido Democrático e da campanha do candidato presidencial Richard McGovern.

A trama foi desvendada por dois jornalistas do Washington Post, Bob Woodword e Carl Bernstein, graças às denúncias de um informador, conhecido por «garganta funda» e que, 30 anos depois, veio a ser identificado como William Mark Felt, ao tempo subdirector do FBI. Provou-se que Nixon sabia de tudo e, além disso, já como presidente, fez diligências para perturbar as investigações oficiais. Acabou por renunciar a meio do mandato, em 1974. Foi assim o «Caso Watergate».

Quarenta e cinco anos valem uma gota na História. Mas bastam para que se perceba a velocidade a que se degradaram a ética política e o comportamento da comunicação social dominante. O que foi um episódio dramático, com sérios custos para dirigentes do mais poderoso país do mundo, então envolvido também em guerras como a do Vietname, transformou-se hoje num mero «acidente», um fait divers que, no fundo, ninguém leva a sério e chega a ser ridicularizado. Não pode pretender-se, por isso, que dele resultem consequências e sejam retiradas lições capazes de proteger a seriedade da política e a defesa da privacidade dos cidadãos.

Volta Nixon! Demorou um tempinho, mas estás perdoado.

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