Um ano após o escândalo dos Panamá Papers, surgem propostas concretas para impedir que as megacorporações e os super-ricos continuem praticando sonegação internacional sistemática. Haverá vontade política?
Grazielle David, do Inesc | Outras Palavras
Para marcar o primeiro aniversário do Panamá Papers, escândalo relacionado com paraísos fiscais, organizações e movimentos do mundo todo articuladas por meio da Campanha Multinacionais paguem o justo organizaram nesta semana uma ação global pelo fim dos paraísos fiscais.
Um paraíso fiscal é um país ou território que tem sigilo bancário quase absoluto, baixa ou nenhuma tributação e que permite que corporações e pessoas muito ricas se utilizem de artifícios como elisão e evasão fiscal para pagarem menos impostos, por meio da transferência de renda ou ativos de um determinado país para o paraíso fiscal.
A elisão fiscal, apesar de não ser ilegal, é imoral. Ocorre por meio de um planejamento tributário agressivo, fazendo uso de brechas nas leis para dar vantagens indevidas às empresas, com o apoio de consultorias, especialmente de escritórios de Direito Tributário, que costumam cobrar grandes valores pela assessoria. Já a evasão ou sonegação fiscal é crime e consiste em realizar procedimentos que violam a lei ou um regulamento tributário com o objetivo de suprimir ou reduzir tributos.
Os paraísos fiscais são hoje um dos principais instrumentos para que corporações multinacionais e os super-ricos evitem e soneguem parte do que devem em tributos. Isso resulta em menos recursos para os países onde esses tributos deixam de ser pagos. Com o orçamento reduzido devido à sonegação e evasão fiscais, os países ficam limitados em sua capacidade de financiamento de políticas e serviços públicos essenciais, que promovem direitos e cidadania.
Cada Real perdido para um paraíso fiscal é um Real que poderia ter sido investido para garantir direitos, como construir e manter unidades de saúde e escolas, garantir moradia e transporte público acessível, fazer o saneamento básico das cidades, entre outras medidas. As receitas perdidas para os paraísos fiscais estão aprofundando a pobreza e aumentando as desigualdades pelo mundo. A Tax Justice Network estima que entre U$ 21 trilhões e US$ 32 trilhões estão escondidos em contas de paraísos fiscais, sendo que a maior parte desse dinheiro nunca foi taxada.
É por isso que é tão importante chamar a atenção dos governantes pelo mundo para que atuem pelo fim dos paraísos fiscais e façam com que as corporações multinacionais e os super-ricos paguem o que devem, o justo.
Quanto maior a sonegação fiscal, maior é a carga tributária de um país, para compensar as receitas perdidas. Em países com uma carga tributária regressiva, como é o caso do Brasil, onde mais da metade da arrecadação é feita por meio da tributação do consumo em vez da renda e patrimônio, o resultado é um peso cada vez maior sobre a classe média e os pobres, enquanto grandes empresas e os milionários têm maiores facilidades. Isso inverte completamente a lógica do princípio de capacidade de contribuição e isonomia que deveria reger qualquer sistema tributário. Se todos contribuíssem, não sonegando e melhor distribuindo a carga tributária, esta poderia ser inclusive mais leve para a classe média e os pobres.
Historicamente, os mais ricos não contribuíram – e continuam não querendo contribuir – com a construção de um orçamento público adequado e justo, que promova a redução da pobreza e das desigualdades. Em um cenário de crise econômica como a que o Brasil vive no momento, é insustentável a manutenção dessa injustiça fiscal. Está mais do que na hora de as grandes corporações e os super-ricos pagarem seus tributos de maneira justa, contribuindo assim para o financiamento da infraestrutura pública, a garantia de direitos e a construção de uma sociedade mais justa e solidária.
Para conseguir fazer uso dos paraísos fiscais, as corporações multinacionais e os super-ricos, em parceria com advogados tributaristas, contadores, banqueiros, lobistas, montaram um esquema internacional sofisticado para reduzir os tributos devidos sobre seu lucro, renda e fortuna. Apesar de não quererem pagar tributos, as corporações e super-ricos são completamente dependentes da infraestrutura e das instituições públicas. Por exemplo, fazem uso das rodovias, portos e aeroportos construídos pelo Estado; e dependem dos trabalhadores que recebem educação pública como mão de obra que produz riqueza para eles.
O atual sistema de elisão e evasão fiscal faz a riqueza de um país fluir do fundo público para o privado, sendo então escondida em paraísos fiscais. Isso promove uma grande distorção na economia, enfraquece a democracia e priva as pessoas de terem seus direitos adequadamente financiados por meio de políticas e serviços públicos tão essenciais a uma existência com dignidade.
Paraísos fiscais prejudicam direitos humanos e ODS
Todos os países têm obrigação de respeitar os direitos humanos, que incluem os civis e os sociais, e para isso devem investir o máximo de recursos disponíveis. Entretanto, a prática de elisão e sonegação fiscal, e o uso dos paraísos fiscais, reduzem significativamente os recursos financeiros disponíveis dos países, inviabilizando o adequado financiamento dos direitos e retirando a dignidade na existência das pessoas. A ONU e diversos especialistas em direitos humanos defendem que políticas e legislações fiscais e tributárias que permitem elisão e sonegação fiscal estão em desacordo com as obrigações que os países assumiram nos tratados de direitos humanos.
Os países se comprometeram a reduzir a pobreza e as desigualdades até 2030 os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Para isso, é essencial que exista um financiamento adequado, e os países devem levantar progressivamente mais receitas internas. A ONU estima que irá custar U$ 1 trilhão por ano para alcançar os Objetivos nos países de baixa e média renda. Porém, de onde virá esse dinheiro? É essencial que grandes corporações e super-ricos paguem sua parte devida e justa de tributos nos países em que operam, e que os governantes usem esses recursos para financiar as políticas e serviços públicos que promovem os direitos humanos para alcançar os ODS.
Mulheres pagam o preço mais alto
Quando as políticas e serviços públicos não são adequadamente financiados e executados, são as mulheres que mais sofrem, especialmente as mulheres negras. Isso ocorre porque as mulheres dependem mais dos direitos garantidos por meio dessas políticas públicas, uma vez que são elas que gastam 2,5 mais tempo que os homens executando trabalhos não remunerados como os de cuidado com a casa, com crianças, com idosos e doentes. Nos países em que não há orçamento público suficiente para financiar serviços públicos essenciais que garantem os direitos à saúde, educação, creche, é bem mais frequente que sejam as mulheres que assumam essa responsabilidade, reduzindo seu tempo de estudo, de trabalho remunerado e de descanso. O que muitos insistem em ignorar é que esse trabalho não remunerado, porém essencial, das mulheres tem subsidiado a economia dos países, e deve ter um retorno por meio da garantia de seus direitos.
Como mudar esse cenário de crime contra a humanidade?
Vamos construir um momento público e político pelo Fim dos Paraísos Fiscal, solicitando que nossos governantes adotem as seguintes medidas:
1. Exigir relatórios públicos país-por-país de todas as corporações multinacionais. Esta seria uma medida importante para evitar a evasão fiscal em grande escala realizada por empresas multinacionais – como foi revelado por exemplo pelo escândalo LuxLeaks. Esses relatórios permitiriam que a sociedade pudesse ver onde cada empresa está fazendo negócio e quanto ela paga de tributos em cada país onde atua. Isso tornaria mais difícil para as empresas multinacionais burlarem a tributação dos países onde atuam. Alguns documentos ajudam a entender essa questão:
10 razões para adotar os relatórios país-por-país e Nota sobre a necessidade do relatório país-por-país.
2. Estabelecer registros públicos sobre quem são os verdadeiros donos ou os beneficiários finais dos trusts e empresas. Esta seria uma resposta aos problemas revelados por exemplo nos escândalos Panamá Papers, Bahamas Leaks e Lavanderia global. Esses registros públicos permitiriam que a sociedade pudesse ver quem realmente detém os trusts e as empresas que operam em nossos países. Isso tornaria mais difícil para os sonegadores de impostos e outros criminosos esconderem suas fortunas em fundos corporativos e empresas de fachada nos paraísos fiscais. Esses registros já foram introduzidos no Reino Unido e Eslováquia, e em breve serão uma realidade na Dinamarca e Eslovênia, por exemplo.
3. Apoiar o estabelecimento de um Organismo Intergovernamental sobre Sistema de Tributos na ONU, onde todos os países teriam igualdade de opinião e voto na definição de normas fiscais internacionais. Os paraísos fiscais são um problema global, o que requer uma solução global, esse organismo na ONU seria o fórum essencial de negociação fiscal e tributária para os governos, da mesma forma que o fórum de negociações climáticas da ONU é o espaço essencial para o combate às alterações climáticas. Hoje, no entanto, as normas gerais sobre impostos e transparência são estabelecidas, habitualmente de forma não transparente, por organismos como o G20 e a OCDE – também conhecidos como o Clube dos ‘países ricos’. Enquanto isso, todos os demais, que sofrem diversas consequências advindas das normas tributárias internacionais defasadas, não têm direito de voz e voto nesses espaços. Veja esse relatório sobre porque precisamos de um organismo intergovernamental na ONU sobre tributos e esse de Perguntas e Respostas sobre as questões mais frequentes a respeito desse tema.
4. Utilizar as receitas tributárias para financiar os serviços públicos e as proteções sociais com o objetivo de acabar com a pobreza e reduzir as desigualdades. Os governos devem se comprometer a assegurar que essas novas receitas obtidas serão utilizadas para a garantia de direitos.
5. Proteger os denunciantes que expõem globalmente esses crimes tributários internacionais. Os Panama Papers e os Luxemburgo Leaks só vieram a público graças aos denunciantes que agiram em prol do interesse público para promover justiça e revelaram essas sonegações fiscais em grande escala. Hoje, denunciantes não são protegidos contra processos e correm o risco de enfrentar severas sanções. Este foi, por exemplo, o caso dos denunciantes do Lux Leaks, que foram recentemente condenado pelo Tribunal do Luxemburgo.
Sumário dos escândalos tributários internacionais
> O escândalo da Lavanderia Global
Quando: Março de 2017
O que: Entre 2011 e 2014, mais de US $ 20 bilhões da Rússia foram lavados através de mais de 5000 empresas, muitas delas do Reino Unido. O dinheiro acabou em mais de 700 bancos diferentes em 96 países, incluindo vários países da UE.
> Bahamas Leaks
Quando: Setembro de 2016
Milhões de registros vazados de bancos de Jersey e de registros corporativos das Bahamas revelaram como mais de 175.000 empresas das Bahamas e contas bancárias secretas estavam sendo usadas por super-ricos, inclusive políticos, para esconder sua riqueza em paraísos fiscais. Contadores bem pagos e alguns dos maiores bancos do mundo estavam ajudando seus clientes milionários a montar essas estruturas desonestas.
> Panamá Papers
Quando: Abril de 2016
Em um comunicado de imprensa global coordenado pela ICIJ (International Consortium of Investigative Journalists), https://en.wikipedia.org/wiki/International_Consortium_of_Investigative_Journalists 11 milhões de documentos vazados do escritório de advocacia Mossack Fonseca no Panamá revelaram uma rede global de empresas e contas bancárias ocultas que estavam sendo usados para facilitar a evasão fiscal, suborno, armas, financiamento de fraudes e tráfico de drogas. O vazamento de informações mostrou que alguns dos maiores bancos do mundo estavam envolvidos na criação de estruturas secretas offshore para seus clientes, que incluíram um grande número de celebridades, incluindo 140 políticos de 50 países.
> Swiss Leaks
Quando: Fevereiro de 2015
O que: Um vazamento de informações do banco HSBC na Suíça revelou contas ocultas com ativos no valor de mais de US $ 100 bilhões, com links para quase todos os países do mundo. Os clientes incluíam indivíduos ligados ao tráfico de armas, suborno, diamantes de sangue, bem como políticos atuais e antigos de todo o mundo. O vazamento mostrou que o banco mantinha os clientes tranquilos de que nenhuma informação seria fornecida às administrações tributárias dos países, mesmo nos casos em que evidências sugerissem que os ativos estavam vinculados à evasão fiscal.
> Luxemburgo Leaks
Quando: Novembro de 2014
O chamado escândalo Lux Leaks revelou centenas de negócios secretos entre empresas multinacionais e Luxemburgo. Negociados frequentemente por Price Waterhouse Coopers (PwC), eles permitiram que muitas companhias reduzissem seus pagamentos de imposto a níveis muito baixos – em alguns casos, menos de 1% do devido. Empresas envolvidas no escândalo incluíram Pepsi, IKEA, AIG, Deutsche Bank e mais de 300 outras empresas. O escândalo Lux Leaks também se tornou um exemplo famoso da falta de – e necessidade urgente de – proteção dos denunciantes. Em março de 2017, o tribunal luxemburguês determinou que os denunciantes envolvidos na exposição deveriam pagar multas a Luxemburgo e um dos denunciantes, Antoine Deltour, foi condenado a seis meses de prisão.
* Grazielle David, Assessora política do Inesc
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