segunda-feira, 1 de maio de 2017

Santa Catarina de Siena

Plinio Maria Solimeo

Catarina corta seus cabelos para evitar o casamento -- Obra de Niccolo Franchini, 1769. Santuário Casa de Santa Catarina de Siena.
Catarina corta seus cabelos para evitar o casamento — Obra de Niccolo Franchini, 1769. Santuário Casa de Santa Catarina de Siena.

Doutora da Igreja, Padroeira da Itália, lutou pela paz na Cristandade e promoveu Cruzada contra os infiéis. Sua festividade é celebrada pela Igreja no dia 29 de abril.


No ano de 1347, Lapa Benincasa deu à luz duas gêmeas em seu vigésimo quarto parto. Uma delas não sobreviveu ao batismo. A outra, Catarina, tornar-se-ia a glória de sua família, de sua pátria, da Igreja e do gênero humano.
Giacomo di Benincasa, seu pai, era um tintureiro bem estabelecido, “homem simples, leal, temente a Deus e cuja alma não estava contaminada por vício algum”1; piedoso e trabalhador, criava sua enorme família (25 filhos de um só casamento) no amor e no temor de Deus. Catarina, a penúltima da família e caçula das filhas, teve a predileção de todos e cresceu num ambiente moral puro e religioso.
Obra de Pierre Subleyras (1699), Coleção privada, Roma.
Obra de Pierre Subleyras (1699), Coleção privada, Roma.
Como a Providência divina tinha desígnios especiais sobre ela, desde cedo Catarina foi cumulada de favores celestes, privando com anjos e santos. Aos sete anos fez voto de virgindade, aos 16 cortou sua longa cabeleira para evitar um casamento, e aos 18 recebeu o hábito das Irmãs da Penitência de São Domingos. Aos 20 anos vivia já só de pão e água. Foi agraciada com favores sobrenaturais como o “casamento místico” [quadro ao lado], recebeu estigmas semelhantes aos de Nosso Senhor, e teve uma “morte mística”, durante a qual foi levada em espírito ao Inferno, ao Purgatório e ao Paraíso; teve também uma “troca mística de coração” com Nosso Senhor.
Analfabeta, aprendeu a ler e escrever milagrosamente para poder cumprir a missão pública que Deus lhe destinava. Dirigiu um número enorme de discípulos, os caterinati, entre os quais se encontrava gente do clero, da nobreza e do povo mais miúdo. Um deles, o bem-aventurado Raimundo de Cápua, seu confessor, foi também seu primeiro biógrafo. É dele que sabemos pormenores dessa impressionante vida.
“Todos seus contemporâneos dão testemunho de seu extraordinário charme, que prevalecia ainda em meio da contínua perseguição à qual ela foi sujeita, mesmo da parte dos frades de sua própria Ordem e de suas irmãs em religião”.2
Como é impossível relatar num limitado artigo os inúmeros milagres, favores místicos, penitências, preces e atividades dessa Santa ímpar, limitamo-nos a ressaltar o aspecto público e providencial de sua missão.

O Evangelista São João e o Doutor Angélico dão-lhe lições

Santa Catarina de Siena -- Obra de Sano di Pietro, séc. XV. Bonnefantenmuseum, Maastricht (Países Baixos).
Santa Catarina de Siena — Obra de Sano di Pietro, séc. XV. Bonnefantenmuseum, Maastricht (Países Baixos).
Catarina amava apaixonadamente a Igreja Católica e sofria vendo seus males. Suas obras externas consistiam até então em assistir os pobres e doentes e dirigir seus discípulos. Mas era chegada a hora de ela também, a exemplo do Divino Mestre, começar a sua vida pública. Para isso, recebeu ordem formal de Nosso Senhor, que lhe prometeu sustentá-la com sua graça. Que ela nada temesse.
Ora, no fim da Idade Média — período em que a gloriosa civilização cristã já decaía a olhos vistos — a Itália era um aglomerado de pequenos reinos e repúblicas que muitas vezes viviam em guerra entre si, ou guerras entre facções contrárias em uma mesma cidade. Catarina foi chamada várias vezes para ser o árbitro entre elas ou seu anjo pacificador. Assim, viajou de Siena para Florença, Lucca, Pisa e Roma como pacificadora.
“Sem nenhuma experiência política, coloca-se em face dos mais altos poderes de seu tempo. E não roga; exige, manda: ‘Desejo e quero que façais desta maneira [...] Minha alma deseja que sejais assim [...] É a vontade de Deus e meu desejo [...] Fazei a vontade de Deus e a minha [...] Quero’. Assim falava à rainha de Nápoles, ao rei da França, ao tirano de Milão, aos bispos e ao Pontífice. [...] Em seu semblante há algo que intimida e seduz ao mesmo tempo”.3
Não é de admirar, pois, como ela mesma escreveu em uma de suas cartas, “tomei lições, como em sonhos, com o glorioso evangelista São João e com Santo Tomás de Aquino”.4
Florença revoltara-se contra a Santa Sé e mais de 60 cidades dos Estados Pontifícios juntaram-se a ela. O Papa lançou um interdito sobre essas localidades. Revoltas se seguiram.
Catarina entra como mediadora entre o Papa e os conjurados. Começou assim uma correspondência incessante com o Papa Gregório XI, cheia de piedade e amor filial, cada vez mais premente, em favor dos súditos dos Estados Pontifícios que se tinham rebelado contra ele: “Santíssimo e dulcíssimo Pai em Nosso Senhor Jesus Cristo [...] Ó governador nosso, eu Vos digo que há muito tempo desejo ver-vos um homem viril e sem temor algum. [...] Não olheis para a nossa miséria, ingratidão e ignorância, nem para a perseguição de vossos filhos rebeldes. Ai! que a vossa benignidade e paciência vençam a malícia e a soberba deles. Tende misericórdia de tantas almas e corpos que morrem”.5

Santidade que se exprime no espírito de Cruzada

Santa Catarina exorta o Papa Gregório XI a voltar a Roma -- Obra de Sebastião Conca, séc. XVIII.
Santa Catarina exorta o Papa Gregório XI a voltar a Roma — Obra de Sebastião Conca, séc. XVIII.
Ansiava ela pela pacificação da Cristandade para que, unidos, os cristãos se dispusessem a seguir em uma cruzada para libertar os Santos Lugares.
         “Dois grandes pensamentos agitavam a alma de Catarina: a pacificação da Igreja, sua mãe querida, pela qual ela se sentia devorada de zelo e amor; depois, esse pensamento tão fecundo na Idade Média: a guerra santa das Cruzadas. [...] Ela via essa Cruzada, objeto de seus votos, recuar para bem longe em decorrência das discórdias que separavam os povos cristãos. — Foi talvez essa dor que consumiu sua vida”.6
“Ela implorou ao Papa Gregório XI que deixasse Avignon, reformasse o clero e a administração dos Estados Pontifícios, e empenhou-se ardentemente em seu grande desígnio de uma Cruzada, na esperança de unir as forças da Cristandade contra os infiéis e restaurar a paz na Itália, livrando-a de companhias [armadas] de mercenários que a assolavam”.7
Catarina censurou o Rei de França por guerrear contra cristãos e não empenhar-se na Cruzada: “Eu vos peço que sejais mais ativo para impedir tanto mal e ativar tanto bem, como é a recuperação da Terra Santa e daquelas almas infelizes que não participam do Sangue do Filho de Deus. Desta coisa deveríeis Vos envergonhar, vós e os outros senhores cristãos; porque é uma grande confusão diante dos homens e abominação diante de Deus fazer a guerra contra os irmãos e deixar [de lado] os inimigos; e querer tirar o que é dos outros e não reconquistar o que é seu. Eu vos digo da parte de Jesus Crucificado que não demoreis mais a fazer esta paz. Fazei a paz e fazei toda a guerra contra os infiéis”.8

Fim do “exílio de Avignon”: fruto de seu zelo

O Papa Pio II canoniza Santa Catarina de Siena -- Afresco do séc. XVI, de Piccolomini Library. Duomo de Siena.
O Papa Pio II canoniza Santa Catarina de Siena — Afresco do séc. XVI, de Piccolomini Library. Duomo de Siena.
Seu sucesso foi maior com relação ao fim do “exílio de Avignon”. Com efeito, desde 1309, com Clemente V, o Papado havia sido transferido para aquela cidade francesa, de onde era dirigida toda a Cristandade. Já Santa Brígida, Rainha da Suécia, tentara em vão trazer o Papa de volta a Roma.
Em Avignon, diante dos cardeais, a intrépida Catarina ousou proclamar os vícios da corte pontifícia e pedir, em nome de Cristo Jesus, a reforma dos abusos.9 Gregório XI a chamava para dar sua opinião em pleno Consistório dos cardeais. Ela o convenceu a voltar para Roma. Apesar da oposição do Rei francês e de quase todo o Sacro Colégio, em 17 de janeiro de 1377 Gregório XI deixa Avignon. Ele ainda hesita no caminho, e ela o conjura a ir até o fim.
Mas a paz na Igreja não seria longa. Outra vez a república de Florença revoltou-se contra o Papa, que apelou para Catarina. Rejeitada por aquela cidade, a Santa quase foi martirizada. Por sua vez, Gregório XI, gasto, envelhecido, sofrido, não resiste e entrega sua alma a Deus.
Para ocupar o trono de São Pedro os cardeais elegem o Arcebispo de Bari, o qual toma o nome de Urbano VI. Conhecendo já Catarina e vendo nela o espírito de Deus, o novo Pontífice a chama para aconselhá-lo em Roma. E era muito necessário, pois alguns cardeais franceses, desgostosos da rigidez do novo Papa, voltam para Avignon, anulam a eleição de Urbano e elegem o antipapa Clemente VII. Inicia-se assim o chamado “Grande Cisma do Ocidente”.10
Catarina, através de cartas cheias de amor à Igreja e animadas pelo enérgico sentimento do dever, entrou em ação procurando ganhar reis e governantes da Europa para o verdadeiro Papa. Tentou inutilmente trazer de volta ao verdadeiro redil os três cardeais, autores principais do cisma. Catarina escreveu 150 cartas a cardeais, bispos e prelados, e 39 a Reis, Príncipes e governantes. À voz de Catarina de Siena, em favor do verdadeiro Pontífice, juntou-se a de outra Catarina, da Suécia, filha da grande Santa Brígida.

Angústia pelo futuro da Igreja

“As angústias que lhe causavam as revelações sobre o futuro da Igreja foram para Santa Catarina como uma paixão dolorosa. Ela clamava ao Senhor e pedia graça para essa Igreja, Esposa de seu Divino Filho. ‘Tomai, ó meu Criador, este corpo que eu recebi de vossas mãos. Não perdoeis nem a carne, nem o sangue; rompei-o, lançai-o nas brasas ardentes; quebrai meus ossos, contanto que vos apraza ouvir-me em favor de vosso Vigário’”.11
Entre as coisas que Deus lhe revelava algumas eram sublimes, e outras, terríveis, como veremos abaixo. Ela pediu aos seus secretários que, assim que a vissem entrar em êxtase, anotassem suas palavras. Daí nasceu o livro do diálogo entre uma alma (a dela) e Deus, conhecido hoje em dia pelo nome de Diálogo.
Sarcófago de Santa Catarina de Siena, no altar mor da Igreja Santa Maria sopra Minerva, ?Roma
Sarcófago de Santa Catarina de Siena, no altar mor da Igreja Santa Maria sopra Minerva, ?Roma

Pecado de homossexualismo: intolerável aos próprios demónios

Eis as palavras que Deus Nosso Senhor lhe dirigiu um dia:
“Filha querida, ao participar da Eucaristia, exijo de vós e dos sacerdotes toda a pureza que é possível nesta vida [...] sobretudo dos ministros. Mas eles fazem exatamente o contrário. Estão inteiramente imundos. E o pior é que não se trata apenas daquela fraqueza natural que a razão pode dominar quando a vontade o quer. Esses infelizes não somente não refreiam tal tendência, mas fazem algo de muito pior e caem no vício contra a natureza. São cegos e estúpidos, cuja inteligência obnubilada não percebe a baixeza em que vivem. [...] Esse pecado, aliás, não desagrada somente a mim. É insuportável aos próprios demônios, que são tidos como patrões por aqueles infelizes ministros. Os demônios não toleram esse pecado. Não porque desejam a virtude; por sua origem angélica, recusam-se a ver tão hediondo vício. Eles atiram as flechas envenenadas da concupiscência, mas voltam-se no momento em que o pecado é cometido”.12
Santa Catarina faleceu no dia 29 de abril, aos 33 anos. É Padroeira da Itália e foi proclamada Doutora da Igreja por Paulo VI, em outubro de 1980.

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Notas:
  1. 1.       Beato Raimundo de Cápua, Vida de Santa Catalina de Siena, Espasa-Calpe Argentina, S.A., Buenos Aires, 1947, p. 9.
  2. 2.       Edmund G. Gardner, Transcribed by Lois Tesluk, The Catholic Encyclopedia, Volume III, 1908, Robert Appleton  Company. Online Edition, 1999 by Kevin Knight.
  3. 3.       Frei Justo Perez de Urbel, Año Cristiano, Ediciones Fax, Madrid, 1945, 3ª. edição, vol. II, p. 236.
  4. 4.       Id., p. 239.
  5. 5.       Santa Catarina de Siena, Cartas, traduzidas por Ferreira de Macedo, Tip. União Gráfica, Lisboa, 1952, p. 58.
  6. 6.       Les Petits Bollandistes, Vies des Saints d’après le Père Giry, Bloud et Barral, Paris, 1882, tomo V, p. 130.
  7. 7.       The Catholic Encyclopedia, Online Edition.
  8. 8.       Santa Catarina de Siena, Cartas, p. 52.
  9. 9.       Tais abusos existentes na Corte Pontifícia eram ao mesmo tempo causa e reflexo dos erros da Renascença que começavam a espalhar-se por toda a parte. “No século XIV — escreve Plinio Corrêa de Oliveira — começa a observar-se, na Europa cristä, uma transformaçäo de mentalidade que ao longo do século XV cresce cada vez mais em nitidez. O apetite dos prazeres terrenos se vai tornando em ânsia. As diversöes se väo tornando mais freqüentes e mais suntuosas. Os homens se preocupam sempre mais com elas. Nos trajes, nas maneiras, na linguagem, na literatura e na arte o anelo crescente por uma vida cheia de deleites da fantasia e dos sentidos vai produzindo progressivas manifestaçöes de sensualidade e moleza. Há um paulatino deperecimento da seriedade e da austeridade dos antigos tempos. Tudo tende ao risonho, ao gracioso, ao festivo. Os coraçöes se desprendem gradualmente do amor ao sacrifício, da verdadeira devoçäo à Cruz, e das aspiraçöes de santidade e vida eterna. A Cavalaria, outrora uma das mais altas expressöes da austeridade cristä se torna amorosa e sentimental, a literatura de amor invade todos os países, os excessos do luxo e a conseqüente avidez de lucros se estendem por todas as classes sociais. [...] Este novo estado de alma continha um desejo possante, se bem que mais ou menos inconfessado, de uma ordem de coisas fundamentalmente diversa da que chegara a seu apogeu nos séculos XII e XIII [auge da Idade Média]. A admiraçäo exagerada, e não raro delirante, pelo mundo antigo, serviu como meio de expressäo a esse desejo. Procurando muitas vezes näo colidir de frente com a velha tradição medieval, o Humanismo e a Renascença tenderam a relegar a Igreja, o sobrenatural, os valores morais da Religiäo, a um segundo plano. O tipo humano, inspirado nos moralistas pagãos, que aqueles movimentos [renascentistas] introduziram como ideal na Europa, bem como a cultura e a civilização coerentes com este tipo humano, já eram os legítimos precursores do homem ganancioso, sensual, laico e pragmático de nossos dias, da cultura e da civilização materialistas em que cada vez mais vamos imergindo” (Revolução e Contra-Revolução, Parte I, Cap. III, A e B). Foi nesse ambiente que se moveu e atuou a grande Santa Catarina de Siena.
  10. 10.   Sobre o que vem a ser um “antipapa”, bem como sobre traços gerais do “Grande Cisma do Ocidente”, recomendamos a nossos leitores “A Palavra do Sacerdote”, do Cônego José Luiz Villac, que publicamos em nossas edições de março e abril de 2001.
  11. 11.   Les Petits Bollandistes, op. cit., p. 135.
  12. 12.   Santa Catarina de Siena, O Diálogo, Editora Paulus, São Paulo, 1985, 3ª. ediçào, pp. 259,260.

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