Esta foi a semana em que o mundo passou por Davos – e este ano o mundo incluiu Donald Trump, que encerrou o encontro, mas esta newsletter não será especificamente sobre Davos, antes sobre o que pode estar menos bem quando tudo parece correr bem. Não são avisos de pessimistas, são notas a chamar a atenção para alguns focos de instabilidade e incerteza.
Começando pela economia, e apesar de parecer estarmos a viver um daqueles períodos em que os ventos sopram todos a favor de mais crescimento, mais emprego e mais inovações disruptivas, mesmo no mundo róseo de Davos escutaram-se alguns avisos. Disso mesmo nos deu conta o Wall Street Journal num texto sobre o sentimento dos banqueiros que passaram por Davos: Can Anything Stop the Good Times? (paywall). Uns mostraram-se confiantes pelo menos até 2019 (“There’s always things to worry about but not a lot until the middle of 2019,” said Mary Callahan Erdoes, CEO of asset and wealth management at JPMorgan Chase & Co.”) enquanto outros foram, por assim dizer, mais prudentes (“It does feel to me a little bit like 2006,” said Jes Staley, chief executive of British lender Barclays PLC. “‘Maybe we’ve solved the riddle of economic cycles’—that’s what we were all saying. We really got that wrong.”)
Devo dizer que já me tenho interrogado várias vezes sobre até que ponto a euforia que parecemos viver recorda outros períodos (em Portugal os da euforia da Expo 98, no Mundo o desses dias, há dez anos, em que se dizia que se tinham vencido os ciclos económicos, que o crescimento seria eterno). Talvez valha por isso a pena ler o texto de antecipação de Davos escrito por Martin Wolf no Financial Times, Davos 2018: The liberal international order is sick. Por um lado, olhando para o relatório “Democracy is in crisis” publicado recentemente pela Freedom House, verifica-se que “For the 12th consecutive year, countries that suffered democratic setbacks outnumbered those that registered gains”. Por outro lado, o quadro institucional global não só não
tem evoluído – “The economy may be recovering, but no significant trade liberalisation has occurred since China’s accession to the World Trade Organization in 2001” – como o apoio popular à globalização tem diminuído – “Among domestic changes, many in high-income countries feel that the liberal global order to which their countries have been committed has done little for them. It is generating, instead, the sense of lost opportunities, incomes and respect. It may have brought vast gains to the sorts of people who frequent Davos, but far less to everybody else.”
Sabemos como isso foi determinante tanto na votação pelo Brexit como na eleição de Trump, mas temos porventura menos consciência de como este é um dos factores que tem vindo a corroer, na Europa, os sistemas partidários que asseguraram o mais largo período de paz e prosperidade jamais vividos no Velho Continente. Um país onde isso se está a sentir de forma muito evidente é a Alemanha, de que temos falado em tantas destas newsletters, sendo que ainda há um ano em Davos ninguém previa que Angela Merkel aqui voltaria, como voltou, numa posição de fraqueza. Na altura ela era a referência, agora é alguém que parece ter entrado no ocaso da sua vida política depois de uma magra vitória eleitoral de que resultou um impasse governativo. Um mau resultado que tem muito a ver com a sua política de imigração, uma política que a fez perder muitos votos e que, conta o Handelsblatt, não é tão boa para os refugiados como se pode pensar. É ler Five ways Germany is failing refugees, onde se explica como “More than two years after the height of the so-called refugee crisis, German authorities are still struggling with the basics of integration”. Mais: “According to an Infratest dimap poll for Handelsblatt, only 12 percent of German citizens are confident that efforts to integrate refugees will succeed. Nearly a quarter say the country isn’t up to the task. More than 60 percent say it can be done, but only with an open and honest discussion about the problems involved.”
Mas se na Alemanha a ascensão da AfD (Alternativa para a Alemanha, o partido anti-imigração e eurocéptico) e, também, a afirmação do FDP (os liberais, que não quiseram entrar para um governo com Merkel para não quebrarem os seus compromissos eleitorais relativos ao controle da imigração), mostram os limites do sistema político do pós-guerra, assente na Alternância entre a CDU/CSU e o SPD, há na Europa uma outra clivagem que se sente cada vez mais profunda: a que separa os países da antiga Europa de Leste dos demais. Habitualmente essa clivagem é apresentada como resultando apenas de uma deriva autoritária em países como a Hungria, a Polónia e a República Checa (onde há uma eleição presidencial decisiva este fim-de-semana, uma eleição cujos termos são detalhadamente descritos pelo Wall Street Journal em Czech Vote Pits Pro-Russian Nativists Vs. West-Leaning Liberals). Há contudo quem tenha uma visão mais nuancé do que se passa nesses países, e refiro-me a John O'Sullivan, um jornalista veterano que já dirigiu a Voz da América e que reside actualmente em Budapeste. Num texto que faz a capa da última Spectator, East vs West: the new battle for Europe, faz-nos um relato muito informado sobre o que se passa a leste da Alemanha, saindo da ortodoxia condenatória. Eis a forma como remata o seu ensaio: “In the old left versus right world, both sides essentially accepted that the other would win power occasionally. But now we have a centrist establishment in Europe that does not really accept the right of its challengers to come to power. And when they do, it casts them as being illegitimate, or extremists, and seeks to use supranational legal and political powers to constrain or oust them. But this has not so far worked, given how few voters in the offending nations wish to back down. Brexit Britain may end up watching from the sidelines, but a new battle for Europe has begun.”
Viajando de Oriente para Ocidente não podemos deixar de passar por Itália, onde Berlusconi pode estar à beira de regressar ao poder, como nos conta Tony Barber no Financial Times, em Silvio Berlusconi flexes his political muscle in Italy again. É um texto onde se relata a confusão e desordem reinantes e se nota que “The political system’s sickness is captured in the parties’ election platforms, stuffed with extravagant promises of tax breaks, minimum incomes, extra public investment and the like. Almost all the parties want to water down or abolish the eurozone’s rules on fiscal rectitude. Mr Berlusconi has even mused about introducing a parallel currency to the euro.”
Mas se continuarmos para Ocidente chegamos a Madrid com passagem por Barcelona, e verificaremos como em Espanha ninguém sabe como terminará a crise aberta pelas ambições independentistas na Catalunha. Em mais um Conversas à Quinta, aqui no Observador, conversei com Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto sobre se Estará a Espanha num beco sem saída? E a Catalunha também? Muito interessante, como sempre, nesta conversa não falámos apenas, nem sobretudo, do problema catalão, antes reflectimos sobre o significado da emergência de novos partidos – sobretudo o Ciudadanos, mas também o Podemos –, do significado do apagamento dos dois grandes partidos de governo – o PP e o PSOE – e de como as “duas Espanhas” que pareciam enfrentar-se há séculos podem estar a evoluir para um mosaico de Espanhas de futuro muito, muito incerto e dificílima governabilidade.
Por fim, e como hoje é o Dia da Memória do Holocausto, não posso deixar de notar que se o ano passado foi Donald Trump que conseguiu omitir os judeus na sua mensagem evocativa, este ano isso aconteceu com a mensagem do líder dos trabalhistas britânicos, Jeremy Corbyn. É um tema que a Tablet discute em Jeremy Corbyn’s Holocaust Memorial Day Statement Leaves Out the Jews, um tema a que talvez não ligássemos muito aqui há um ano, altura em que Corbyn ainda era visto como uma excentricidade de que os trabalhistas ingleses se livrariam na primeira oportunidade. Foi exactamente o contrário que se passou, e este líder radical parece hoje destinado a tornar-se no próximo primeiro-ministro britânico. Duvidam? Então leiam um outro trabalho da Spectator, Jeremy Corbyn’s takeover is complete – and the Tories are terrified.
Mas como não quero deixar os meus leitores deprimidos antes de mais um fim-de-semana, a minha derradeira recomendação deixa Davos, a economia e a geopolítica à margem para vos recomendar um texto verdadeiramente inspirador pela sua coragem, frontalidade e acutilância: o depoimento prestado pela ginasta norte-americana Aly Raisman no julgamento de Larry Nassar. A Buzzfeed reproduziu-o aqui na íntegra, sendo que também pode ser escutado aqui. Vale a pena ler e ouvir, vale todos os 14 minutos que demorou este depoimento.
De resto, como sempre, desejo-vos bom descanso (com bons agasalhos) e boas leituras.
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