A partir de uma insólita fotografia prisional, única no género, confronta-se o frio arquivo de imagens da ditadura com a voz emocionada dos apagados da história: as famílias dos resistentes presos.
Luz Obscura, o filme de Susana de Sousa Dias centrado no núcleo familiar de Octávio Pato e nas consequências da acção repressiva da PIDE sobre a sua família, estreia hoje, quinta-feira, dia 10 de Maio, em Lisboa e no Porto. Com a duração de 76 minutos, é uma produção Kintop e uma distribuição Alambique Filmes.
Em Lisboa essa estreia decorrerá no Cinema Ideal, às 19h15, e contará com a presença de Susana de Sousa Dias e de dois dos protagonistas do filme, Álvaro Pato e Rui Pato. Após a projecção haverá uma conversa da realizadora e dos protagonistas com os espectadores.
O filme estará em cartaz até ao dia 16 de Maioe, nos três dias imediatos à sua estreia, realizar-se-ão debates temáticos a seguir às sessões, com a participação da realizadora e de convidados (ver caixa).
No Porto a estreia decorrerá no Cinema Trindade às 21h30, seguindo-se a apresentação do filme por Jorge Sarabando e um debate.
Um percurso reconhecido
Desde a sua conclusão, em 2017, até à sua estreia, hoje, nas salas de cinema, Luz Obscura foi apresentado em cerca de vinte festivais internacionais realizados em sete países (França, Espanha, Brasil, Portugal, Alemanha, Colômbia e Equador), na maior parte das vezes como filme de selecção.
Durante esse percurso recebeu, no ano de 2017, o Prémio Especial do Júri do Filme Histórico, no festival Les Rendez-vous de l’histoire, o Prémio de Melhor Som do festival Caminhos do Cinema Português e a Menção Especial do Júri de Longas Metragens, na Documenta Madrid.
A crítica reconheceu a qualidade singular do filme. «Um ensaio altamente sensível e belíssimo», cuja «combinação formal é devastadoramente simples e eficaz, um modelo de rigor e inteligência fílmica», escreve-se no Essay Film Festival, em Londres. Num balanço da edição de 2017 do festival Cinema du Réel para a revista de cinema (em linha) Débordements, Clement Dumas, além de registar os «planos fixos de rara beleza», chama a atenção do «elemento aquoso» enquanto «metáfora de um inconsciente colectivo abrangendo o desaparecimento e a difícil busca da memória».
Para Alice Leroy, animadora do Atelier Territoires de la Mémoire do festival États Généraux du Film Documentaire (Lussas, França), é uma «memória dos mortos», sem «outro lugar senão as palavras dos testemunhos», que liga a «intimidade dos relatos familiares» e a «violência repetida do desaparecimento» daqueles que foram duplamente mortos: «pela ditadura e pelo esquecimento». Um «ensaio sensível sobre memória e tempo» é a opinião de Ivonne Sheen, em DesistFilm.
Charlotte Garçon, em Cinéma du Réel, elogia a «forma admirável» como o filme «restitui a identidade familiar genealógica, histórica e fisicamente fracturada», tal como Dimitri Vezyroglou, em Les Rendez-vous de l’Histoire: «a forma singular deste filme adapta-se com mestria ao ritmo dessas vozes humanas, muito humanas, e à gravidade da sua história».
Dos arquivos à memória familiar, a reconstituição da extensão da violência do regime
Luz Obscura (2017) apresenta-se na mesma linha de continuidade genealógica de Natureza Morta (2005) e 48 (2009), como se os três filmes procurassem tecer uma rede de malha progressivamente mais fina, destinada a captar uma realidade e toda uma vida que os arquivos oficiais do regime fascista, deposto pela Revolução de Abril, apenas ocasionalmente permitem vislumbrar.
Desde 2000 que Susana de Sousa Dias, como a própria afirma, tem centrado o seu trabalho sobre «as imagens produzidas pela ditadura portuguesa». A ideia para o filme Luz Obscura nasce do visionamento de «uma imagem que, no campo estrito da fotografia judiciária, não deveria existir». A imagem de cadastro policial de Albina Fernandes é, na verdade, única nos arquivos da polícia política. A prisioneira é retratada com os olhos fechados, tendo ao colo uma criança, o pequeno Rui, seu filho, o qual, numa das fotografias, chega a tapar-lhe parcialmente o rosto: tudo contra a mais elementar técnica de documentação policial.
«A vontade de saber mais sobre as pessoas que figuram nesta fotografia de cadastro» foi o ponto de partida para «encontrar o menino». Através de Rui a realizadora encontrou a irmã, Isabel, e Álvaro, o irmão mais velho. Estava perante os filhos mais velhos de Octávio Pato, um dos mais destacados dirigentes do Partido Comunista Português na luta contra a ditadura fascista e pela liberdade.
«a forma singular deste filme adapta-se com mestria ao ritmo dessas vozes humanas, muito humanas, e à gravidade da sua história»DIMITRI VEZYROGLOU, LES RENDEZ-VOUS DE L’HISTOIRE
Foi através deles que se apercebeu da dimensão física e humana da rede familiar necessária para a continuidade da resistência à ditadura: durante a realização do projecto, refere, «os mortos e esquecidos da História começaram a emergir com tal intensidade que o filme seguiu um outro rumo». Os testemunhos recolhidos permitiram responder a uma interrogação que a autora se colocara desde o início – «que rede familiar se esconde por detrás de um único preso político?» – mas levantou outras e complexas questões de ajustamento entre conteúdo e forma – «como tratar a temporalidade das imagens do passado? Como dar corpo a quem desapareceu sem nunca ter tido existência histórica?», a par de «questões de foro estritamente cinematográfico»: como trabalhar cinematograficamente a ideia de clausura?».
A realização de Luz Obscura progrediu lentamente, articulando-se com os dois filmes anteriores entretanto acabados pela realizadora, Natureza Morta (2005) e 48(2009)1, até encontrar a «forma justa», com que Susana de Sousa Dias pretende transmitir «não apenas o ponto de vista intelectual e emotivo mas fundamentalmente o corporal, o físico» do que estava invisível (obscuro) ante os nossos olhos e se revela (ilumina) nos testemunhos, recolhidos, daqueles que em crianças tiveram de viver na sombra2.
Os protagonistas desta história
«Neste filme, a figura oficial» – diz-nos Susana de Sousa Dias – é a de «Octávio Pato, pai dos três filhos protagonistas do filme e elemento que agrega este núcleo familiar». Ele é, nota a realizadora, «a única figura que adquiriu um papel [destacado, N.E.] na história».
A biografia de resistente de Octávio Floriano Rodrigues Pato (1925-1999) fala por si.
Nascido em Vila Franca de Xira, a 1 de Abril de 1925, aos 14 anos começou a trabalhar na indústria do calçado e como empregado de comércio. Aos 15 anos aderiu à Federação da Juventude Comunista Portuguesa (FJCP). Em 1941 entra para o Partido Comunista Português (PCP) e integra o Comité Local de Vila Franca de Xira e o Comité Local do Baixo Ribatejo. Passa à clandestinidade pela primeira vez aos 20 anos, em 1945, sendo responsável pelas organizações juvenis e estudantis do Partido.
Em 1946, numa situação de semi-clandestinidade e usando o nome de Octávio Rodrigues, foi um dos fundadores e dirigentes do Movimento de Unidade Democrática Juvenil (MUD Juvenil), mas em 1947 regressa à clandestinidade, de onde não voltará a sair até ao dia 25 de Abril de 1974 – excepto para ser preso pela polícia política.
Em 1949 foi eleito para o Comité Central (CC) como membro suplente e, em 1952, já como efectivo, foi designado para o Secretariado do Comité Central. Como membro do CC, trabalhou nas direcções das Organizações Regionais de Lisboa, do Norte e do Sul, bem como na redacção do Avante!, tendo sido também responsável pelo controlo das duas tipografias clandestinas centrais.
Preso pela PIDE em 1961, foi barbaramente espancado e torturado (impedido de dormir durante 18 dias e noites seguidos e quatro meses incomunicável). Recusou-se a responder a quaisquer perguntas. A firmeza com que fez a sua defesa política no Tribunal Plenário de Lisboa valeu-lhe ser espancado na própria sala de audiências.
Condenado a oito anos e meio de prisão, prorrogados indefinidamente por via das célebres «medidas de segurança», foi libertado em 1970 após um grande movimento de solidariedade. Voltou pouco depois à luta na clandestinidade.
No período que antecedeu o 25 de Abril, era membro do Secretariado e da Comissão Executiva do Comité Central, tendo a seu cargo, entre outras tarefas, a responsabilidade pela Redacção do Avante!.
Depois do 25 de Abril, Octávio Pato foi deputado e Presidente do Grupo Parlamentar do PCP na Assembleia Constituinte, candidato à Presidência da República em 1976, e deputado à Assembleia da República de 1976 a 1991. Membro da Comissão Central de Controlo e Quadros de 1988 a 1992; membro da Comissão Política de 1974 a 1988, e do Secretariado do Comité Central de 1974 até ao seu falecimento, em 1999.
«Mas a questão central do filme não é perceber o que foi a vida de Octávio Pato» – diz Susana de Sousa Dias – «mas sim a rede familiar escondida por detrás dele», perceber como a violência da polícia política «vai interferir com a família», em particular as mulheres e as crianças, e impactar a vida de todos até ao presente, quase 45 anos depois o fascismo ter caído.
Uma família na resistência
Os pais de Octávio Pato foram João Floriano Baptista Pato e de Maria da Conceição Rodrigues Pato. A casa e a quinta de ambos foram, durante décadas, o porto de abrigo para as crianças que a dura vida da clandestinidade ou da prisão obrigava pais e filhos a separar-se para se acolherem à casa dos avós. A mãe de Octávio, avó Maria para os filhos e sobrinhos daquele, é «uma das grandes figuras que está por trás disto tudo» – diz-nos Susana Sousa Dias e dizem-nos os testemunhos recolhidos a Álvaro, Isabel e Rui. Cuidou de todos enquanto fazia a via sacra das prisões, de 1949 a 1974. Foi uma das pessoas que, na sombra, iluminou as vidas em seu redor.
Os irmãos mais velhos de Octávio, Carlos e Abel, foram opositores do regime e pagaram caro o vínculo familiar com o irmão. Carlos Pato foi preso em 1949, violentamente torturado e morreu na prisão em 1950, à míngua de assistência médica e apesar de todos os alertas dos seus companheiros de cela. À altura da prisão Clotilde, mulher de Carlos, tinha uma bebé de 8 meses e estava grávida de 7 meses. Maria Clara tinha pouco mais de ano e meio e João Carlos 7 meses quando o pai morreu. Abel Pato foi preso por a polícia tentar, por seu intermédio, chegar ao irmão. O seu regresso vivo a casa, depois da morte de Carlos, foi uma das grandes alegrias da avó Maria. O «tio Abel» foi, até ao 25 de Abril, o «homem da casa», a referência masculina para as crianças e o apoio da mãe para as visitas ao irmão e ao sobrinho, quando presos. Teve dois filhos, Pedro Serrano Pato e Belinda Serrano Pato.
Álvaro e Isabel são os filhos de Octávio Pato e de Antónia Joaquina Monteiro. A ida para a clandestinidade, primeiro, e a separação do casal, depois, fizeram com que as crianças não aceitassem viver com a mãe quando esta as procurou, anos depois, cumprida a pena de prisão que sofrera com um segundo companheiro, também funcionário do partido comunista, de quem tem uma filha.
Isabel Pato tinha seis anos quando foi presa com a segunda companheira do pai Octávio, Albina Fernandes, e o filho de ambos, o seu irmão Rui Pato. As crianças tiveram de regressar à casa da avó Maria. Tanto a Isabel como o Rui foram muito marcados pela prisão que sofreram. Depois de libertados o Rui ficava doente de voltar à prisão para ver o pai. Albina ficou profundamente afectada psicologicamente pela prisão e, depois de várias campanhas para a sua libertação, acabou por sair em liberdade condicional em 1968. Suicidou-se em 1970.
O Álvaro Pato viveu anos a fio com a avó Maria e foi o primeiro da geração seguinte a seguir as pisadas do pai e dos tios na resistência. Passou à clandestinidade em 1972. Funcionário do PCP, foi preso em 1973 e violentamente torturado. Recusou-se a responder a quaisquer perguntas. No dia 25 de Abril cumpria pena de prisão em Caxias. No dia 27 de Abril foi um dos primeiros a ser libertados e virou a cara para o lado para não ser apanhado pelas câmaras, porque nunca se sabe. Continua a ser funcionário do PCP e, quando lhe pedem, vai às escolas falar do que foi o fascismo.
A experiência de Luz Obscura foi, de alguma forma, para os três filhos de Octávio, uma catarse do sofrimento passado. Esse é um outro e menos visível mérito, ainda que não cinematográfico, do trabalho de Susana de Sousa Dias.
A mão por detrás da câmara
Susana de Sousa Dias de Macedo nasceu em Lisboa, filha de Maria Helena Grilo de Sousa Dias e de António Luís Ernesto de Macedo. Tem um Doutoramento em Belas-Artes (Audiovisuais), um mestrado em Estética e Filosofia de Arte, e uma licenciatura em Pintura. Concluiu o curso de Cinema da Escola Superior de Teatro e Cinema e estudou música no Conservatório Nacional.
Entre os seus trabalhos contam-se Natureza Morta (Prémio Atalanta Doclisboa 2006, Prémio de Mérito Taiwan DFF), 48 (Grand Prix Cinéma du Réel 2010, Prémio FIPRESCI DokLeipzig 2010, Opus Bonum Award, entre muitos outros), e Natureza Morta|Stilleben(instalação em 3 canais, estreada no MNAC-Museu do Chiado). Luz Obscura é o seu filme mais recente.
Os seus trabalhos têm sido mostrados internacionalmente em festivais de cinema, espaços e exposições de arte tais como Documenta 14, PhotoEspaña, Viennale, Sarajevo IFF, Torino IFF, Visions du Réel, Festival de Cinema Independente Mar de Plata, IndieLisboa, Pacific Film Archive, Harvard Film Archive, Arsenal Institut für Filmund Videokunst, Berlim, Tabakalera, San Sebastian, Instituto de Arte Contemporânea de Londres, Museu de Arte Contemporânea do Ceará, entre outros.
Foi artista convidada no Robert Flaherty Film Seminar, Nova Iorque, em 2012. No mesmo ano formou um colectivo que dirigiu o Doclisboa, Festival Internacional de Cinema por duas edições consecutivas (2012 e 2013), abrindo novas categorias como Cinema de Urgência, Verdes Anos e Passagens (documentário e arte contemporânea).
É professora na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa. Vive com o historiador e investigador Ansgar Shäffer, com quem fundou a produtora Kintop.
Fonte:abrilabril
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