Portugal descobriu a fórmula mágica para garantir habitação social sem gastar um cêntimo de dinheiro público -- aliás, poupando-o, e ainda cobrando impostos por inteiro. Já merecíamos o Nobel da economia.
Fernanda Câncio |
"Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar." Este é o primeiro número do artigo 65º da Constituição portuguesa, "Habitação e Urbanismo". Que prossegue: "Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado (...) promover, em colaboração com as regiões autónomas e com as autarquias locais, a construção de habitações económicas e sociais; estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada." Diz também: "O Estado adotará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria."
Ao contrário do que sucedeu com outros direitos reconhecidos - e portanto garantidos -- pela lei fundamental, como o direito à saúde, à educação e à segurança social, o direito à habitação foi quase completamente ignorado nos 42 anos que se seguiram à respetiva aprovação. As políticas de habitação no pós 25 de abril - quer pela administração central quer pelas autarquias -- resumiram-se a três: congelamento das rendas e caráter vinculístico dos contratos de arrendamento, determinando a quase inexistência desse mercado e contribuindo, pela incapacidade financeira dos proprietários devido a rendas baixíssimas, para a degradação do património edificado; habitação social para os muito pobres, destinada a realojar pessoas que viviam em barracas (através do Programa Especial de Realojamento, anunciado em 1993, quase 20 anos após a mudança de regime); entrega à banca, e portanto à especulação, da gestão do setor, com forte subsidiação estatal através de bonificações várias do crédito à habitação.
Quer isto dizer que, ao contrário do que ocorreu e ocorre em países com um nível de vida muito mais elevado que o nosso, como os nórdicos e a Holanda, onde existe uma forte componente de habitação social destinada a vários setores sociais (e não apenas aos desmunidos) - uma boa parte dela, chegando a 20% na Holanda, assegurada por privados, através de programas de subsidiação pública -- o Estado português demitiu-se do seu papel de regulador do setor da habitação. Com uma única exceção, a do mercado de arrendamento privado, que tratou com mão de ferro, imputando a privados a totalidade do ónus de oferecer a habitação social que o Estado não providenciou.
Este facto é sempre obliterado de todas as discussões e reflexões sobre o direito à habitação em Portugal e dos próprios dados. Nas estatísticas nacionais e internacionais sobre habitação social - por exemplo numa publicação recente da OCDE - toda a habitação social portuguesa, que é calculada em 2% do total de habitação, é atribuída ao setor público; nem 1% é alocado a privados. No entanto, no trabalho de um grupo de investigação europeu sobre direito à habitação, certifica-se que em Portugal 4% dos arrendamentos habitacionais são garantidos por habitação social, enquanto 11,5% estão no regime de renda condicionada vitalícia, ou seja, o setor privado garante quase o triplo da habitação social do setor público. Com a particularidade de o fazer por imposição estatal e sem qualquer custo público - aliás, sem, qualquer benefício fiscal sequer. Por incrível que pareça, nem sequer na recente discussão sobre benefícios fiscais para senhorios alguém se lembrou de propor que os que estão há décadas a receber valores muito abaixo dos de mercado - em muitos casos equivalentes aos da habitação social pública - tenham algum tipo de compensação por esse facto. Nada: os proprietários obrigados a receber rendas dependentes do rendimento dos inquilinos pagam o mesmo de IRS e de IMI que todos os outros.
Portugal descobriu assim a fórmula mágica para garantir habitação social sem não só gastar um cêntimo de dinheiro público como até cobrando a totalidade dos impostos por ela. O que é verdadeiramente estranho, e que foi aliás frisado pelo PSD e CDS quando há um ano se debateu no parlamento a prorrogação dos prazos do congelamento das rendas pré-1990, é ver partidos de esquerda a aceitar esta privatização imposta da segurança social. Uma segurança social que de resto se regula por regras totalmente diferentes das da habitação social pública, já que o conceito de carência económica para quem beneficia daquelas rendas condicionadas vai até 2900 euros de rendimento bruto corrigido mensal. Com esse tipo de rendimento, escusado dizer, ninguém conseguirá candidatar-se a uma casa "da câmara".
Acresce que, ao prorrogar o prazo do congelamento das rendas anteriores a 1990, a esquerda limitou-se a assegurar que o subsídio que estava previsto na lei para auxiliar esses inquilinosserá pago pelos proprietários por mais uma série de anos, poupando uns milhões ao Estado e furtando-os à economia. Um bocadinho ao contrário da política de "devolução dos rendimentos" propalada pela maioria. E, sobretudo, sem que se perceba a que visão do direito à habitação e do papel do Estado no assegurar desse direito corresponde a manutenção de dois mercados de arrendamento separados, em que um tem preços condicionados para alguns, assegurando o prejuízo de proprietários aos quais não é assegurado qualquer benefício, e o outro é livre, com anunciados incentivos para os senhorios. Parece tudo ao contrário, não é?
Fonte: DN
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