♦ Matéria publicada na Revista Catolicismo, Nº 812, Agosto/2018, de autoria do Mons. José Luiz Villac (falecido em 27 de outubro passado)
Pergunta — Ouvi muitos padres pregarem sobre a pobreza, dizendo que é o centro do Evangelho. Por exemplo, ao comentarem a passagem “Ai de vós, ricos”; que Jesus nasceu pobre; e outras coisas desse gênero. Isso é verdade, mas noto neles uma antipatia contra a riqueza, mesmo quando empregada para o culto divino, pois normalmente preferem celebrar missas em igrejas que mais parecem galpões de fábricas. Sei que esse tipo de pregação é errado, mas não tenho argumentos para explicar aos meus próximos, por isso rogo a sua ajuda.
Resposta — Corruptio optimi pessima (a corrupção do ótimo é péssima). De modo um pouco diferente, os antigos diziam: quando o bom se perverte, torna-se péssimo. Nada mais nobre e elevado do que o ideal da pobreza evangélica, mas nada mais execrável do que a sua deturpação. São Francisco de Assis exaltava a Dama Pobreza, mas já nos primórdios da Ordem franciscana houve uma deformação do ideal seráfico em relação à pobreza evangélica, criando divisões e levando alguns de seus membros à heresia. Fazendo uma interpretação literal da Regra Franciscana, e deformando-a, os denominados espirituais, e mais tarde os fratricelli, passaram a considerar a pobreza não mais como um meio de perfeição, mas como um fim em si mesmo, colocando-a acima da caridade. Contrariavam assim o ensinamento de São Paulo: “Ainda que distribuísse todos os meus bens em sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tiver caridade, de nada valeria” (1 Cor. 13, 3).
O raciocínio errado em que se baseavam esses hereges era que Jesus Cristo e os Apóstolos procuravam a perfeição, portanto não possuíam bens privados nem em comum. O Papa João XXII respondeu com a bula Ad conditorem, ensinando que a perfeição evangélica consiste essencialmente na caridade (amor de Deus), e de nada serve renunciar aos bens materiais se a pessoa continua a se preocupar com eles. De fato, a rejeição da propriedade e da riqueza em si mesmas, defendida pelas heresias pauperistas medievais, destoa frontalmente dos ensinamentos bíblicos.
A riqueza enquanto dom de Deus
No Antigo Testamento considerava-se a riqueza como um dom de Deus, a ponto de os textos sagrados elogiarem sem nenhuma hesitação a riqueza dos personagens piedosos da história de Israel: Abraão era muito rico em rebanhos, prata e ouro (Gn 13,2); Isaac obteve o cêntuplo numa colheita e “tornou-se extremamente rico” (Gn 26, 12-13); Jacó “tornou-se extremamente rico, e teve muitos rebanhos”(Gn 30, 43); Deus promete ao povo eleito que o conduzirá a uma terra “excelente, cheia de torrentes”, “de trigo e de cevada, de vinhas”, “onde não será racionado o pão que comeres e onde nada faltará”, pelo que poderão “comer à saciedade” e bendizer o Senhor “pela boa terra” que lhe deu (Dt 8, 7-10). Quando a realeza for instaurada em Israel, a riqueza dos reis será considerada um sinal da proteção divina, com a condição de que sejam fiéis a Yahvé. Mais ainda, Deus enriquece os simples judeus que O amam, como Jó, por ter sido fiel na provação; Deus “tornou-lhe em dobro tudo quanto tinha possuído”, chegando a acumular “catorze mil ovelhas, seis mil camelos, mil juntas de bois e mil jumentas” (Jó 42, 10-12).
Esses exemplos mostram como para o Antigo Testamento a riqueza é um dom de Deus, sinal da generosidade divina e merecida recompensa do homem justo.
Ricos e pobres se encontram
Mas a riqueza não é considerada o bem mais elevado, pois o homem sábio prefere as riquezas espirituais às materiais. Isso fica muito patente nos Provérbios, onde abundam conselhos como: “Vale mais o pouco com o temor do Senhor que um grande tesouro com a inquietação” (Prov. 15, 16); “bom renome vale mais que grandes riquezas; a boa reputação vale mais que a prata e o ouro” (Prov. 22, 1). Além disso a riqueza é um valor relativo, onde “rico e pobre se encontram: foi o Senhor quem criou ambos” (Prov. 22, 2). O que os textos sagrados realmente reprovam é a riqueza obtida de maneira desonesta, como também quando ela apodrece o coração do homem e o leva a lesar seus semelhantes e a não dar esmola aos pobres.
No Novo Testamento, Nosso Senhor também estimula a confiança num Deus que enche o homem de bens, mas muito mais no campo espiritual do que no campo material: “Eu sou o pão da vida: aquele que vem a mim não terá fome, e aquele que crê em mim jamais terá sede” (Jo. 6, 35). E São Paulo se alegra em que os Coríntios tenham sido “ricamente contemplados com todos os dons, com os da palavra e os da ciência” (1 Cor. 1, 5), e por terem eles sido cumulados “com toda espécie de benefícios, para que tendo sempre e em todas as coisas o necessário, vos sobre ainda muito para toda espécie de boas obras” (2 Cor. 9, 8).
Condenáveis são o egoísmo e a injustiça
As invectivas de São Tiago contra os avaros e os injustos são dignas dos antigos profetas: “Vós, ricos, chorai e gemei por causa das desgraças que virão sobre vós. Vossas riquezas apodreceram e vossas roupas foram comidas pela traça. Vosso ouro e vossa prata enferrujaram-se, e a sua ferrugem dará testemunho contra vós e devorará vossas carnes como fogo. Entesourastes nos últimos dias. Clama contra vós o salário que defraudastes aos trabalhadores que ceifavam os vossos campos, e os gritos dos ceifadores chegaram aos ouvidos do Senhor dos exércitos” (Tg 5, 1-4). Note-se que ele não condena a riqueza em si mesma, mas sim o egoísmo e a injustiça.
As admoestações do Novo Testamento contra os ricos de coração tomam maior relevo quando comparadas aos ensinamentos de Nosso Senhor. Ele é muito claro quando diz que ninguém pode servir a dois senhores – Deus e o dinheiro (Mt 6, 24); para adquirir a pérola preciosa é preciso vender tudo (Mt 13, 45-46); a sedução das riquezas impede que seja ouvida a Palavra de Deus (Mt 13, 22). Estimula o jovem rico a vender tudo o que possui, dar aos pobres e segui-Lo (Mt 19, 21-22), e a recusa do convite leva-O a declarar: “É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus” (Mt 19, 24). Está muito claro aí que não se referia aos que são ricos, mas aos que têm apego às próprias riquezas ou às que gostariam de possuir. À luz das bem-aventuranças, isso se torna ainda mais evidente. Nosso Senhor não diz bem-aventurados os que morrem de fome, mas “bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos céus” (Mt 5, 3).
Igrejas, palácios dos pobres
Na sua vida pública, o Redentor esteve rodeado de pessoas abastadas. José de Arimateia, por exemplo, era proprietário do túmulo que recebeu o divino Corpo (Mt 27, 57). São Lucas conta que as mulheres que acompanhavam Jesus e seus discípulos “os assistiram com as suas posses” (Lc 8,2), porque o Evangelho não ordena desprender-se da riqueza, mas usá-la para dar esmolas, fazendo para si “bolsas que não se gastam, um tesouro inesgotável nos céus” (Lc 12, 33). A generosidade não deve ser vista como um mérito próprio, mas como um dom de Deus. Diz S. Paulo a Timóteo: “Exorta os ricos deste mundo a que não sejam orgulhosos nem ponham sua esperança nas riquezas volúveis, mas em Deus, que nos dá abundantemente todas as coisas para delas fruirmos. Que pratiquem o bem, enriqueçam-se de boas obras, sejam generosos, comunicativos, ajuntem um tesouro sólido e excelente para seu futuro, a fim de conquistarem a verdadeira vida” (1 Tim. 6, 17-19).
A melhor esmola que os ricos podem dar aos pobres é contribuir na construção de belas igrejas, na confecção de belos ornamentos e para o esplendor da sagrada liturgia. Nisso a Igreja imita Maria, a irmã de Lázaro, que ungiu os pés de Jesus com “uma libra de bálsamo de nardo puro, de grande preço”, e foi reconfortada pela repreensão do Mestre ao ganancioso Judas: “Sempre tereis convosco os pobres, mas a mim nem sempre me tereis” (Jo 12, 3-8). E São João ainda explicita um comentário esclarecedor para todas as épocas da Cristandade: “[Judas] disse isso, não porque se importasse com os pobres, mas porque era ladrão” (Jo 12, 8). Eis aí a verdade profunda, quando muitos falam em pobreza evangélica.
O pobre que entrava numa igreja sabia que todos aqueles esplendores — os muros suntuosos, as imagens imponentes nos altares, os quadros magníficos, a música sublime — estavam lá para ele, à sua inteira disposição, a serviço de sua alma; além da ajuda para o corpo, que ele podia receber em alguma obra da caridade. Ao entrar no templo, o pobre ignorante se tornava um rei, para cuja compreensão e edificação os maiores artistas pintaram e esculpiram todas aquelas maravilhas, os músicos compuseram músicas sublimes, os organistas tocaram e os coros cantaram, os sacerdotes realizaram minuciosamente cerimônias belas e compassadas. Toda a beleza e mistério da Igreja e dos templos constituía de fato um “patrimônio dos pobres”.
O fim para o qual fomos criados
Não há, de fato, nenhuma contradição entre a pobreza de coração e o esplendor dos templos e das cerimônias religiosas. A Igreja prega aos seus filhos a pobreza de coração; e estimula muitos outros, chamados ao estado de perfeição da vida religiosa, a observar a pobreza assumida como um voto feito diante de Deus. Nosso Senhor nos deu as criaturas para que elas nos conduzam a Ele; pois, por meio do amor à sublimidade e à ordem da Criação, as criaturas nos mostram a perfeição do Criador. Por outro lado, como tais criaturas são contingentes, passageiras, e só Deus é absoluto e eterno, é bom nos afastarmos e nos desapegarmos delas, para pensarmos principalmente no Senhor. Pelo espetáculo sublime das pompas da Igreja, e pela consideração das admiráveis renúncias que só Ela sabe inspirar e fazer realizar efetivamente, a Igreja convida seus filhos a caminhar por ambas as vias.
Nos “Princípios e fundamentos” dos Exercícios Espirituais, Santo Inácio de Loyola convida os que fazem um retiro espiritual a meditar nas seguintes verdades:
“O homem foi criado para louvar, prestar reverência e servir a Deus Nosso Senhor, e mediante isto salvar a sua alma; as outras coisas sobre a face da Terra foram criadas para o homem, para que o ajudem a conseguir o fim para o qual foi criado. Donde se segue que o homem há de usar delas tanto quanto o ajudem para o seu fim, e tanto deve deixá-las quanto disso o impedem. Por isso é necessário fazer-nos indiferentes a todas as coisas criadas, em tudo o que é concedido à liberdade do nosso livre arbítrio e não lhe está proibido; de tal maneira que, da nossa parte, não queiramos mais saúde que doença, riqueza que pobreza, honra que desonra, vida longa que vida curta, e consequentemente em tudo o mais. Mas somente desejemos e escolhamos o que mais nos conduz ao fim para o qual fomos criados”.
Fonte: ABIM
Nenhum comentário:
Postar um comentário