quinta-feira, 7 de maio de 2020

Refundar a participação cívica: um imperativo para a reconstrução do “novo normal”


Giovanni Allegretti (Centro de Estudos Sociais – Universidade de Coimbra)
Giovanni Alegretti - OFICINA
Muitos países procederam na semana passada a uma gradual abertura do lockdown. Torna-se, por isso, importante relembrar a classe política que a participação de cidadãs e cidadãos na reconstrução da sociedade no período pós-emergência é fundamental. Em França, um painel de 150 cidadãos selecionados aleatoriamente para integrar a “Convenção Cidadã para o Clima” (www.conventioncitoyennepourleclimat.fr) apresentou o Relatório “Contribuição para o plano de saída da crise”, enquanto uma centena de autarcas, governadores, intelectuais e líderes sociais enviavam ao Presidente Macron a petição “#NousLesPremiers: um cenário democrático para o mundo do depois”, que propõe um plano em 3 etapas, que prevê o envolvimento direto dos habitantes na reconstrução da sociedade e da economia. Em Espanha, começou a debater-se a forma de acompanhar a (polémica) proposta de um novo “Pacto da Moncloa”, prevendo a criação de painéis de cidadãos sorteados para que possam partilhar as suas visões sobre o planeamento da era “pós-Covid”.
Em Itália, vozes de elevada autoridade moral têm-se feito ouvir contra as comissões e as task-forces nomeadas pelo Governo para planear a reconstrução pós-pandemia. Essas deixaram de fora especialistas de participação cidadã e quase não contemplam a presença de mulheres-peritos, tal como realçou a apresentadora de TV, Ambra Angiolini, durante um concerto do 1 de Maio, transparecendo para a sociedade uma mensagem política distorcida sobre as forças que são necessárias reunir para que o “mundo novo” não aprofunde desigualdades e exclusões.
Como escreveu o ex-presidente da Corte Constitucional italiana, Zagrebelski, fundador da “Bienal da Democracia” de Turim, o governo parece não entender que “hábitos, atividades e necessidades materiais e espirituais das pessoas não são matéria inerte, moldável como cera nos mínimos detalhes” e depois do período de obediência é necessário construir a fase da responsabilidade”. Esta não pode prescindir de uma participação ativa dos cidadãos porque "chamar à obediência e solicitar à ética responsabilidade são coisas profundamente diferentes” e os meios para promover cada uma delas também são totalmente diversos. Este debate reforçou-se com a apresentação do “Relatório 2019 da administração partilhada dos bens comuns”, redigido pelo Laboratório da Subsidiariedade (www.labsus.org) que coordena 218 cidades italianas que apostaram na construção de pactos de gestão de espaços, edifícios e atividades públicas, co-construindo regulamentos municipais para agilizar a cooperação entre comunidades e autarquias. Vale a pena reforçar que cerca de 20 por cento destes pactos são realizados com grupos informais de cidadãos (não legalmente constituídos), e 1/5 dos participantes são indivíduos não filiados nas formas de associativismo clássico. Uma parte significativa destes ‘movimentos’ não interromperam a sua atividade durante o período de emergência, optando por direcionar a sua ação para apoiar pessoas em situação de vulnerabilidade. Para realçar o contributo à resiliência das cidades italianas, oferecido por estas experiências participativas, a Associação Nacional de Municípios (ANCI) tem vindo a organizar webinars para divulgar as boas práticas e imaginar como “refundar a participação” cívica com a retomada gradual das atividades sociais. Cidades como Milão, Bari ou Nápoles têm vindo a abrir aos cidadãos os seus Planos de Resiliência, a organizar hubs para otimizar as atividades espontâneas de solidariedade, e a coordenar as mais de 40.000 iniciativas de crowdfunding que foram sendo financiadas durante o período de emergência. Muitas câmaras têm distribuído longos inquéritos visando entender como os cidadãos têm vivido a sociabilidade limitada, os espaços da casa, as exigências de apoio familiar à telescola e as dinâmicas de smart working. Em apenas uma semana, Reggio Emilia recolheu 4800 respostas a um extenso questionário para repensar a participação cívica, e 34 por cento dos que responderam declararam que estão prontos a envolver-se, embora nunca se tenham implicado nos processos participativos antes da crise.
É claro que a participação vai ter que ser repensada. As pessoas têm medo de se reencontrar em grandes grupos, e provavelmente estão saturadas de tecnologia nas suas vidas, mas querem, sobretudo, ser ouvidas sobre grandes questões, como a reconstrução do estado social (sobretudo educação e saúde) e a luta contra as novas desigualdades e as exclusões.
É preciso também repensar os padrões das habitações, reprogramá-las para novas formas de convívio e multifuncionalidades, como ensina uma rede de arquitetos da Galiza que está a apoiar os habitantes na transformação dos seus espaços de vida. Nova Orleães – depois do furação Katrina – tem ensinado ao mundo quanto a participação na reconstrução é indispensável para repensar o tecido urbano e a sua economia. Durante a crise da Covid-19, autarquias como as de Prato (com o seu diálogo precoce com a enorme comunidade chinesa) ou Seattle (decidindo com os cidadãos os sítios a ser usados para as quarentenas) têm dado prova de que apostar nos habitantes pode trazer soluções geniais até na emergência.
Pode Portugal ficar fora deste debate? É impossível, para um país que entrou com força no mapa mundial da participação pública, à qual os meios de comunicação nacionais tem dedicado tanto espaço. Somos dos poucos países que tem tido centenas de orçamentos participativos locais e até três experiências promovidas pelo governo nacional, e a RAP (Rede das Autarquias Participativas) é única no panorama europeu. Por dois meses, os nossos processos participativos formalizados ficaram em modalidade “stand-by”, bloqueados pelo distanciamento social e as urgências sanitárias. Mas, gora é tempo de repartir, partilhar a reconstrução, canalizar as novas formas de ativismo solidário e lúdico que nasceram na emergência, e de transformá-los em ativismo estratégico. Para repensar a nova economia, a harmonia com a natureza, as maneiras de fazer cultura e de se encontrar em formas que garantam segurança e criem nova sociabilidade. Para que o “novo mundo” seja mesmo novo, o Estado não pode atuar sozinho. As instituições são inerciais e as elites políticas não têm suficiente criatividade para se colocarem no lugar das tantas pessoas diferentes que compõem a nossa sociedade. Para não repetir os erros do passado, não precisamos de assistencialismo nem de paternalismo, mas que seja reconhecido aos cidadãos o direito de participar, que foi conquistado, durante estes meses de tragédia coletiva, com comportamentos responsáveis e pró-ativos. Ao Estado cabe sobretudo montar um processo de reconstrução tripartido (instituições, empresas, comunidades), abrindo espaços substantivos para cidadãs e cidadãos, e coordenando os níveis de governos num percurso participativo multinível, que possa imediatamente aproveitar (em cada nível administrativo) tantas ideias e práticas de cogestão dos bens comuns que foram emergindo nestes meses e – por certo – irão emergir ao longo do percurso.

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