Giovanni
Allegretti (Centro de Estudos Sociais – Universidade de Coimbra)
Muitos
países procederam na semana passada a uma gradual abertura do
lockdown. Torna-se, por isso, importante relembrar a classe
política que a participação de cidadãs e cidadãos na
reconstrução da sociedade no período pós-emergência é
fundamental. Em França, um painel de 150 cidadãos selecionados
aleatoriamente para integrar a “Convenção Cidadã para o Clima”
(www.conventioncitoyennepourleclimat.fr) apresentou o Relatório
“Contribuição para o plano de saída da crise”, enquanto uma
centena de autarcas, governadores, intelectuais e líderes sociais
enviavam ao Presidente Macron a petição “#NousLesPremiers: um
cenário democrático para o mundo do depois”, que propõe um plano
em 3 etapas, que prevê o envolvimento direto dos habitantes na
reconstrução da sociedade e da economia. Em Espanha, começou a
debater-se a forma de acompanhar a (polémica) proposta de um novo
“Pacto da Moncloa”, prevendo a criação de painéis de cidadãos
sorteados para que possam partilhar as suas visões sobre o
planeamento da era “pós-Covid”.
Em
Itália, vozes de elevada autoridade moral têm-se feito ouvir contra
as comissões e as task-forces nomeadas pelo Governo para
planear a reconstrução pós-pandemia. Essas deixaram de fora
especialistas de participação cidadã e quase não contemplam a
presença de mulheres-peritos, tal como realçou a apresentadora de
TV, Ambra Angiolini, durante um concerto do 1 de Maio, transparecendo
para a sociedade uma mensagem política distorcida sobre as forças
que são necessárias reunir para que o “mundo novo” não
aprofunde desigualdades e exclusões.
Como escreveu o ex-presidente da Corte Constitucional italiana,
Zagrebelski, fundador da “Bienal da Democracia” de Turim, o
governo parece não entender que “hábitos, atividades e
necessidades materiais e espirituais das pessoas não são matéria
inerte, moldável como cera nos mínimos detalhes” e depois do
período de obediência é necessário construir a fase da
responsabilidade”. Esta não pode prescindir de uma participação
ativa dos cidadãos porque "chamar à obediência e solicitar à
ética responsabilidade são coisas profundamente diferentes” e os
meios para promover cada uma delas também são totalmente diversos.
Este debate reforçou-se com a apresentação do “Relatório 2019
da administração partilhada dos bens comuns”, redigido pelo
Laboratório da Subsidiariedade (www.labsus.org) que coordena 218
cidades italianas que apostaram na construção de pactos de gestão
de espaços, edifícios e atividades públicas, co-construindo
regulamentos municipais para agilizar a cooperação entre
comunidades e autarquias. Vale a pena reforçar que cerca de 20 por
cento destes pactos são realizados com grupos informais de cidadãos
(não legalmente constituídos), e 1/5 dos participantes são
indivíduos não filiados nas formas de associativismo clássico. Uma
parte significativa destes ‘movimentos’ não interromperam a sua
atividade durante o período de emergência, optando por direcionar a
sua ação para apoiar pessoas em situação de vulnerabilidade. Para
realçar o contributo à resiliência das cidades italianas,
oferecido por estas experiências participativas, a Associação
Nacional de Municípios (ANCI) tem vindo a organizar webinars para
divulgar as boas práticas e imaginar como “refundar a
participação” cívica com a retomada gradual das atividades
sociais. Cidades como Milão, Bari ou Nápoles têm vindo a abrir aos
cidadãos os seus Planos de Resiliência, a organizar hubs
para otimizar as atividades espontâneas de solidariedade, e a
coordenar as mais de 40.000 iniciativas de crowdfunding que
foram sendo financiadas durante o período de emergência. Muitas
câmaras têm distribuído longos inquéritos visando entender como
os cidadãos têm vivido a sociabilidade limitada, os espaços da
casa, as exigências de apoio familiar à telescola e as dinâmicas
de smart working. Em apenas uma semana, Reggio Emilia recolheu
4800 respostas a um extenso questionário para repensar a
participação cívica, e 34 por cento dos que responderam declararam
que estão prontos a envolver-se, embora nunca se tenham implicado
nos processos participativos antes da crise.
É
claro que a participação vai ter que ser repensada. As pessoas têm
medo de se reencontrar em grandes grupos, e provavelmente estão
saturadas de tecnologia nas suas vidas, mas querem, sobretudo, ser
ouvidas sobre grandes questões, como a reconstrução do estado
social (sobretudo educação e saúde) e a luta contra as novas
desigualdades e as exclusões.
É
preciso também repensar os padrões das habitações, reprogramá-las
para novas formas de convívio e multifuncionalidades, como ensina
uma rede de arquitetos da Galiza que está a apoiar os habitantes na
transformação dos seus espaços de vida. Nova Orleães – depois
do furação Katrina – tem ensinado ao mundo quanto a participação
na reconstrução é indispensável para repensar o tecido urbano e a
sua economia. Durante a crise da Covid-19, autarquias como as de
Prato (com o seu diálogo precoce com a enorme comunidade chinesa) ou
Seattle (decidindo com os cidadãos os sítios a ser usados para as
quarentenas) têm dado prova de que apostar nos habitantes pode
trazer soluções geniais até na emergência.
Pode
Portugal ficar fora deste debate? É impossível, para um país que
entrou com força no mapa mundial da participação pública, à qual
os meios de comunicação nacionais tem dedicado tanto espaço. Somos
dos poucos países que tem tido centenas de orçamentos
participativos locais e até três experiências promovidas pelo
governo nacional, e a RAP (Rede das Autarquias Participativas) é
única no panorama europeu. Por dois meses, os nossos processos
participativos formalizados ficaram em modalidade “stand-by”,
bloqueados pelo distanciamento social e as urgências sanitárias.
Mas, gora é tempo de repartir, partilhar a reconstrução, canalizar
as novas formas de ativismo solidário e lúdico que nasceram na
emergência, e de transformá-los em ativismo estratégico. Para
repensar a nova economia, a harmonia com a natureza, as maneiras de
fazer cultura e de se encontrar em formas que garantam segurança e
criem nova sociabilidade. Para que o “novo mundo” seja mesmo
novo, o Estado não pode atuar sozinho. As instituições são
inerciais e as elites políticas não têm suficiente criatividade
para se colocarem no lugar das tantas pessoas diferentes que compõem
a nossa sociedade. Para não repetir os erros do passado, não
precisamos de assistencialismo nem de paternalismo, mas que seja
reconhecido aos cidadãos o direito de participar, que foi
conquistado, durante estes meses de tragédia coletiva, com
comportamentos responsáveis e pró-ativos. Ao Estado cabe sobretudo
montar um processo de reconstrução tripartido (instituições,
empresas, comunidades), abrindo espaços substantivos para cidadãs e
cidadãos, e coordenando os níveis de governos num percurso
participativo multinível, que possa imediatamente aproveitar (em
cada nível administrativo) tantas ideias e práticas de cogestão
dos bens comuns que foram emergindo nestes meses e – por certo –
irão emergir ao longo do percurso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário