terça-feira, 14 de julho de 2020

Quando a caridade fala mais alto

Plinio Maria Solimeo

As regras da cortesia e da caridade são dificilmente observadas em uma batalha renhida. Abater o inimigo se torna o fim primordial de todo combatente, não importando as circunstâncias em que ele se encontre. É a lei “olho por olho, dente por dente” que vigora implacavelmente nos tempos modernos.
No entanto, não foi o que sucedeu durante a Segunda Guerra Mundial entre um piloto alemão da Luftwaffe e um piloto americano cujo avião estava totalmente avariado. Deu-se então um dos atos mais notáveis de cavalaria dessa terrível e mortífera guerra.

Esse fato é narrado pelo americano Adam em seu livro O amigo alemão, escrito em colaboração com Larry Alexander [capa ao lado]

Um piloto em sua primeira missão

No dia 20 de dezembro de 1943 o piloto americano Charles Brown, de apenas 21 anos, crescido em uma fazenda na Virgínia Ocidental, estava em sua primeira missão de combate.

Ele fazia parte de um esquadrão de caças B-17 e B-24 que iriam atacar na periferia de Bremen as fábricas dos famosos FW-190 alemães. Seu B-17 — “The Pub” — transportava 10 homens, 12 bombas de 226 quilos e metralhadoras de calibre 50. A partir de 12 mil pés, os tripulantes eram obrigados a usar máscaras de oxigênio.

Acontece que os alvos visados estavam fortemente defendidos, de maneira que, ao entrarem em território alemão, os aviões americanos foram ao mesmo tempo acossados por caças inimigos e alvo da artilharia alemã, que disparava contra eles seus canhões de 88 milímetros.

Os pilotos americanos haviam recebido a ordem de, “após lançarem as bombas, escapar da Alemanha o mais depressa possível”, pois os aviões-caça aliados usados para proteger os bombardeiros e atacar seus símiles alemães “haviam partido mais cedo, ‘por causa dos fortes ventos contrários que teriam de enfrentar a caminho de casa’”.

Cascata de desgraças

Foi então que o B-17 de Charlie Brown recebeu tal impacto dos aviões inimigos, que o deram por derrubado. “Fomos atingidos no nariz”, alertou Andy, um dos tripulantes. “Aqui está parecendo um furacão!”, comentou Doc, outro tripulante. Ambos eram os artilheiros do B-17.

Relatam outros dois tripulantes, Makos e Alexander: “Charlie ouviu um projétil se estilhaçando, e sentiu os controles frouxos por um momento, conforme o bombardeiro empinava para cima e depois voltava para baixo em um só golpe”. Mas a situação piorava: “Estamos perdendo pressão no óleo do motor número dois!”, informou Pinky, o co-piloto. O avião passou a voar com três dos quatro motores. Dos membros da tripulação, um fora morto ao ser atingido por uma bala de canhão, e outros seis estavam feridos.

Apareceram então mais dois FW-190s alemães, que mergulharam em direção à cabine do bombardeiro, mirando nos pilotos e nos controles. Numa manobra radical, “Charlie puxou o controle e subiu direto ao encontro deles. Mas, em vez de oferecer ao inimigo um alvo plano de asas largas e um corpo comprido, o piloto americano estava apresentando seu bombardeiro da maneira mais estreita possível, e aumentando a velocidade de aproximação”.

O piloto do primeiro FW-190 alemão ficou surpreso com a manobra. “Ele atirou à distância, as balas resvalando no bombardeiro, acertando a fuselagem, mas falhando em nocauteá-lo.” O americano Frenchy revidou com suas metralhadoras duplas, e o atingiu de maneira a pô-lo fora de combate.

Outros cinco FW-190 atacaram. Um dos tiros acertou o bombardeiro e jogou Jenning e Russian ao chão. “Os fragmentos do projétil estouraram a fuselagem do bombardeiro para fora. A parte inferior da perna esquerda de Russian continuava presa somente graças a uns poucos tendões”. Na cauda. Ecky foi atingido e morreu. Um estilhaço furou um olho de Pechout.

Brown também acabou ferido, mas não perdeu o controle do avião. “O The Pub chacoalhava do rabo para adiante, quase impedindo as curvas de Charlie. Um 190 arrancara o seu estabilizador horizontal esquerdo, deixando um toco de 90 centímetros onde antes havia uma asa traseira de 4,8 metros.”

Brown não sabia mais o que fazer. Sugeriu então que quem quisesse saltasse de pára-quedas. Poucos estavam em condições de fazê-lo. Mas alertou que cairiam em terreno inimigo, fortemente armado. Quanto a si, afirmou que não abandonaria Russian, que estava gravemente ferido, e queiria enfrentar a artilharia alemã da Muralha do Atlântico para voltar à Inglaterra. Os outros sete companheiros decidiram acompanhá-lo.

Mas, por quanto tempo conseguiriam aguentar no ar naquelas condições tão precárias?

O inesperado inimigo

Apareceu então diante do avião avariado, um caça alemão Messerschmitt Bf 109 G-6, pilotado por Franz Stigler.

O major Franz Stigler era um ás. De família muito católica da Baviera, em suas missões tinha sempre um rosário nas mãos ou no bolso. Ele podia traçar a ascendência de sua família a cavaleiros da Europa do século XVI. Estudara para ser padre antes de dedicar-se à aviação.

Stigler entrou no combate confiante, porque mais um avião inimigo que derrubasse, lhe valeria a Cruz do Cavaleiro, o maior prêmio alemão por bravura.

Ele estava reabastecendo e rearmando seu avião em um campo de pouso, e logo decolou em seu Messerschmitt, que tinha uma bala de metralhadora calibre 50 Browning embutida em seu radiador, o que poderia provocar o superaquecimento do motor.

Apesar disso, ele rapidamente alcançou o avião de Brown. “Como o bombardeiro estava sozinho sem as metralhadoras coletivas de uma formação para protegê-lo, Franz decidiu atacá-lo por trás”, relatam Makos e Alexander.

Franz Stigler tinha motivos pessoais para combater os Aliados. Em 1940 seu pai fora morto em combate, bem como seu irmão mais velho, que também era piloto da Luftwaffe. Além disso, os pilotos americanos haviam também matado muitos de seus camaradas, e estavam bombardeando as cidades de seu país. Tudo isso pesava em sua decisão de atacar o inimigo.

Atirar ou não num inimigo indefeso?
Pintura mostra o encontro do bombardeiro B-17 pilotado por Charlie Brown e o caça 109 pilotado por Franz Stigler

Entretanto, no momento em que se preparou para atirar, Stigler pôs a mão sobre o rosário que mantinha na jaqueta de vôo, e titubeou. Começou então a observar o bombardeiro avariado, impressionado como aquele frangalho de avião permanecia no ar. “Através” das “costelas expostas” do B-17, o alemão “viu os membros da tripulação enrodilhados uns nos outros, cuidando dos feridos. Avançando um pouco mais, Franz posicionou o 109 acima da asa direita do B-17. E viu que o nariz do bombardeiro fora arrancado, e que ele voava como que sustentado por um fio invisível”.

“Tem alguma coisa errada aí”, Franz pensou quando viu as metralhadoras pensas, sem vida, apontando para a terra. Em seguida, seus olhos fixaram no estabilizador esquerdo do bombardeiro. E murmurou: “Meu Deus, como vocês ainda estão voando?”. O B-17 parecia um galo despenado depois de intensa briga em rinha.

Stigler se lembrou então das palavras de um de seus oficiais comandantes de Jagdgeschwader 27, Gustav Rödel, durante o tempo em que lutava no norte da África: “Se eu vir ou ouvir você atirando em um homem de pára-quedas, eu mesmo atirarei em você”. E acrescentou: “Você segue as regras da guerra por você, não por seu inimigo. Você luta por regras para manter a humanidade”.

Mais tarde, Stigler comentou: “Para mim, era como se eles estivessem de pára-quedas. Eu os vi e não pude derrubá-los”. Por isso decidiu não matar os americanos: “Isto não vai ser uma vitória para mim. Eu vou ter isto na minha consciência pelo resto da vida”, pensou. Pois matar pessoas indefesas não era o forte do alemão, uma vez que Stigler não era filiado ao Partido Nazista, e não tinha nenhuma admiração por Hitler nem por Goering, o chefão da Luftwaffe.

Ocorre o imprevisível

O piloto americano do B-17 olhando para fora de sua cabine, ficou congelado quando viu o avião de Stigler pronto a atingi-los. Seu co-piloto viu o mesmo perigo e exclamou: “Meu Deus, isso é um pesadelo”. “Ele vai nos destruir”, concordou o piloto.

Mas, para surpresa de ambos, Stigler não abriu fogo contra o bombardeiro aleijado. Pelo contrário, voou para cerca de um metro de distância da asa direita do The Pub e, vendo o medo nos olhos dos americanos, fez um sinal com a cabeça para Charlie Brown, sugerindo que eles pousassem na Alemanha. Mas não foi entendido. Em seguida, Frank Stigler sugeriu que fossem para a Suécia e, de novo, não o entenderam.

Numa resolução arriscada, como o bombardeiro não tinha a mínima condição de enfrentar a artilharia pesada alemã da Muralha do Atlântico, Frank Stigler decidiu protegê-lo. Os alemães dos outros aviões viram então que um de seus caças seguia o avião americano, quiçá para destruí-lo, e não atiraram. Assim Stigler escoltou em segurançao B-17 danificado pela costa, até chegarem a mar aberto.

De longe, então Stigler lhes disse: “Boa sorte, vocês estão nas mãos de Deus”.

Franz Stigler não contou a ninguém o que havia acontecido, senão teria que enfrentar uma corte de guerra. Pois um piloto alemão que poupasse o inimigo, arriscava-se à morte na Alemanha nazista. Se alguém o denunciasse, ele seria executado.

O valoroso piloto alemão então se perguntou: “Valeu a pena?” Pois ele não achava que o grande B-17 pudesse voltar à Inglaterra naquelas condições. Por anos ele se perguntou o que teria acontecido com o piloto e com a tripulação americana que encontrou em combate.

Final feliz
O bombardeiro B-17 pilotado pelos norte-americanos Charlie Brown e Pinky levava dez militares.

Com rara perícia, Charlie Brown continuou tentando levar o avião em pedaços rumo à Inglaterra. “Tudo o que podemos fazer agora é rezar”, disse aos colegas. E acreditava que um terceiro piloto Deus o havia protegido. Primeiro porque, mesmo com o avião quase destroçado, aos trancos e barrancos ele e seus companheiros chegaram finalmente à Inglaterra. Em segundo lugar, pelo fato estranhíssimo de que um alemão decidira não só não matá-los, mas protegê-los.

Brown conseguiu voar cerca de 400 km através do Mar do Norte. Quando as esperanças estavam quase perdidas, ocorrera que ele e seus companheiros de infortúnio viram caças P-47 Thunderbolts da 8ª Força Aérea. “Amiguinhos”, gritou Frenchy para o piloto de um deles. Foram então foram guiados por eles para uma pista de pouso numa base aérea na Inglaterra.

Com muito esforço, Brown conseguiu aterrissar aquele avião de quatro motores que só tinha um e meio funcionando. Quando, finalmente, tudo terminou, mais uma vez ele agradeceu a Deus.

Epílogo
Os pilotos americano Charlie Brown e alemão Franz Stigler, nos Estados Unidos, quarenta e seis anos depois do encontro nos céus da Alemanha. Eles se tornaram amigos-irmãos e morreram no mesmo ano, em 2008

Terminada a guerra, Brown voltou para sua casa na Virgínia Ocidental, fez faculdade, retornando à recém-criada Força Aérea dos Estados Unidos em 1949 e servindo até 1965. Casou-se, teve duas filhas, e foi mais tarde Oficial do Serviço Estrangeiro do Departamento de Estado, fazendo inúmeras viagens ao Laos e ao Vietnã. Em 1972 se aposentou do serviço público, e se mudou para Miami, onde se tornou um inventor de êxito.

Por sua vez Franz Stigler mudou-se em 1953 para Vancouver, no Canadá, e se tornou também um empresário de sucesso.

Acontece que Brown nunca pôde esquecer aquele oficial alemão a quem ele e os outros tripulantes do B-17 deviam a vida. Depois de quatro anos pesquisando em vão nas Forças Aéreas do Exército dos Estados Unidos, na Força Aérea americana e na Força Aérea da Alemanha Ocidental algo que poderia lançar alguma luz sobre quem era o outro piloto, Brown quase desistiu. Como última tentativa, escreveu então uma carta para um boletim da Associação de Pilotos de Combate.
Brown e Stigler entregam ao governador de Flórida, Jeb Bush, uma reprodução do desastre que protagonizaram.

Foi então que inesperadamente, em 18 de janeiro de 1990, Brown recebeu uma auspiciosa carta do Canadá: “Caro Charles. Todos esses anos me perguntei o que aconteceu com aquele B-17; ele chegou em casa? Sua tripulação sobreviveu às feridas? Ouvir falar de sua sobrevivência me encheu de uma alegria indescritível”. Era Franz Stigler, que providencialmente lera sua mensagem naquele boletim.

Stigler disse a Brown que estaria na Flórida no verão e “seria bom conversar sobre o nosso encontro”. Brown estava porém tão empolgado, que mal podia esperar para ver Stigler. Ligou para a assistência de diretório de Vancouver, e perguntou se havia um número em nome de Franz Stigler. E havia. Ele discou, e Stigler atendeu.
Brown escrevera uma carta de agradecimento a Stigler, mas um dia quis mostrar a extensão de sua gratidão: organizou uma reunião dos membros sobreviventes da tripulação, junto com suas famílias ampliadas. E pediu a Stigler que fosse o convidado de honra. Durante a reunião, foi reproduzido um vídeo mostrando todos os rostos das pessoas que agora viviam — filhos, netos, parentes — por causa do ato de cavalaria de Stigler.

Brown e Stigler tornaram-se íntimos amigos. Faziam viagens de pesca juntos, viajavam para as casas uns dos outros e para compartilhar sua história nas escolas e nas reuniões de veteranos. Suas esposas, Jackie Brown e Hiya Stigler, tornaram-se amigas.
Os dois novos amigos morreram com alguns meses de diferença outro em 2008. Stigler tinha 92 anos, e Brown, 87.

ABIM
Fontes:

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