Num tempo de grandes desafios importam ainda mais as pequenas coisas. Os gestos simples, o que dizemos e fazemos, mas acima de tudo a maneira como o fazemos e como o dizemos. O ‘como’ é, e será sempre, uma grande questão ao longo da nossa vida. Os ‘porquês’ ficam muitas vezes sem resposta e os ‘para quê’ nem sempre são claros ou inteligíveis. Muitas vezes precisamos de tempo para conseguir ler os acontecimentos da vida, para os podermos processar e integrar. Os ‘para quê’ quase nunca são imediatos, mas se os alcançamos ajudam a fazer caminho por serem oportunidades de crescimento e superação. Dão pistas e perspetiva, mudam o rumo e dão novos sentidos, mas podem ser extraordinariamente difíceis de encaixar e, por vezes, chegam a ser erosivos. Para quê uma doença, uma morte, uma perda, uma crise, uma rutura, um afastamento, um desgosto, um colapso, um desmoronamento? Os ‘para quê’ são difíceis e exigem tempo, muito tempo. E fé. Uma fé que não tem que ser religiosa, note-se. Pode ser uma crença, uma confiança no amor, na amizade ou na transcendência.
Já o ‘como’ é mais repentista e obriga a elevar a fasquia da exigência quotidiana. Está ao nosso alcance tentar perceber como agir e reagir, como comunicar, como acolher, como proteger, como cultivar, como proceder e por aí adiante. Está nas nossas mãos refletir nos ‘como’ da vida: como educar, como ajudar a crescer, como escutar, como resgatar, como encher de confiança, como devolver a esperança. E é neste ‘como’ que os pequenos gestos fazem uma grande diferença.
Recordo muitas frases que ouço a padres e pessoas de vida consagrada que me inspiram e orientam a minha vida espiritual, e tenho muito presente as longas conversas que mantive com Alberto Brito, padre jesuíta, quando nos sentámos para escrever o livro que foi publicado com o título “Ouvir, Falar, Amar”. Foram tempos verdadeiramente iluminantes e aprendi muito com ele. Uma das coisas que o Padre Alberto Brito diz com alguma frequência e toda a razão é que não devemos perder tempo com o que entra em nós, devemos focar-nos obsessivamente no que sai de nós.
- “Não vale a pena perder tempo com o que entra em nós porque a toda a hora entram empatias e antipatias, adesões e aversões, pensamentos involuntários e julgamentos de toda a espécie. Tentar que algumas destas coisas entrem em nós é tempo perdido. Também não vale a pena desperdiçarmo-nos muito a tentar ordenar tudo o que nos habita, porque ao meio dia queremos uma coisa e ao meio dia e um quarto podemos querer o contrário. Os pensamentos, as inclinações, as tentações, as necessidades e as urgências, assim como os impulsos e as pulsões são difíceis de manter ordenados e cada um no seu sítio. Tudo se mistura cá dentro. O que vale a pena é focarmos obsessivamente no que sai de nós. Isso sim!”
O que sai de nós é que faz toda a diferença. E tratar bem ou menos bem alguém que nos irrita tem impactos muito distintos. Se sinto antipatia ou até aversão, mas mesmo assim sou capaz de ser correto e eticamente irrepreensível, estou a tentar construir alguma coisa. Se, pelo contrário, sigo os meus instintos e devolvo o mal com mal, ou trato pior a pessoa de quem gosto menos (mas com quem até tenho que colaborar, porque é meu par na empresa ou até porque pertence à minha família ou círculo alargado de amigos), então estou a destruir.
Posso não destruir completamente a pessoa, mas destruo a possibilidade de entendimento e cooperação com ela. E mato a confiança porque facilmente lhe coloco um rótulo ou desisto dela.
Num tempo em que estamos todos convocados a dar o nosso melhor tornou-se imperativo refletir sobre os nossos ‘como’. Como estou a ser capaz de conversar em casa, como estou em matéria de aceitação dos outros, como estou a amar os meus e como posso fazer para acolher, e até ajudar, os que não são meus? Como estou a ouvir os que trabalham comigo ou dependem de mim, como vou fazer para chegar aos que estão a afundar, como ando a agir e a reagir?
Cada um sabe de si e dos seus desafios, mas penso que todos nos revemos nesta interpelação do ‘como’. Temos mais capacidades do que julgamos e o nosso impacto nos outros nunca é inócuo. Daí a necessidade de perceber a importância dos pequenos gestos e a radicalidade de ficarmos cada vez mais atentos àquilo que sai de nós.
Laurinda Alves é jornalista, escritora, tradutora e professora universitária de Comunicação, Liderança, e Ética.
Foto:Agencia Ecllesia
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Artigo enviado por José Rui M. Rabaça
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