sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

“Union sacrée” contemporânea

 

  • Péricles Capanema

Desculpem-me o título na língua dos outros — a união sagrada, em português. Justifico-me: a expressividade tem seus direitos, a elocução francesa aqui torna mais viva a realidade que tomou a França durante a 1ª Guerra Mundial em face das potências centrais, em especial da Alemanha. Proclamou-se na ocasião a necessidade imperiosa de uma união sagrada, fundada na trégua interna, que pudesse coligar para a defesa da pátria agredida todas as correntes de relevância no país, até então em choque; republicanos, monarquistas, católicos, ateus, livre-pensadores, socialistas, conservadores, tradicionalistas, progressistas. A França polarizada daria lugar à França unida na defesa da pátria atacada. Quem ficasse de fora da coligação de salvação nacional se sentia mal; rejeitado socialmente, incompreendido mesmo dos seus, poderia até acabar marcado com o labéu de covarde traidor — um pária. Situações desse tipo acontecem, não são raras.

Essa aconteceu assim. Em 3 de agosto de 1914, a Alemanha declarou guerra à França, que penava a derrota humilhante de 1870, com a consequente perda de importantes províncias. Vieram então as gerações “revanchardes”, ansiosas por revanche e vingança. A declaração de guerra abria possibilidade para o acerto de contas; em resumo, parecia, tinha chegado a hora. Esperava-se uma guerra rápida, com triunfo certo; veio uma guerra longa, com sofrimentos sem fim e triunfo pela mão dos Estados Unidos.

Um dia antes, 2 de agosto, em ambiente de tensão altíssima entre os dois países, o estado de sítio já havia sido declarado na França, com convocação do Parlamento para o dia 4. Em 4 de agosto, René Viviani, presidente do Conselho de Ministros, leu no Parlamento mensagem de Raymond Poincaré [foto ao lado], presidente da França: “Na guerra que começa, a França terá a seu lado o direito, do qual os povos, assim como os indivíduos, não podem desconhecer impunemente o eterno poder moral. Ela será heroicamente defendida por todos os seus filhos, nada quebrará sua união sagrada; estão hoje fraternalmente congregados em uma mesma indignação contra o agressor e em uma mesma fé patriótica”.

Nada quebrará sua união sagrada; aqui nasceu para a política francesa a expressão “união sagrada”; durou anos, deixou marcas profundas na vida de cada francês. O ardor da fé patriótica arredondou arestas anteriores, a aproximação soldou diferenças dos franceses de todas as tendências. O mais visível símbolo de tal coligação foi a chefia do exército confiada ao marechal Ferdinand Foch [foto à esquerda], católico conhecido, e a chefia do governo nas mãos de Georges Clemenceau [foto abaixo] , anticlerical, livre-pensador, com raízes na esquerda. Já em 2 de agosto de 1914 o ministro do Interior mandou suspender a execução de decretos que atingiam a Igreja Católica. Em outubro de 1915, Aristide Briand colocou no governo Denys Cochin, católico, encerrando longo período de hostilidade da república em relação à Igreja, iniciado em 1877.

Essa mesma política, intitulada na França de “union sacrée”, com base no patriotismo e na defesa da pátria, foi adotada pela Alemanha (Burgfrieden), Bélgica, Rússia, entre outros. Mas não tiveram a repercussão e a carga simbólica da “union sacrée” francesa.

Com o triunfo da revolução bolchevista (novembro de 1917) e o fim da Guerra, os partidos de esquerda, já em parte reticentes em relação a ela, denunciaram-na por inteiro e o quadro político voltou a ser tenso e conflitivo. Os anos 20 assistiriam ao fortalecimento dos partidos de esquerda, que suscitaram violentas reações, capitaneadas em geral pelo nazismo e fascismo, ou organizações assemelhadas. Tais movimentos atraíram e desviaram enormes contingentes católicos. Sem contar aqui a desorganização e morticínios causados pelos quatro anos de guerra.

Em resumo, ponto que ninguém ou quase ninguém ressalta, porém dever do analista católico salientá-lo, enorme tragédia se abateu sobre grandes possibilidades de evangelização e restauração social: não amadureceram de forma saudável em milhões de jovens os frutos de salvação que, antes da Guerra, prenunciavam colheita de decisiva importância para a Europa e o mundo. Para tal contribuíram a ingenuidade, a superficialidade, a precipitação, bem como a má direção, tanto no âmbito eclesiástico, como no temporal.

Por que em traços gerais lembro universo tão vasto? Por necessidade, pela enorme atualidade potencial. “Historia lux veritatis, vita memoriae, magistra vitae.”

Corta. Passo a relatar fato de hoje, distante mais de século dos anos da “union sacrée´´. O caso do COVID-19 explodiu em Wuhan, na China. Um ano depois, “Época” entrevistou um paulistano que lá vive, Kenviti Shindo, 27 anos, estudante de mestrado. A vida em Wuhan é de quase normalidade: “Aqui está praticamente normal, usamos máscara quando entramos em locais fechados, como bares, restaurantes ou shopping centers. Claro que existe uma preocupação de que o vírus volte, mas tudo já funciona como antes”, observa Shindo. Não há registros de casos novos na província de Hubei, da qual Wuhan é a capital. Em outubro, a província atraiu 52 milhões de turistas entre os dias 1 e 7, Semana Dourada, época festiva. Em contraste lúgubre, o Ocidente ainda se debate com o vírus. O Brasil, nem falar. Não dá inveja? Dá. Quem tem inveja procura imitar.

Corta de novo, terceira matéria em texto reduzido. Em 2018 escrevi um livrinho “Brigo pelos homens atrofiados” sob o pseudônimo de Zeca Patafufo. Um dos personagens do conto, Adamastor Ferrão Bravo, sabido e bom observador, fez advertência que agora ficou candente. Vale a pena ouvir Ferrão Bravo:

“— O cenário brilhante fica no Oriente. Na paradeira de atores estafados, a China e outros poucos países asiáticos disparam para tomar a boca do palco.

— Vai impingir seus intentos?

— Para lá somos arrastados. [Observou Ferrão Bravo]. Não demora, o provável, assistiremos a multidões babando de admiração pelo país que se deu bem e aí bamboleando atrás e remedando. Tem aquele tanto de sortilégio, acho. A França, quando primeira no mundo, foi trend-setter. Os Estados Unidos, passante de cem anos, ditam moda. São povos constituintes. Ainda vai escutar um bucado de mães falando: — Aula de inglês? Não é tanta prioridade, quente agora é o menino igual aprender o mandarim.

— Os Estados Unidos vão continuar na testa, está no DNA deles, seu Adamastor. Lá o pelotão da frente não brinca em serviço.

— É conforme, deix’eutifalá, têm energia para manter a mão na rédea. O século 20 foi o século americano-do-norte; o século 21 vai ser também, depende de os gringos quererem.

— A China periga dar certo? — o Cisco, espantado.

— No mundo da lua, vão agigantar tudo pela propaganda. Pode estar iminente avalancha de soft power da China, a mais do duro sharp power que começa a se generalizar e já desperta vivas reações em vários países. Dando certo a ofensiva chinesa, em cortejo, imantada, veremos atrás sarandear malemolente a bocojança, multidões sem fim. Tanta gente modernosa não achou que a Rússia dos anos 30 tinha dado certo? O Stalin, besuntado de admirações abjetas, foi ícone de cardumes de torcedores ignóbeis; décadas de chumbo aleluiadas em histeria, mais que tudo pela intelligentsia progressista; via nos intentos mitomaníacos de engenharia social, executados com frieza apavorante, a construção da utopia socialista dos ‘amanhãs que cantam’; para tal, enfiada sem fim de hojes desesperadores.

— Tem exorcismo contra tais modismos?

— Conheço um, destrinchar e divulgar preto no branco essas alquimias de fundo totalitário. Cadê o esforço intelectual e a valentia?

— Entendi, o enfeitiçamento bafeja situações ditatoriais.”

Flui o conto, Adamastor Ferrão Bravo ali continua com braveza aferroando, mas paro por aqui. Chamei a atenção de tal realidade para quê? Para a possibilidade de manobra de soft power. No combate ao vírus, a China sai na frente, elimina o problema, resolve. Cara da moeda. Na coroa, chapina o resto do mundo; mortes, fechamentos, abatimentos, desorientação. O mundo vai preferir cara ou coroa? “Multidões babando de admiração e remedando”. E então poderia acontecer uma nova e adaptada “union sacrée” em nossos dias, voltada contra a pandemia, no desenrolar da qual a China despertaria admiração, atrairia simpatias e abateria barreiras, isolaria opositores. Lucro evidente para os desígnios totalitários e imperialistas do Partido Comunista Chinês. Olho vivo, moreno, seguro morreu de velho, desconfiado ainda vive.

ABIM

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