segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

A liturgia “no altar da hipocrisia”?

 O Papa João XXIII celebra Missa Solene na Basílica de São Pedro, no início dos anos 60

  • Luiz Sérgio Solimeo

No voo de volta a Roma após sua viagem ao Chipre e à Grécia, em 6 de dezembro passado, respondendo a uma pergunta de jornalistas sobre a renúncia do arcebispo de Paris, Dom Michel Aupetit, o Papa Francisco explicou:

“Eu aceitei a renúncia de Aupetit, não sobre o altar da verdade, mas sobre o altar da hipocrisia. Era isto que eu queria dizer.”1

O Papa parece ter tomado a mesma atitude em relação à liturgia tradicional da Igreja. De fato, apesar dos flagrantes absurdos litúrgicos vistos nas celebrações do novo rito imposto à Igreja em 1969, tanto ele quanto o Arcebispo Arthur Roche — o primeiro com o ‘Motu Proprio’ Traditiones Custodes e o segundo com a Responsa ad dubia — restringiram drasticamente a celebração da Missa tradicional.2

As razões dadas para tais medidas se resumem em “restaurar a unidade litúrgica” e impor a aceitação das doutrinas do Concílio Vaticano II.

Abandono do “Altar da Verdade”

Ao deixar de reconhecer que a divisão entre os fiéis em relação à liturgia se deu precisamente por causa da renúncia ao rito de tradição apostólica e da imposição de um novo rito romano da Missa, sob a égide do Concílio, abandonou-se “o altar da verdade”.

Antes dessa mudança, um católico podia viajar para quase qualquer lugar do mundo e assistir à mesma Missa, na mesma língua universal da Igreja, com as mesmas orações, paramentos e, sobretudo, com recolhimento.

O Papa Paulo VI celebra missa no Ritus Modernus imposto por ele. A “venerável tradição secular” do rito litúrgico da tradição apostólica estava abolida.

‘Ritus Modernus’ substitui ‘Ritus Romanus’

O liturgista alemão Monsenhor Klaus Gamber prefere referir-se ao rito tradicional da Missa como Ritus Romanus, e chama o novo rito do Papa Paulo VI de Ritus Modernus. Ele explica que é impreciso e até incorreto chamar o rito romano tradicional de “Missa de São Pio V” ou “Missa tridentina”. Escreve ele: “No sentido estrito, não há ‘Missa Tridentina’, pois, pelo menos na conclusão do Concílio de Trento, não houve criação de um novo ordinário da Missa; e o ‘Missal de São Pio V’ nada mais é do que o Missal da Cúria Romana, que havia visto a luz em Roma séculos antes.”3

Paulo VI anuncia um “novo rito” da Missa

Em seu discurso de 26 de novembro de 1969, anunciando a entrada em vigor na Itália (e, mais tarde, no mundo inteiro) da “Nova Missa”, o Papa Paulo VI deixou claro que essa “novidade litúrgica” não consistia em modificações litúrgicas superficiais, mas em uma mudança completa no rito da Missa, à qual ele se referiu repetidamente com expressões como o “novo rito da Missa,” ou simplesmente o “novo rito”:

“Mais uma vez queremos convidar suas almas a se voltarem para a novidade litúrgica do novo rito da Missa, que será estabelecido em nossas celebrações do Santo Sacrifício, a partir do próximo domingo, primeiro domingo do Advento, 30 de novembro.” 4

Rompendo com a tradição da Igreja

Paulo VI reconhecia que, ao impor o seu “novo rito”, estava rompendo com a tradição litúrgica da Igreja:

Novo rito da Missa: é uma mudança em uma venerável tradição secular e por isso toca no nosso patrimônio religioso hereditário, que parecia ter de gozar de uma fixidez intangível e dever trazer aos nossos lábios a oração de nossos antepassados ​​e nossos santos e nos dar o conforto de uma fidelidade ao nosso passado espiritual, que tornamos atual para transmiti-lo às gerações futuras. Compreendemos melhor nesta contingência o valor da tradição histórica e da comunhão dos santos.

Gravidade da ruptura

Essas afirmações de Paulo VI são tanto mais graves quanto o Rito Romano (a “Missa Tridentina”) é de tradição apostólica. Agora, romper com a tradição apostólica acarreta problemas teológicos extremamente graves.

Mons. Klaus Gamber escreve: “Os papas observaram repetidamente que o rito [da Missa] é fundado na tradição apostólica. Em nota, ele cita cartas dos papas Santo Inocêncio I (402-417) e Vigílio (538-555), que fazem essa afirmação. E continua comentando as opiniões de grandes teólogos do passado, como o Cardeal Caetano (+1534) e Suárez (+1617), de que um papa seria cismático ‘[…] se ele mudasse todos os ritos litúrgicos da da Igreja que foram confirmados pela tradição apostólica’.” 5

Monges cantando gregoriano (Iluminura medieval) – Girolamo da Milano chamado Maestro Olivetano, séc. XV.

Sacrificando o latim, o canto gregoriano e outros tesouros

Tudo na Missa agora será diferente, acrescenta Paulo VI:

“Esta mudança toca na conduta cerimonial da missa; e notaremos, talvez com algum desconforto, que as coisas no altar não acontecem mais com aquela identidade de palavras e gestos a que estávamos tão acostumados, que quase não prestávamos mais atenção neles.”

Paulo VI tinha bem ciência de que estava sacrificando o latim, essa insubstituível “língua angélica” e outros preciosos valores espirituais da Igreja:

“Aqui, é claro, será sentida a maior novidade: a da língua. O latim não será mais a língua principal da missa, mas a língua falada. Para quem conhece a beleza, o poder, a expressiva sacralidade do latim, certamente a substituição pela língua vulgar é um grande sacrifício: perdemos a linguagem dos séculos cristãos, nos tornamos quase intrusos e profanos no recinto literário da expressão sagrada, e assim perderemos grande parte desse maravilhoso e incomparável fato artístico e espiritual, que é o canto gregoriano.” E prossegue:

“Temos, de fato, motivos para lamentar, quase nos sentirmos perdidos. O que podemos colocar no lugar dessa língua angélica? Estamos abrindo mão de algo de valor inestimável.”

Resposta humana banal e prosaica

O Pontífice faz esta pergunta óbvia:

“E por que razão? Que coisa vale mais do que esses altíssimos valores da nossa Igreja?”

E responde:

“A resposta parece banal e prosaica, mas é válida, porque é humana, porque é apostólica. O entendimento da oração vale mais do que as roupas sedosas e vetustas com as quais ela foi regiamente vestida; a participação do povo vale mais, deste povo moderno saturado de palavras claras e inteligíveis, traduzíveis em sua conversa profana. Se a divina língua latina mantivesse a infância, a juventude, o mundo do trabalho e dos negócios segregados de nós, se ela fosse um diafragma opaco em vez de um cristal transparente, nós, os pescadores de almas, faríamos bem em preservar para ela o domínio exclusivo da oração e da conversação religiosa?”

Valeu a pena?

         Passado meio século, cabe perguntar: valeu a pena?

“grande sacrifício” de abandonar “a divina língua latina” e substituí-la pela “língua usada na conversa profana” aproximou da Igreja as crianças, os jovens, “o mundo do trabalho e dos negócios”?

Não. Aconteceu o contrário: as igrejas esvaziaram-se e poucos católicos agora vão à missa.

As igrejas que se enchem aos domingos e dias santos de guarda são precisamente aquelas onde se celebra a Missa segundo o Vetus Ordo, em latim, e ressoa o canto gregoriano.

Na realidade, foram a banalidade e o prosaismo introduzidos por Paulo VI na celebração da Missa que, em grande parte, afastaram os fiéis.

Conclui-se a obra demolidora iniciada por Paulo VI?

Em seu motu proprio Traditionis Custodes, de 16 de julho de 2021, e sua carta explicativa aos bispos, o Papa Francisco restringiu brutalmente e o máximo possível (com vistas a extinguir) a celebração da Santa Missa no rito tradicional, embora este seja de origem apostólica, como vimos.

Responsa ad dubia da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, assinada pelo Arcebispo Arthur Roche em 4 de dezembro de 2021, endureceu ainda mais as disposições já draconianas do Motu Proprio Traditionis Custodes.

Ao travar sua guerra total contra a liturgia tradicional da Missa, para destruir este monumento da piedade cristã, o Papa Francisco está completando o trabalho de autodemolição da venerável tradição secular” do rito litúrgico da tradição apostólica.

Apelos foram inúteis

Na época, a notícia do abandono da liturgia tradicional latina teve um impacto profundo não apenas nos católicos praticantes, mas também nos não-católicos.

Em 1971, cinquenta intelectuais e artistas, entre católicos, não-católicos e até judeus, enviaram ao Papa Paulo VI e tornaram público um apelo implorando a manutenção da liturgia tradicional, como patrimônio da humanidade.

Entre outras coisas, a Declaração de Acadêmicos, Intelectuais e Artistas Vivendo na Inglaterra dizia:

“Se algum decreto sem sentido ordenasse a destruição total ou parcial de basílicas ou catedrais, então obviamente seriam as pessoas cultas — quaisquer que fossem suas crenças pessoais — que se levantariam horrorizadas para se opor a tal possibilidade.

“Ora, o fato é que as basílicas e as catedrais foram construídas para celebrar um rito que, até poucos meses atrás, constituía uma tradição viva. Estamos nos referindo à Missa Católica Romana. No entanto, de acordo com as últimas informações em Roma, há um plano para fazer desaparecer essa Missa até o final do ano em curso…

“Não estamos neste momento considerando a experiência religiosa ou espiritual de milhões de indivíduos. O rito em questão, em seu magnífico texto latino, também inspirou uma série de realizações inestimáveis ​​nas artes — não apenas obras místicas, mas obras de poetas, filósofos, músicos, arquitetos, pintores e escultores em todos os países e épocas. Assim, pertence à cultura universal, bem como aos clérigos e cristãos formais.”6

Apelo dos cardeais

Ainda mais críticos do que esse apelo de intelectuais e artistas, que entenderam bem o vínculo entre beleza e verdade, são os trabalhos de teólogos, padres e leigos que mostram como a nova Missa se afastou do Concílio de Trento e se aproximou do protestantismo.

Em junho de 1969, os cardeais Alfredo Ottaviani e Antonio Bacci enviaram ao Papa Paulo VI uma carta de apresentação de um estudo intitulado Breve exame crítico do Novus Ordo Missae. Sua carta contém esta afirmação muito séria:

“O Novo Ordinário representa, tanto em seu todo como nos detalhes, uma nova orientação teológica da Missa, diferente daquela que foi formulada na Sessão XXII do Concílio de Trento. Os ‘Canons’ do rito, definitivamente fixados naquele tempo, proporcionavam uma intransponível barreira contra qualquer heresia dirigida contra a integridade do Mistério”.7

Exemplo da falta de sacralidade da missa no “novo rito”: na paróquia da Natividade de Maria, em Aschaffenburg, Alemanha, no passado dia 3 de outubro. O pároco Markus Krauth celebrava oficialmente o Erntedankfest alemão, a festa anual de ação de graças a Deus pela colheita. Mas decidiu comemorá-la como Erdedankfest, substituindo a palavra “colheita” (Ernte) pela palavra “terra” (Erde). O altar foi simbolicamente um monte de terra…

Missa sem sacralidade

O novo rito perdeu aquela sacralidade e mistério que o latim lhe dava, a reverência do sacerdote diante de Deus no altar, rezando em voz baixa, como se aniquilado diante da grandeza de servir como instrumento de Nosso Senhor Jesus Cristo para consagrar e imolar a Vítima divina em forma sacramental, renovando assim o Sacrifício do Calvário.

No “novo rito” de Paulo VI, a Missa tornou-se uma tagarelice contínua, um diálogo constante e banal entre o celebrante e a assembleia, sugerindo que os fiéis concelebram com o sacerdote. Ele põe tanta ênfase na assembleia, que o Pe. Joseph de Sainte-Marie, O.C.D., observou que “ao absolutizar esse aspecto comunitário”, a nova Missa “levou ao antropocentrismo, [com] a assembleia celebrando-se a si mesma”.8

Não é de admirar, então, que tenha havido tantas aberrações e absurdos na celebração da Missa de acordo com o Novus Ordo Missae ao longo desses cinquenta anos.

ABIM

____________

Notas:

  1. Viagem Apostólica do Papa Francisco ao Chipre e à Grécia (2-6 de dezembro de 2021). Coletiva de Imprensa durante o voo de retorno a Roma (6-12-21). https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2021/december/documents/20211206-grecia-volodiritorno.html. Acessado em 27-12-21.
  2. Ver: Lettera Apostolica in forma di Motu «Proprio» del Sommo Pontefice Francesco «Traditionis Custodes» Sull’uso della Liturgia Romana anteriore alla Riforma del 1970. (16-7-21). https://www.vatican.va/content/francesco/it/motu_proprio/documents/20210716-motu-proprio-traditionis-custodes.html; Lettera del Santo Padre Francesco ai Vescovi di tutto il Mondo per presentare il Motu Proprio «Traditionis Custodes» Sull’uso Della Liturgia RomanaAnteriore Alla Riforma Del 1970. Roma, 16-7-21; Congregazione per il Culto Divino e la Disciplina dei Sacramenti. Responsa Ad Dubia su alcune disposizioni della Lettera Apostolica in forma di «Motu Proprio»Traditionis Custodes del Sommo PonteficeFrancesco ai Presidenti delle Conferenze dei Vescovi. https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/ccdds/documents/rc_con_ccdds_doc_20211204_responsa-ad-dubia-tradizionis-custodes_it.html. Acessados em 27-12-21.
  3.  Monsenhor Klaus Gamber, The Reform of the Roman Liturgy: Its problems and Background, (San Juan Capistrano, Califórnia: Una Voce Press; Harrison, N.Y.: The Foundation for Catholic Reform, 1993), p. 23.
  4. Paolo VI. Udienza Generale. Mercoledì, 26 novembre 1969. “Effusione degli animi nella Assemblea Comunitaria, ricchezza del nuovo rito della Santa Messa”. https://www.vatican.va/content/paul-vi/it/audiences/1969/documents/hf_p-vi_aud_19691126.html, acessado em 22-12-21 (Tradução nossa).
  5. Monsenhor Klaus Gamber, op. cit., pp. 34-36 (grifo nosso), e nota 26. Ver também Arnaldo Xavier da Silveira, Theological and Moral Implication of the “Novus Ordo Missae”, (Cleveland, Ohio: Lumem Mariae Publications), p. 258ss.
  6. “1971 Statement by Scholars, Intellectuals, and Artists Living in England,” https://web.archive.org/web/20161020002716/http:/www.institute-christ-king.org/uploads/main/pdf/england– statement.pdf, acessado em 29-12-21.
  7.  Carta dos Cardeais Ottaviani e Bacci à Sua Santidade Papa Paulo VI. Roma, 25 de setembro, 1969. https://pelafecatolica.com/2016/05/25/breve-exame-carta-cardeais-ottaviani-bacci/ (grifo nosso), acessado em 12-01-22. O fato, sobre o qual há muita confusão, de que o Cardeal Ottaviani tenha retirado seu nome dessa iniciativa não altera a veracidade da afirmação. A crítica é comprovada pelo estudo que os Cardeais encaminharam, e também por publicações de inúmeros autores como, por exemplo, a de Arnaldo Xavier da Silveira, citada acima.
  8. P. Joseph de Sainte-Marie, O.C.D., L’Eucharistie Salut du Monde, Ed. Dominique Martin Morin (Paris: Les Éditions du Cèdre, 1982), p. 134. (Tradução nossa).

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