Das quatro forças fundamentais do universo é, curiosamente, a mais fraca aquela que manifestamente mais está presente ao longo das nossas vidas – a força da gravidade (as restantes são a força electromagnética, a nuclear forte e a nuclear fraca). Em virtualmente qualquer actividade humana, a gravidade constrange os nossos movimentos e acções e constitui uma presença inescapável em qualquer contexto terrestre. Mais, manteve-se uma constante muito antes de o primeiro humano caminhar sobre a terra e assim continuará até que o último venha a perecer. Sendo não só pervasiva como altamente regular, um animal que tenha em conta os seus efeitos terá vantagens óbvias pois poderá antecipar as suas consequências e adequar os seus comportamentos a um mundo dinâmico sujeito às leis da física. Com efeito, um crescente volume de investigações tem, nas últimas décadas, acumulado evidências a favor de que nosso cérebro contem mecanismos sofisticados que parecem calcular e prever os efeitos da gravidade terrestre em objectos móveis, designados por “Modelos Internos da Gravidade”. Estes parecem desempenhar um papel de destaque na nossa percepção, actuando de uma forma parecida com uma simulação de computador: dados de entrada provenientes dos nossos sentidos (em particular da visão, mas não só) fornecem parâmetros iniciais acerca da posição e velocidade de um objecto com base nos quais os modelos internos da gravidade computam a sua trajectória futura.
Este processo é tão mais relevante se se tiver em conta que a transmissão de impulsos ao longo das fibras e células neuronais não é instantânea – por exemplo, entre o momento em que a luz reflectida por um qualquer objecto atinge a retina nos nossos olhos até ao momento em que as áreas visuais do córtex respondem a essa estimulação, podem passar cerca de 100 milissegundos (0,1 segundos). Ainda que à primeira vista este seja um intervalo negligenciável, um pequeno exemplo convencê-la-á do contrário: para um guarda-redes que procure interceptar com sucesso uma bola de futebol que se desloque a 20 metros por segundo (o máximo registado aproxima-se dos 35 m/s), um erro temporal de 100 milissegundos significa que quando o cérebro assinala a posição da bola esta encontra-se na realidade 2 metros adiante! E isto sem considerar o tempo necessário para elaborar e executar uma resposta adequada. Que consigamos, dentro de limites razoáveis, interagir com sucesso com o mundo à nossa volta sem erros grosseiros de sincronização é, pois, digno de nota. E, porém, se assim não fosse, dificilmente se concebe que pudéssemos ter evoluído enquanto espécie para sequer, entre outras actividades, jogar futebol.
No laboratório, e de uma forma global, estes modelos são tipicamente estudados requerendo aos participantes que executem uma certa acção, de natureza motora ou perceptiva, perante um objecto em movimento (real ou mostrado num ambiente virtual) cujos parâmetros dinâmicos são cuidadosamente controlados. Num estudo já clássico (McIntyre, Zago, Berthoz, & Lacquaniti, 2001), os participantes, um grupo de astronautas a bordo do vaivém Columbia (missão Neurolab) e, portanto, num ambiente de ausência de gravidade, deveriam interceptar uma pequena bola lançada num movimento “descendente”. Estudos prévios haviam já mostrado que, na superfície terrestre, os músculos do braço tendem a contrair-se cerca de 200 milissegundos antes de a bola atingir a mão, independentemente da altura de que esta é solta. Como um objecto em queda livre acelera em direcção ao centro da terra, um tempo constante para a contracção muscular preparatória implica que essa pode ser efectuada quando a bola se encontra a diferentes distâncias da mão, o que sugere que de alguma forma os humanos conseguem antever com grande precisão temporal o momento de intercepção da bola. No caso de ausência de gravidade, a bola ao invés de acelerar movia-se com uma velocidade constante (no estudo em causa, a bola era disparada “do tecto” do vaivém a uma velocidade adequada). Os resultados mostraram que os músculos dos braços se contraíam significativamente mais cedo em relação à trajectória da bola, como se o cérebro do astronauta antecipasse uma aceleração da bola, congruente com a gravidade terrestre, apesar de essa estar ausente. De certa forma, este resultado sugere que a gravidade está de tal forma embutida no funcionamento cerebral que, mesmo escapando aos seus efeitos físicos, levamo-la connosco sob a forma de um modelo neuronal.
Hoje dispomos já de várias evidências que concorrem para esta ideia base e alguma confiança quanto à localização cortical onde um possível modelo interno da gravidade possa ser instanciado – na chamada juntura parieto-temporal (uma zona associativa, com ligações ao aparelho vestibular e áreas motoras). Vários investigadores estão, hoje em dia, activamente envolvidos em clarificar o funcionamento destes modelos internos, sendo este um tópico de estudo em franco crescimento do qual, esperamos, venham a surgir num futuro próximo novas descobertas.
Nuno Alexandre de Sá Teixeira
(Professor Auxiliar Convidado no Departamento de Educação e Psicologia da Universidade de Aveiro)
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