Para Mounier, a
democracia é antes de mais nada um valor moral, isto é, um tipo de
comportamento regulado por normas éticas e convicções, alimentadas pela
solidariedade e pela realização do bem comum. Por isso, a democracia não se
pratica apenas por uma declaração constitucional, mas sim num contínuo
vir-a-ser, isto é, num processo permanente de refundação.
“Chamamos democracia, com todos os
qualificativos e superlativos necessários para não confundi-la com suas
minúsculas falsificações, o regime que repousa sobre a responsabilidade e sobre
a organização funcional de todas as pessoas que constituem a comunidade social.
Nesse caso, sim, sem hesitações, nós estamos do lado da democracia.
Acrescentemos que, desviada desde a sua origem
pelos seus ideólogos, em seguida sufocado no berço pelo mundo do dinheiro, tal
democracia nunca se realizou nos fatos, e que ela apenas existe nos espíritos”
(1961, t.1: 294).
Por isso, a democracia real
continua um sonho e uma aspiração e então pode também ser definida como “um
devenir a ser realizado e não uma aquisição a ser defendida”(1961,t.l: 295).
Dessa forma, para dar uma definição mais
adequada de democracia é preciso levantar múltiplas constatações da sua prática
política. Sem nenhuma preocupação com uma definição formal, verifica-se de
imediato que o princípio da “soberania popular”,
fundamento de todo regime democrático, não passa de um “mito” Essa
“soberania popular” ou a “vontade geral”, bem como a “lei do número”, na
prática carecem de toda significação. Aliás, para Mounier, os famosos
princípios da democracia representativa não são princípios absolutos ou slogans
a serem repetidos sem o devido correspondente no dia-a-dia dos cidadãos.
“Os princípios políticos
da democracia moderna: soberania do povo, igualdade, liberdade individual não
são para nós absolutos. Eles são julgados através da nossa concepção do homem,
da pessoa e da comunidade que os vive” (Ibid.).
Ora, no campo da doutrina da democracia
liberal privilegia-se a defesa absoluta da liberdade individual. Mas esta é uma
liberdade situada e encarnada num ser humano determinado e vivida numa
comunidade histórica. Mounier então nos alerta a respeito das ilusões e da
falsidade de um discurso político abstracto e individualista em defesa da
liberdade individual.
“Por isso é que antes de
proclamar a liberdade nas Constituições ou de exaltá-la nos discursos
precisamos assegurar as condições comuns da liberdade, condições biológicas,
económicas, sociais, políticas que permitem participar dos mais altos apelos da
humanidade. Devemos preocupar-nos das liberdades tanto quanto da liberdade” (1962:481).
Ora, a liberdade hoje é entendida e
exercida de modo geral como um valor absoluto do indivíduo, impregnado pelo que
Mounier chamou de “esprit bourgeois ou de petit-bougeois”. É a filosofia do
individualismo, cuja definição foi muito bem resumida nestes termos: “Ele não é
somente uma moral. Ele é a metafísica da solidão integral, a única que nos
resta quando perdemos a verdade, o mundo e a comunidade dos homens”
(1961,t.l:158-9). Solidão em face da verdade,
porquanto o individualista não pensa mais dentro do horizonte da comunidade
humana. Solidão em face do mundo: é o eu fechado em si mesmo na aventura
imanente da própria razão. Solidão em face dos homens, embora viva na
sociedade, numa “multidão solitária”. A
respeito da crítica de Mounier ao individualismo, Juan M. Parent Jacquemin nos
apresenta uma ampla explanação em sua obra consagrada a esse tema.
Tocqueville por sua vez chega a afirmar
que o individualismo é de origem democrática e que deve ser distinguido do
egoísmo. “O individualismo é expressão recente, originária de uma nova ideia.
Nossos pais só conheciam o egoísmo. Este é um amor exagerado e apaixonado de si
mesmo, que leva o homem a fazer tudo depender de si mesmo e preferir-se a tudo
o mais. O individualismo é um sentimento reflectido e
pacífico, que predispõe cada cidadão a isolar-se da massa dos seus semelhantes
e a retirar-se à parte, com a família e os amigos, de tal modo que, após criar
dessa maneira uma sociedade para uso próprio, abandona prazerosamente a
sociedade a si mesma. O egoísmo nasce do
instinto cego; o individualismo procede de um juízo erróneo, mais do que de um
sentimento depravado. Sua fonte são os defeitos do espírito, tanto como os
vícios do coração. (...) O egoísmo é um vício tão velho como o mundo. Não
pertence mais a um tipo de sociedade do que a qualquer outro. O individualismo
é de origem democrática, e ameaça desenvolver-se na medida em que as condições
se igualam” (1979:285).
Em forma de conclusão, faz-se mister
enfatizar que Mounier nos deixa um exemplo de coerência de um intelectual e de
um cristão comprometido em favor dos pobres e de um homem de acção.
No plano do pensamento, ele sempre se recusou
a estabelecer uma dicotomia entre a reflexão e o engajamento, palavra esta um
tanto fora de moda na actualidade. Ademais, face ao acontecimento e face à
história, o pensador e o militante, impregnados de uma tal filosofia, assumem
uma atitude, não de frios expectadores, mas como actores e participantes no
advento de um mundo mais humano e mais solidário. Em apoio a essa assertiva,
tomo a liberdade de citar mais uma vez um apelo de Mounier, redigido “in
umbris”, expressão muito significativa, porquanto ele se encontrava na prisão e
na clandestinidade durante a Resistência em Lyon em 1942. É um verdadeiro
programa de vida para todo ser humano, mas principalmente para todo pensador e
para quem se consagra à pesquisa em qualquer campo do saber.
“Nós fizemos uma escolha. Em
nossa investigação, nós não queremos somente tratar do homem, mas combater pelo
homem. Aliás, ninguém trata objectivamente do homem. Mas como é costume
disfarçar o preconceito sob uma roupagem científica, nós preferimos declarar de
cabeça erguida que nossa ciência, para ser uma ciência honesta, é antes de mais
nada uma ciência combatente”(1961, t.ll:7).
É uma opção de enorme responsabilidade
pessoal e social. Por aí, vemos então que a filosofia de Mounier é uma
filosofia situada e aberta, sendo o seu ponto de partida não são tanto os
problemas filosóficos abstractos, senão a realidade social e histórica. “O
acontecimento será o nosso mestre interior”, lema de todo um projecto de
pensamento e de acção. É que todo sujeito pensante é, antes de mais nada, um
sujeito existente, encarnado num povo e num determinado momento histórico. Ora,
tal atitude não exclui, de forma alguma, o carácter de universalidade que deve
marcar a reflexão filosófica. Ademais, a filosofia de Mounier é uma filosofia
aberta, porquanto ele sempre se recusou a ser o mestre de uma escola filosófica
ou o fundador de um sistema de pensamento.
Um outro ponto muito importante,
sobretudo para nós latino-americanos e para todos os oprimidos da Terra,
consiste em ser o personalismo uma filosofia orientada para a libertação e para
a realização da pessoa, ou melhor, de todas as pessoas no âmbito da comunidade.
Ora, o despertar da consciência de pertença à comunidade se impõe, hoje mais do
que nunca, como uma necessidade e como uma urgência inadiáveis em vista da própria
sobrevivência de todo ser humano e dos recursos do planeta. Se nos detivermos
apenas no exame do significado de comunidade, verificar-se-á imediatamente que
vivemos todos numa interdependência de pessoas com e por meio da natureza. A
respeito dessa intrínseca unidade da humanidade, Mounier não cessou, directa ou
indirectamente, de expressar o seu apelo pela palavra, pelos seus escritos e
sobretudo pelo seu testemunho de vida.
“Por isso o personalismo coloca entre
suas ideias-chave a afirmação da unidade da humanidade no espaço e no tempo,
pressentida por algumas escolas no final da Antiguidade, afirmada na tradição
judaico-cristã. Não há para o cristão nem cidadão nem bárbaros, nem mestres nem
escravos, nem judeus nem gentios, nem brancos nem negros, nem amarelos, mas
homens todos criados à imagem de Deus e todos chamados por Cristo à salvação A
ideia de um género humano tendo uma história e um destino colectivo cuja
destinação individual não pode ser separada, é uma ideia mestra dos Santos
Padres” (1962:460).
É, portanto, muito importante relembrar
que essa unidade da humanidade se baseia num pressuposto filosófico e bíblico
de uma origem comum, duma caminhada comum e duma destinação comum em
interdependência com a Terra e o universo. Por isso,
creio que somente poderemos sonhar numa democracia planetária, bem diferente do
actual discurso de globalização, quando a democracia for entendida e praticada
antes de mais nada como um valor moral e não simplesmente como um procedimento
político-eleitoral.
Bibliografia
consultada
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DANESE, Attilio.Riscoprire la politica – Storia e prospetive. Roma: Città
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DI NICOLA, Giulia. Per un’ecologia della società. Roma: Ed.Dehoniane, 1994.
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FANON, Frantz. Os condenados da terra. Prefácio de Jean-Paul Sartre. Trad. de
José Laurênio de Melo. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1968.
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siempre. México:UNAM, 1997.
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GOYARD-FABRE, Simone. O que é democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
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MOUNIER, Emmanuel.Oeuvres, t. l. Paris: Le Seuil, 1961.
-Oeuvres,
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Oeuvres, t. lll. Paris : Le Seuil, 1962.
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PERROUX, François. “La
représentation comme fiction et
comme nécessité ». Esprit,
mars 1939, p.789-809.
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TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. 3.ed. São Paulo: Abril
Cultural, 1985.(Os Pensadores).
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