quarta-feira, 9 de março de 2016

Macroscópio – Seis eleições, cinco vitórias, quatro com mais de metade dos votos. E um adeus.

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!

Hoje foi o último dia de Cavaco Silva como Presidente da República. Amanhã tomará posse Marcelo Rebelo de Sousa, o quinto Presidente eleito da nossa democracia. Ontem tinha-vos referido que hoje procuraria dedicar o Macroscópio aos balanços não apenas de 10 anos de Cavaco em Belém, mas de uma longa carreira política que lembraremos como os tempos do “cavaquismo”. Vou cumprir a minha promessa, mas com um aviso: houve poucos trabalhos jornalísticos de balanço; e, ao contrário do que se poderia esperar, a maioria dos textos de opinião faz um balanço bem mais positivo do que negativo da longa carreira política deste “não político”. A impopularidade actual talvez não seja tudo.

Deixo-vos, em primeiro lugar, as principais referências dos trabalhos jornalísticos. Eis o meu apanhado, numa lista breve, quase totalmente dominada por trabalhos do Observador, mas com uma intromissão do Público:
Para não ficar por aqui no que respeita a trabalhos num registo mais jornalístico, acrescento a esta lista uma peça de Manuela Goucha Soares no Expresso que, mesmo sendo um pouco lateral (ou até bastante lateral…) é uma leitura interessante: Em 1911, o 1º Presidente ganhava 15 vezes mais do que um deputado. E agora como é? (paywall) De que fala? De quanto ganharam e ganham os Presidentes, começando assim: “Em 1981 o Presidente Ramalho Eanes vetou uma lei que lhe duplicava o salário. Até 1984 Eanes recebeu pela tabela do Estado Novo, chegando a vender um apartamento para custear despesas familiares.”

Mas vamos em frente, e passemos a uma lista de sugestões de textos mais opinativos, de diferente teor. De entre todos destaco o mais ambicioso na sua formulação, um ensaio que Pedro Lomba escreveu para o Observador: Uma década de Cavaco na Presidência. O que ele ambicionava e o que conseguiu. Duas passagens mais significativas:
  • Por Cavaco Silva na Presidência da República passou o ciclone da maior crise económica que tivemos em 40 anos, a quase falência do País, um Primeiro-Ministro que está hoje a braços com escândalos judiciais, um empréstimo financeiro, um programa de austeridade, a perda de soberania e um governo atípico formado com a sua oposição. Que vivas em tempos interessantes, amaldiçoam os chineses. Cavaco Silva viveu-os. Acabou por ser Presidente da República num tempo que certamente ninguém escolheria.”
  • O facto de discutirmos o seu legado como não discutimos o de nenhum anterior Presidente será, porventura, o sinal mais eloquente da parcialidade da nossa cultura pública. E Cavaco Silva, diga-se, sentiu profundamente essa parcialidade. Foi ele o primeiro Presidente da República a ser eleito fora do espaço político das esquerdas. Acabou por sofrer uma barragem constante.”

Passemos agora às colunas de opinião, onde, como vos disse, encontrei menos variedade e menos críticas do que esperava. Mas julgo que não fui o único, como se pode ver pelo título e conteúdo do texto que escolhi para abrir esta selecção:
  • Um texto minoritário, de Ricardo Costa no Expresso Diário, uma crónica onde o autor dá a entender que esperava estar a escrever contra a corrente. Porque “Falar de Cavaco Silva nos dias de hoje sem ser para dar pancada é assumir uma posição absolutamente minoritária. O que não deixa de ser curioso quando o sujeito da análise é o único político que tem no bolso quatro maiorias absolutas, ainda por cima com mais de 50% dos votos.”
  • Em Cavaco, Luciano Amaral também se refere, no Correio da Manhã, a essa contradição – “Em seis eleições perdeu só uma e venceu cinco, quatro com votações acima de 50%. Espanta a discrepância entre este sucesso e o ódio que lhe é votado na maioria do comentário político, à esquerda e à direita” – mas acaba por preferir sublinhar o que lhe pareceu mais importante no seu mandato: “Uma situação como [a vivida nos dois mandatos] ter-lhe-ia dado muitas oportunidades para interferir no sistema político. O seu grande legado é, precisamente, não o ter feito. Cavaco entendeu a Presidência, sobretudo, como uma instância de regulação.”
  • O Mistério de Cavaco Silva, de João Carlos Espada, reflecte igualmente sobre o sucesso eleitoral e a chamada "má imprensa", considerando que isso tem uma explicação: “Pode muito bem acontecer que a imagem solitária de Cavaco Silva esteja distorcida. Ele sempre foi solitário entre as chamadas “chattering classes”. Mas estava acompanhado da maioria das pessoas comuns, que lhe deram quatro maiorias absolutas. Talvez o sucesso popular de Cavaco Silva tenha precisamente resultado da sua coragem de enfrentar o pensamento politicamente correcto, dominante na nossa atmosfera cultural”.
  • Talvez um verdadeiro balanço necessite da distância da História. Ou seja, “É diferente falar ao fim de 15 dias ou ao fim de 15 anos”, uma frase de Manuela Ferreira Leite que abre o editorial do Público, A marca de Cavaco. Que conclui: “A História faz-se em contexto. É preciso tempo e distância e, além disso, são precisos antecessores e sucessores para comparar. Não basta olhar para trás. Sendo Marcelo um sucessor que vem do mesmo partido de Cavaco Silva, vai ser ainda mais importante analisar a “actualização” que vai fazer. Será Marcelo o Presidente do compromisso que Cavaco não conseguiu ser? Será próximo das pessoas? Reforçará o papel do Presidente? (…) A marca de Marcelo vai desenhar a pegada de Cavaco.”
  • O tempo de Cavaco, de André Veríssimo no Jornal de Negócios, segue em parte pelo mesmo caminho – “O tempo encarregar-se-á de encontrar o peso que merece na História do Portugal contemporâneo.” –, mas depois arrisca um vaticínio: “A pose austera, o rosto fechado, o distanciamento institucional, o conservadorismo, já não ligam com o que Portugal é ou quer ser. Cavaco Silva foi decisivo na construção do Portugal de hoje. Mas perdeu-se como inspiração do Portugal do futuro.”
  • Aníbal Cavaco Silva foi o título que João Gonçalves deu, simplesmente, ao seu artigo no Jornal de Notícias, um texto onde deu uma resposta bem diferente ao balanço que ficará para a História: “Não "rompeu" nem "consensualizou" tanto quanto porventura teria preferido o que não dependeu exclusivamente dele. Tal significa que não lhe devem ser debitadas as falhas dos sucessivos governos, desde aquele que encontrou em 2006 até ao derradeiro empossado em Dezembro último. Indisputavelmente rigoroso, Aníbal Cavaco Silva fica para a história política como o estadista persistente, sério, exigente e ponderado do retrato oficial. Não é pouco.”
  • Talvez uma parte do paradoxo seja desvendado em Cavaco, o Presidente que matou o cavaquismo, um texto de Helena Matos de novo no Observador, no qual defende existir um “equívoco dramático em que assenta a Presidência da República: os portugueses elegem os seus presidentes para que eles subvertam o regime ou para que o defendam e mantenham? Cavaco Silva optou por mantê-lo mas a impopularidade é o preço que pagou por isso. Seria aliás interessante perceber se Cavaco faria as mesmas escolhas caso pudesse voltar atrás. Mas essa é uma questão meramente teórica. Felizmente para nós Cavaco não pode voltar atrás e escolher ser popular.”
  • Cavaco, 36 anos depois, de Henrique Monteiro no Expresso, é, deste conjunto de textos, o que mais exaustivamente percorre as diferentes fases da longa história do político que começou ministro das Finanças e amanhã se despede de Belém. Um retrato relativamente frio, realizado depois de um aviso: “A política portuguesa sempre me deixou de pé atrás com a rapidez com que fabrica santos e demónios. Ninguém é tão mau como alguns dizem nem tão bom como outros pretendem. Cavaco Silva está nesse naipe de pessoas que evoluiu com o país, que em parte o soube compreender, ao contrário das elites que jamais lhe perdoaram.”
  • Termino com O que o presidente fez, de Rui Ramos no Observador. O historiador imagina como teria sido um Presidente diferente, desafiando-nos a questionar o que poderiam ter sido as alternativas: “Imaginem que Cavaco Silva tinha demitido Sócrates em 2009, dissolvido a Assembleia da República em 2013, ou recusado a indigitação a António Costa em 2015. Em cada um desses casos, não teríamos tido apenas uma mudança de governo, mas o perigo de um curto-circuito do regime, quer pela reacção dos oligarcas, quer pelas circunstâncias do país. Ao contrário do que é costume dizer, a visão que Cavaco Silva tem da política não é tecnocrática, mas trágica. O seu apreço pelo consenso e pelo compromisso não vem da ideia de que todos podem pensar o mesmo, mas de que é necessário evitar choques que as instituições e as finanças do país não seriam capazes de absorver. A história ficou sem algumas páginas dramáticas, mas as nossas vidas com alguns dias apesar de tudo mais tranquilos.”

Escrevo nas últimas horas de 8 de Março de 2016, amanhã por esta hora já teremos outro Presidente, que muitos imaginam bem diferente. Será? Talvez um dia o Macroscópio possa também fazer um balanço como este, mas até lá muita água correrá debaixo das pontes.

Tenham bom descanso e escutem com atenção o discurso inaugural de Marcelo Rebelo de Sousa. Eu também o farei.

 
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