De uma forma genérica, o veredicto dos comentadores foi praticamente unânime: Hillary Clinton venceu o primeiro debate presidencial nos Estados Unidos. Donald Trump começou mais forte, mas depois deu sinais de estar mal preparado, foi contraditório, acabou apanhado em várias mentiras e teve especial dificuldade em justificar algumas das suas posições. Ouviu-se como que um suspiro de alívio um pouco por todo o lado. Mas será que há razões para estar mais descansado? Será que foi desta vez que Trump se auto-destruiu mesmo, o que já deveria ter acontecido inúmeras vezes? Vou recomendar, neste Macroscópio, alguma cautela, mesmo tendo lido os editoriais dos principais jornais dos Estados Unidos, que de resto o Observador citava ontem no rescaldo do debate, e que acusavam Trump de ter mentido.
O meu ponto de partida é um texto de Nate Silver, o editor do site FiveThirtyEigth, um blogue que tonarei muitas vezes como referência daqui até às eleições. E o que escreveu ele? Clinton Won The Debate, Which Means She’s Likely To Gain In The Polls. O argumento deste texto é que, tendo em consideração a margem da vitória de acordo com as sondagens, a antiga senadora por Nova Iorque deveria subir até quatro pontos nas sondagens, sendo que a vantagem num primeiro debate não significa obrigatoriamente vantagem no dia das eleições, como aconteceu, por exemplo, em 2012, quando Obama perdeu largamente o primeiro debate e depois ganhou tranquilamente a reeleição. Depois aconselha calma até que percebamos o significado das próximas sondagens – “As a warning, you should give the debate five to seven days to be fully reflected in FiveThirtyEight’s forecasts. It will take a couple of days before reliable, post-debate polls are released, and then another couple of days before the model recognizes them to be part of a trend instead of potential outliers.”
Tenhamos pois alguma paciência, mesmo não sendo necessário seguir as previsões sombrias de Michael Moore, o realizador conotado com a ala mais à esquerda dos democratas e que insiste que a vitória de Trump é uma espécie de inelutável fatalidade. Isso mesmo repetiu no seu Twitter logo a seguir ao debate. Assim: “It's over. Trump, the egoist, the racist, the narcissist, the liar, "won." We all lost. His numbers will go up. She told the truth. So what.”. Ou assim: “Pro-Hillary gloaters doing end-zone dance again when still on 50-yd line. U MUST get it in your head TRUMP IS GONNA WIN and act accordingly!”
É certo que Moore anda há defender há uns meses – nomeadamente em longos artigos no Huffington Post – que Trump irá ganhar esta eleição. Assim como é certo que, vendo o debate deste lado do Atlántico, é difícil entender como pode ele ter tido vantagem naquele confronto. No entanto isso pode – apenas pode, sublinho – ter acontecido, e por isso vos recomendo a instrutiva leitura do texto de Luís-Aguiar Conraria no Observador,Round one. Recordando os debates a que assistiu quando viveu nos Estados Unidos, os das eleições de 2004, ele explica como começou a perceber a forma de pensar de uma parte das bases republicanas seguindo uma das mais controversas colunistas do país, Ann Coulter. Recorda alguns vídeos, mostra-nos neles essa mesma Ann Coulter a suscitar uma risada geral quando diz que Trump será o candidato republicano numa altura em que isso parecia tão improvável como eu estar a escrever este Macroscópio em Marte (não estou), e conclui: “Diz-se que Hillary deverá ganhar vantagem nas sondagens. Sou mais pessimista. A minha aposta é que o debate não terá qualquer impacto relevante. Excepto, claro, no ego de Hillary e dos seus apoiantes.”
Um outro ponto de vista cauteloso é o de John Muller no El Español: Le será útil su victoria a Hillary? A sua prudência advém de destacar alguns pormenores do debate que, não dizendo nada aos comentadores, podem ser muito significativos para os apoiantes de Trump. Por exemplo: “La frase más memorable de este primer debate quizá sea la que se refiere a esto último: "Mi temperamento es mi mayor ventaja y me distingue de ella [Hillary]. Tengo temperamento de ganador", proclamó Trump Hillary sonrió con condescendencia y se calló, como perdonándole la vida después de haber recordado que se ha declarado seis veces en quiebra y esperando a que un estallido machista del republicano consagrara su victoria por goleada. Pero esa sonrisa de Clinton es precisamente lo que los seguidores de Trump más odian. Para ellos, esa sonrisa es el símbolo del cinismo de la clase política norteamericana y contra ella Trump ha levantado un ejército.”
É certo que isto é possível porque Hillary Clinton não entusiasma quase ninguém como candidate – Rui Ramos também fazia ontem, no Observador, uma interessante reflexão precisamente sobre o seu destino e s suas debilidades em Trump e Clinton: não podem perder os dois? –, mas mesmo assim não devemos iludir-nos ou, penso eu, levar-nos alinhar na alucinação (esperamos todos) de Michael Moore. Por isso, das centenas de textos de análise ao debate de segunda-feira à noite, destaco a análise de um académico da Brookings Institution e antigo conselheiro do Presidente Clinton, William Galston. No Wall Street Journal de hoje ele escreve que assistimos ao que descreve como A Clear Debate Victory for Clinton. Isto porque “Trump needed a Reagan moment. What he delivered was more Chico Marx”. Mesmo assim, e depois de citar vários estudos pós-debate que mostravam como Hillary tinha tido muito mais sucesso entre os eleitores indecisos de alguns dos estados onde a eleição se vai decidir, Galston deixava uma previsão: “Mrs. Clinton’s apparent victory in the first debate will not necessarily end Mr. Trump’s presidential chances. But once public opinion crystallizes during the next week, we will have a much better fix on how the race is likely to turn out. In the past four presidential elections, the division of the popular vote has never deviated by more than 1.4 percentage points from the polls following the first debate. If Mrs. Clinton’s margin increases by even two points, Mr. Trump will have a hard time catching up.”
Antes do debate, e só para recorder o ponto de partida, de acordo com o já citado FiveThirtyEight, era de 46,4% para Hillary e 44,8% para Trump, usando um modelo que combina as intenções de voto revelados dezenas de sondagens nacionais. No que respeita a votos eleitorais a vantagem também era de Hillary, mas estreita, como se percebe da “cobra” que ilustra nesse site o ponto da situação estado a estado:
Antes de acabar e passar a uma rápida referência à morte, esta madrugada, do último dos pais fundadores do Estado de Israel que ainda estava vivo, Shimon Peres, deixem-me fechar este bloco com uma referência a um texto que me pareceu colocar o dedo na ferida, isto é, dizer o que pode estar realmente em causa se Trump ganhar esta eleição. Refiro-me à opinião de Martin Wolf no Financial Times, How the west might soon be lost. Para o colunista do FT podemos estar a viver um daquele momentos em que o mundo muda de repente: “Sometimes history jumps. Think of the first world war, the Bolshevik revolution, the Great Depression, the election of Adolf Hitler, the second world war, the beginning of the cold war, the collapse of the European empires, Deng Xiaoping’s “reform and opening up” of China, the demise of the Soviet Union, and the financial crisis of 2007-09 and subsequent “great recession”. We may be on the brink of an event as transformative as many of these: the election of Donald Trump as US president. This would mark the end of a US-led west as the central force in global affairs. The result would not be a new order. It would be perilous disorder.”
O adeus a Shimon Peres
A notícia chegou de madrugada: Shimon Peres, um dos pais fundadores de Israel e Prémio Nobel da Paz, morreu em Telavive depois de ter sofrido um AVC há duas semanas. A sua vida política estendeu-se por mais de sete décadas e confunde-se com a do Estado judaico, pelo não faltaram homenagens e multiplicaram-se os obituários. De todos vou referir dois, por motivos diferentes:
- Shimon Peres, 1923-2016: From nuclear pioneer to champion of peace, o longo obituário do diário israelita Haaretz que vale sobretudo por ser bastante exaustivo, descrevendo com algum pormenor e de forma cronológica, a vida do estadista;
- Shimon Peres of Israel Dies at 93; Built Up Defense and Sought Peace, um obituário também bastante completo, escrito pelo New York Times, e que tem uma virtude rara nos obituários que costumamos ler em Portugal: não omite os defeitos do homem que retrata, mesmo sendo ele visto como um herói. Aqui o que se recorda não é apenas que as suas políticas nem sempre foram consensuais, mas que os seus métodos também não. Por exemplo, quando lutava pelo poder no seio do partido trabalhista: “When Israel’s top leaders were discredited because of the country’s lack of preparedness for the 1973 Yom Kippur War, Mr. Peres made a bid for power. To block him, Finance Minister Pinchas Sapir recruited Mr. Rabin, who had been ambassador to the United States and bore no responsibility for the wartime failures. Mr. Rabin named Mr. Peres defense minister, a decision he later came to regret. In his memoirs, Mr. Rabin called him unscrupulous and untrustworthy. He wrote that he could not believe a word Mr. Peres said.”
Acabo com esta passagem mais controversa, daquelas que habitualmente evitamos no dia em que nos despedimos de alguém, mas não o faço para diminuir Peres, cujos muitos sucessos são de resto muito bem retratados nestes dois textos – faço-o apenas para sublinhar o lado sempre heterodoxo do Macroscópio, que procura mostrar os vários lados dos temas que aborda.
De resto, despeço-me com votos de bom descanso e melhores leituras.
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