João Pedro Pereira
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Linkar ou não linkar não deveria ser uma uma questão.
A hiperligação, mais frequentemente conhecida por link, é a base da Web. Mas uma controversa directiva europeia poderá dar ferramentas aos detentores de direitos para cobrarem pela partilha dos seus conteúdos, segundo um grupo de deputados europeus. Esses mecanismos, dizem, poderão afectar sites como o Facebook, mesmo quando se trata, por exemplo, apenas de um link para um artigo. Os 12 eurodeputados – de vários países (nenhum de Portugal) e de vários quadrantes políticos – juntaram-se num vídeo contra a medida (a campanha contra a directiva, como lembra a Isabel Coutinho, já dura há meses).
Criar mecanismos que possam acabar por restringir links é recuar numa das maiores invenções no que diz respeito à distribuição e gestão de informação, e que foi o resultado de um processo cumulativo de ideias que, mesmo numa perspectiva mais próxima, remontam à primeira metade do século XX. Passemos brevemente pela história do hipertexto aplicado às tecnologias.
O conceito de hipertexto (de forma simples, textos ligados uns aos outros) é anterior à própria Internet, cuja tecnologia de base foi inventada em 1969 e sobre a qual, 20 anos mais tarde, viria a ser construída a World Wide Web (ou seja, o conjunto de páginas ligadas entre si a que se acede através de um browser). Obras literárias e enciclopédias, por exemplo, já continham há muito (e contêm hoje) referências cruzadas.
Foi em 1945 que um cientista americano chamado Vannevar Bush publicou um muito extenso ensaio na revista The Atlantic em que propunha, com enorme detalhe, uma máquina auxiliar de pensamento, que é frequentemente descrita como inspiradora do hipertexto. A informação estava contida em microfilme e, para além de um índice convencional, seria possível ao utilizador saltar de um ficheiro para o outro, bem como avançar e recuar páginas, de uma forma que se aproximasse da associação de pensamentos típica da mente humana. Escreveu Bush:
“Considere um dispositivo futuro para título individual, que é uma espécie de ficheiro e biblioteca privados e mecanizados. Precisa de um nome e, para lançar um à sorte, ‘memex’ servirá. Um memex é um dispositivo em que um indivíduo guarda todos os seus livros, registos e comunicações, e que é mecanizado de forma a poder ser consultado com grande velocidade e flexibilidade. É um complemento íntimo e alargado da memória.”
Já na década de 1960, um outro americano, Ted Nelson, cunhou o termo hipertexto e fundou o Projecto Xanadu, um sistema que permitiria ao utilizador modificar um documento, navegar por essas modificações e integrar documentos (e, portanto, ideias) uns nos outros (a revista Wired chamou-lhe mais tarde “o sonho computacional mais radical” daquela era e uma “tragédia épica”). Pouco depois, em 1968, naquela que ficou conhecida como “a mãe de todas as demonstrações”, Douglas Engelbert, o inventor do rato de computador, mostrou um sistema de hipertexto em que era possível navegar recorrendo a um cursor no ecrã:
Só em 1989, com a Internet a proliferar no meio académico, Sir Tim Berners-Lee, um cientista britânico no CERN, começou a trabalhar na World Wide Web. O “momento eureka” de Berners-Lee foi aliar o conceito de hipertexto à rede de computadores interligados e capazes de comunicar entre si.
Voltemos a 2017. A proposta de directiva estipula que devem haver mecanismos para os titulares de direitos serem compensados quando os seus trabalhos são partilhados em plataformas que geram valor, como será o caso das redes sociais e agregadores. Lê-se no documento:
“(...) é necessário garantir que os autores e titulares de direitos recebem uma parte equitativa do valor gerado pela utilização das suas obras e outro material protegido. Perante este cenário, a presente proposta prevê a adoção de medidas com vista a melhorar a posição dos titulares de direitos para negociar e ser remunerados pela exploração do seu conteúdo por serviços em linha que permitem o acesso a conteúdos carregados pelos utilizadores. Uma repartição equitativa do valor é também necessária para assegurar a sustentabilidade do setor das publicações de imprensa. Os editores de imprensa estão a ter dificuldades em conceder licenças sobre as suas publicações em linha e em obter uma parte equitativa do valor que produzem. Tal poderia, em última instância, afetar o acesso dos cidadãos à informação.”
A luta dos meios de comunicação, que se debatem com um sério problema de modelo de negócio, para conseguirem por via legal um quinhão da economia digital é antiga e só tem tido maus resultados. O caso mais extremo aconteceu em Espanha, quando o agregador Google News fechou e os sites dos órgãos de comunicação deixaram de aparecer nas pesquisas, na sequência de uma lei que obrigava o Google a pagar para linkar para os sites noticiosos. O tráfego para alguns sites afundou e o processo foi essencialmente um desastre. (Declaração de interesses: o PÚBLICO está entre os órgãos financiados por um fundo do Google para projectos inovadores de jornalismo; a opinião do autor desta newsletter sobre o assunto foi escrita, várias vezes, anos antes de o Google criar o fundo.)
Entrar nos detalhes dos media vs. Google seria tema para todo um outro artigo. Por ora, seria bom que, ao longo das múltiplas discussões, interpretações e modificações que tipicamente acompanham o processo legislativo europeu, se tivesse em mente que, há algumas décadas, a Web como a temos hoje, com a sua miríade de hiperligações e a liberdade para ligar quaisquer duas páginas, seria vista como uma incrível extensão da memória e do pensamento humanos. O facto de a visão de precursores como Bush e Engelbert se ter materializado numa tecnologia tão corrente acaba por toldar esta perspectiva.
Digno de nota
- A Aptoide, uma loja portuguesa de aplicações para Android, está a crescer. O Brasil tornou-se em 2016 o principal mercado da empresa, seguindo-se o México e os EUA. A Aptoide ganha dinheiro quando as aplicações destacadas na loja são instaladas por um utilizador. Facturou mais de quatro milhões de dólares, segundo disse o co-fundador Paulo Trezentos numa conversa com o PÚBLICO.
- O piloto automático da Tesla não foi o responsável pelo acidente fatal que aconteceu nos EUA no ano passado – foi a conclusão da autoridade responsável pela segurança rodoviária naquele país. O piloto automático, concluiu a investigação, não tinha defeitos e deveria ter sido usado apenas como um assistente de condução, cabendo ao condutor a responsabilidade sobre o controlo do veículo. Este é o tipo de casos que ilustra os vários desafios regulatórios e legais colocados pelo aparecimento de carros autónomos. Nos EUA, onde os carros podem conduzir sozinhos em alguns estados, as autoridades já tinham dito que o computador a bordo de um automóvel poderia ser considerado o condutor do veículo.
- Não são conhecidos detalhes, mas Donald Trump foi (como habitual nestas circunstâncias) obrigado a trocar o seu telemóvel Android por um modelo considerado seguro pelos serviços secretos. Este artigo do New York Times dá conta de que Trump recebeu um novo número de telefone, que só deverá circular por um grupo restrito (ao que parece, mesmo depois de eleito, Trump devolvia chamadas de números que nem sequer conhecia). A vida do Presidente dos EUA não é muito digital. Barack Obama, que usava um BlackBerry, queixou-se disso algumas vezes. Porém, as restrições não parecem ter impedido Trump de continuar a usar o Twitter à vontade.
4.0 é uma newsletter semanal dedicada a tecnologia, inovação e empreendedorismo. Críticas e sugestões podem ser enviadas para jppereira@publico.pt. Espero que continue a acompanhar.
Fonte: Suplemento do público
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