quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Macroscópio – Um número cheio de significado: 28 anos, 2 meses e 27 dias

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
28 anos, 2 meses e 27 dias. Tantos quanto durou o Muro de Berlim, que cercava Berlim Ocidental mas sobretudo uma prisão para quem estava do outro lado, o lado da RDA comunista. E agora de novo 28 anos, 2 meses e 27 dias mas sem Muro de Berlim. A conta exacta foi assinalada esta segunda-feira e foi oportunidade para se recordar o que significou aquela barreira que foi durante quase três décadas o símbolo mais expressivo de que para lá da “cortina de ferro” o que existiam eram verdadeiras prisões dos povos.
 
O site da rádio pública alemã, a Deutsche Welle, tem um conjunto de trabalhos a evocar esta data, nomeadamente uma fotogaleria – The Berlin Wall: 28 years up, 28 years fallen – e um texto com mais imagens e um pequeno vídeo – Berlin Wall now gone for as long as it stood – que, sendo ilustrativos, dificilmente retratam o que era a cidade dividida. Só lá estive uma vez, vai fazer 35 anos, e sempre que lá voltei depois verifiquei como era difícil explicar a quem nunca conhecera essa realidade como eram diferentes as duas metades da mesma cidade, como era perturbante cruzar o muro na fronteira “Check Point Charlie”, como era sinistro perceber a omnipresença da Stasi (a polícia política do regime comunista), como era triste ver os alemães de Leste, a um domingo, fazendo fila para comprarem uma salsicha num dos parques da cidade.
 
Quando a queda do Muro completou 25 anos António Araújo publicou no Observador quatro trabalhos notáveis que ajudam a perceber o que era Berlim Leste levando-nos a visitar os seus lugares mais emblemáticos à descoberta do que resta do mundo “do lado de lá”, uma viagem pela memória do comunismo e pelos lugares que foram preservados e transformados em museus para que não se esqueça como foi. Vale a pena relembrar esses quatro especiais, até porque complementam o guia de viagem com o guia de leituras:  
 
Um dos locais visitados por António Araújo foi a antiga prisão da Stasi, local que serviu de ponto de partida para o testemunho de um colunista do Telegraph, Robert Hopkins, que em tempos viveu nesse tal “lado de lá”. Em A glimpse of life behind the Berlin Wallele recorda, por exemplo, “During those days, it later emerged, the Politburo used to head off to a walled-off park-like compound at Wandlitz, 30 kilometres (18 miles) north of Berlin to enjoy privileges such as fresh oranges and real coffee, denied to the rest of the population.”
 

Mas o trabalho mais interessante que encontrei a assinalar a passagem destes 28 anos, 2 meses e 27 dias foi o da The Economist, The Berlin Wall has now been down longer than it was up, onde se defende a ideia de que German history is entering a new phase: the post-post-wall era”. Até porque “The wall’s construction in 1961 was Angela Merkel’s first political memory: “My father was preaching on that Sunday. The atmosphere was horrible in the church. I will never forget it. People cried. My mother cried too. We couldn’t fathom what had happened.” Just over 28 years later, working as a physicist in East Berlin, she was taking her regular Tuesday-evening sauna when travel restrictions were lifted. She later joined the crowds pouring across the border at the Bornholmer Straße bridge”.
 
Mais adiante fundamenta-se a ideia de que a Alemanha pode estar a entrar num novo ciclo recordando a experiência do pós-guerra: “Last week I sat down with John Kornblum, the former American ambassador to Germany and the brains behind Reagan’s “Mr Gorbachev, tear down this wall!” speech at the Brandenburg Gate in 1987. He theorises that the country’s modern history has moved in 20-30 year cycles. First there was the immediate post-war period from the late 1940s to the 1960s, marked by the sundering of the country and the ensuing dramas and culminating with the construction of the wall. Then came a period of greater stability and, from the start of the Brandt chancellorship in 1969, more national self-reflection in West Germany. Then with the fall of the wall came a third period: reunification and a process, centred on the red-green government of Gerhard Schröder from 1998 to 2005 but continued under Mrs Merkel, of Germany’s relaxation into normality. “
 
O que virá a seguir não sabemos bem, até porque o país ainda espera que a chanceler seja capaz de formar uma nova coligação de Governo e as últimas eleições criaram um quadro político novo, mais segmentado, do que aquele que foi o dominante na Alemanha dos últimos 70 anos. Há contudo nesta citação uma referência que não pode passar em claro: a recordação do discurso proferido por Ronald Reagan em 1987 junto à Porta de Brandeburgo, o famoso discurso do “Mr Gorbachev, tear down this wall!”Vale a pena recordar esse episódio, quer recordando a integralidade do discurso – o que pode ser feito aqui, sendo que a sua frase mais marcante surge aos 12 minutos –, quer lembrando como essa poderosa mensagem do Presidente dos Estados Unidos esteve longe de ser consensual e só fez parte do discurso porque Reagan decidiu contrariar os seus diplomatas da Secretaria de Estado. Isto é, que só entrou para a História porque o “grande comunicador” tinha a noção exacta do poder da palavra em política. Para que fique registado, é esta a integralidade dessa passagem do discurso: “General Secretary Gorbachev, if you seek peace, if you seek prosperity for the Soviet Union and Eastern Europe, if you seek liberalization, come here to this gate. Mr. Gorbachev, open this gate. Mr. Gorbachev, tear down this wall!”

 
Recentemente um repórter do Politico encontrou-se com o homem que era nesse tempo apenas um jovem speechwriter da Casa Branca mas que foi quem se lembrou primeiro de incluir essa frase no discurso. Em Speechwriter who helped Reagan ‘tear down that wall’ conversa-se com Peter Robinson, hoje com 60 anos e fellow da Hoover Institution na Universidade de Stanford, na Califórnia, um texto onde ele lamenta o desconhecimento que as gerações mais novas têm sobre o que foi a Guerra Fria: “They’re not taught about the Cold War in American high schools. They don’t know how Vietnam fit into it, or Korea. They don’t even know who Gorbachev was.” Most Americans have also forgotten Reagan’s Berlin speech, Robinson says. (...) Very few Stanford University students “have any more than the vaguest idea” of the speech’s political context and the Cold War, he says, sitting in an office teeming with memorabilia”.
 
Mais adiante, no texto, ele recorda como, tendo na altura apenas 30 anos, foi enviado para Berlim para preparar o discurso com muito poucas instruções – “My guidance from senior staff on the speech was, ‘Audience of about 10,000. Length: 20 to 25 minutes. Subject: foreign policy. Period.’ It was up to me to figure out what Reagan ought to say beyond that.” –, como pouca ajuda obteve dos diplomatas americanos e como acabou por ser quase por acaso que a inspiração lhe surgiu: “Inspiration struck one evening at a dinner party among Berliners, where a woman told him, with a passion he can still recall: “If this man Gorbachev is serious about glasnost and perestroika, he can prove it by coming here and getting rid of this wall.” “Boom. I put that in my notebook. I knew immediately that I had something. Because I knew Reagan would have responded to that woman’s message. I had Reagan in my head. He would have loved that. Simple, dignified, but very powerful.”
 
E assim foi, de facto, só que entre esse momento de inspiração e aquilo que na altura foi visto – e porventura ainda hoje é visto – como o mais subversivo discurso de Reagan o texto levou inúmeras voltas e houve incontáveis pressões para suplimir aquela passagem. Isso mesmo recordou Peter Robinson em How Top Advisers Opposed Reagan's Challenge to Gorbachev—But Lost, um testemunho onde se recorda que a luta em torno dessa passagem durou quase até ao momento em que Reagan subiu à tribuna: “The day the President arrived in Berlin, State and NSC submitted yet another alternate draft. "They were still at it on the very morning of the speech," says Tony Dolan. "I'll never forget it." Yet in the limousine on the way to the Berlin Wall, the President told Duberstein he was determined to deliver the controversial line. Reagan smiled. "The boys at State are going to kill me," he said, "but it's the right thing to do."
 
E foi mesmo, como explicava há não muito tempo o Washington Post em How Reagan’s forgotten line became a defining moment, um texto onde se recordam os receios que a retórica reaganiana suscitava: “At home, the State Department fretted that Reagan’s harsh rhetoric would bollix efforts to negotiate with Soviet Premier Mikhail Gorbachev. The West German government worried such a challenge to the status quo could spark a nuclear confrontation.” Receios errados, pois não houve reacção negativa de Moscovo e o Muro cairia mesmo dois anos depois do discurso. Curiosidade: na altura a imprensa norte-americana não deu qualquer importância ao discurso e “Reagan’s most powerful one-liner  was almost completely ignored.” Em concreto: “The speech didn’t make many front pages back home (...). The network newscasts barely noted it. Germany’s main news magazine, Der Spiegel, reported nothing about the speech until six months later, when it called Reagan’s address “the work of amateurs.”
 
Digamos que é uma recordação pouco abonatória para a perspicácia dos jornalistas, que partilhavam tudo menos o optimismo de Reagan relativamente a um futuro sem Muro e sem União Soviética. E acrescentemos que é uma recordação que recomenda mais humildade à minha profissão. Dá que pensar. E, por mim, serve também para me despedir por hoje. 

 
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