sábado, 19 de janeiro de 2019

Macroscóprio – A canábis recreativa não passou, mas será que não passará?

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
A Assembleia da República chumbou hoje dois projectos de lei, um do Bloco de Esquerda, outro do PAN, que legalizariam a comercialização da canábis para fins recreativos (para fins medicinais o uso da canábis já é legal). É no entanto que projectos idênticos regressem mais tarde ou mais cedo ao Parlamento sem que, como agora sucedeu, tenha lugar um debate alargado na sociedade portuguesa. O que se lamenta, até porque começa a existir experiência acumulada relativa ao que sucedeu em países ou regiões onde o consumo recreativo de canábis foi legalizado e dados científicos que, mesmo que ainda a necessitar de mais estudos, permitiriam ter um debate mais informado. Por isso mesmo, tal como ontem prometi, regresso hoje com um Macroscópio que ignora olimpicamente os psicodramas do PSD e antes reúne elementos sobre este tema – é que se desta vez canábis recreativa não passou, nada garante que da próxima vez a canábis recreativa não passará.
 
Para se ter uma ideia de como o debate parlamentar foi pouco informado basta recuar um ano, a Janeiro de 2018, e a um especial do Observador de Vera Novais, Fact check. Canábis para fins medicinais: o que dizem os partidos é o que diz a ciência?, para verificar que já nessa altura e relativamente a uma legislação que acabou por ser aprovada alguns dos argumentos avançados pelos partidos (designadamente o Bloco de Esquerda) eram, no mínimo, enganadores. Passado um ano, e ao querer alargar o âmbito da legalização, subtraindo-a a controlo médico e deixando-a de a limitar a fins medicinais, o Bloco e o PAN não pareciam ter em linha de conta a experiência de quem já percorreu esse caminho.
 
Isso mesmo argumentou Pedro Vaz Patto, presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, num artigo no Observador que tinha como título uma frase do Papa Francisco: A droga não se vence com a droga. Muito detalhado e remetendo para as fontes originais dos estudos, nele escrevia-se, por exemplo: “A experiência dos Estados norte-americanos que há mais tempo (em 2002) legalizaram o consumo e venda de canábis revela isso mesmo, tal como revela o insucesso de outros pretensos objetivos dessa opção. Nessas Estados, depois da legalização o consumo de canábis, aumentou, entre adultos e menores, aumentaram as intervenções hospitalares decorrentes desse consumo e aumentou a condução rodoviária sob a sua influência. Diminuiu a perceção a respeito da danosidade e perigos desse consumo. O mercado clandestino não desapareceu e permite a aquisição a preços mais baixos, sem os impostos que atingem o mercado legal. Estes dados podem ser colhidos em vários estudos. No que se refere ao Estado de Washington, num estudo do próprio Governo. No que se refere ao Estado do Colorado, num estudo da unidade de missão Rocky Mountain HIDTA, ligada ao Governo federal: Num estudo da Associação dos Chefes de Polícia. E no mais recente (de outubro de 2018) estudo da Divisão de Justiça Criminal do Estado.”
 

Estes estudos são apenas alguns dos realizados nos últimos anos nos Estados Unidos. Recentemente a National Academies of Sciences, Engineering, and Medicine procedeu a uma extensiva revisão de toda a bibliografia e produziu um extenso relatório de mais de 400 páginas, The Health Effects of Cannabis and Cannabinoids - The Current State of Evidence and Recommendations for Research  (2017), que tem levado mesmo os jornais que apoiaram a legalização a escrever artigos alertando para os riscos do consumo de marijuana. De facto, lendo o press release, há evidências que não podem ser ignoradas. Por exemplo:
  • “The evidence reviewed by the committee suggests that cannabis use is likely to increase the risk of developing schizophrenia, other psychoses, and social anxiety disorders, and to a lesser extent depression.”
  • “Smoking cannabis during pregnancy is linked to lower birth weight in the offspring, some evidence suggests.”
  • “The evidence reviewed by the committee suggests that smoking cannabis on a regular basis is associated with more frequent chronic bronchitis episodes and worse respiratory symptoms, such as chronic cough and phlegm production.”
  • “Evidence suggests that cannabis use prior to driving increases the risk of being involved in a motor vehicle accident.  Furthermore, evidence suggests that in states where cannabis use is legal, there is increased risk of unintentional cannabis overdose injuries among children.”
 
Um dos textos escritos na sequência da divulgação deste relatório foi o de Aaron E. Carroll, no New York Times, It’s Time for a New Discussion of Marijuana’s Risks. É um texto que assume centrar-se nos riscos do consumo, e não nos seus aspectos positivos, chamando a atenção dos leitores para que devem pesar prós e contras antes de consumirem: “Bottom line: Weigh pros and cons. Many of the harms we’ve discussed are statistically significant, and yet they are of questionable significance. Almost all the increased risks are relative risks. The absolute, or overall, risks are often quite low. We haven’t focused on the potential medical benefits here. But many people use pot — even rationally — for benefits they perceive to be greater than the harms we’ve listed.
 

Malcolm Gladwell, repórter da New Yorker, é porventura mais alarmista em Is Marijuana as Safe as We Think?, um trabalho onde defende que “Permitting pot is one thing; promoting its use is another.” Também se refere à revisão bibliográfica da Academia da Medicina, mas fica insatisfeito com o facto de por vezes esta não conseguir ser mais precisa na definição dos riscos associados ao consumo de canábis. Um exemplo disso são as dúvidas relativas a se um consumo intensivo desta droga acaba por levar ao consumo (ou por facilitar o consumo) de drogas mais duras. É uma dúvida que Gladwell aceita mal: “Seventy-two thousand Americans died in 2017 of drug overdoses. Should you embark on a pro-cannabis crusade without knowing whether it will add to or subtract from that number?
 
Neste quatro o jornalista da New Yorker acaba por citar longamente um outro trabalho, o de um antigo colega de profissão do New York Times, Alex Berenson, que acaba de publicar um livro, “Tell Your Children”, onde procura ir mais longe do que a Academia da Medicina: “Berenson is constrained by the same problem the National Academy of Medicine faced—that, when it comes to marijuana, we really don’t know very much. But he has a reporter’s tenacity, a novelist’s imagination, and an outsider’s knack for asking intemperate questions. The result is disturbing.” E eis como é perturbador: “In one of the most fascinating sections of “Tell Your Children,” he sits down with Erik Messamore, a psychiatrist who specializes in neuropharmacology and in the treatment of schizophrenia. Messamore reports that, following the recent rise in marijuana use in the U.S. (it has almost doubled in the past two decades, not necessarily as the result of legal reforms), he has begun to see a new kind of patient: older, and not from the marginalized communities that his patients usually come from. These are otherwise stable middle-class professionals. Berenson writes, “A surprising number of them seemed to have used only cannabis and no other drugs before their breaks. The disease they’d developed looked like schizophrenia, but it had developed later—and their prognosis seemed to be worse. Their delusions and paranoia hardly responded to antipsychotics.”

 
Ora sucede que Alex Berenson publicou um ensaio no Wall Street Journal, Marijuana Is More Dangerous Than You Think, e lendo-o ficamos com uma ideia mais clara da sua tese:  “As legalization spreads, more Americans are becoming heavy users of cannabis, despite its links to violence and mental illness”. Eis uma passagem significativa: “Contrary to the predictions of both advocates and opponents, legalization hasn’t led to a huge increase in people using the drug casually. About 15% of Americans used cannabis at least once in 2017, up from 10% in 2006, according to the federal government’s National Survey on Drug Use and Health. (...) But the number of Americans who use cannabis heavily is soaring. In 2006, about 3 million Americans reported using the drug at least 300 times a year, the standard for daily use. By 2017, that number had increased to 8 million—approaching the 12 million Americans who drank every day.” Mais: “A 2012 paper in the Journal of Interpersonal Violence, examining a federal survey of more than 9,000 adolescents, found that marijuana use was associated with a doubling of domestic violence in the U.S. A 2017 paper in the journal Social Psychiatry and Psychiatric Epidemiology, examining drivers of violence among 6,000 British and Chinese men, found that drug use was linked to a fivefold increase in violence, and the drug used was nearly always cannabis.”
 
Porventura consciente desta realidade, o Reino Unido, onde também esteve em discussão uma proposta de legalização da canábis para uso recreativo, manteve a sua utilização restrita a fins medicinais, sendo útil e interessante consultar o que se escreve no site do Serviço Nacional de Saúde inglês, o NHS, sobre esta droga. Na página  Cannabis: the facts nota-se, por exemplo, “If you use cannabis regularly, it can make you demotivated and uninterested in other things going on in your life, such as education or work. Long-term use can affect your ability to learn and concentrate.” E a BBC, em Cannabis: What are the risks of recreational use?, procura responder a várias perguntas mais comuns, nomeadamente: “Is cannabis addictive? There was a time when experts thought this was not the case. But current evidence suggests that it can be - particularly if it's used regularly - with about 10% of regular users estimated to have a dependence.”
 

Não resisto pois a terminar esta newsletter sem regressar ao Observador para citar o psiquiatra Pedro Afonso que, em As drogas “levezinhas” do Bloco de Esquerda, fazia um apelo ao bom senso dos nossos parlamentares. Mas não só: “Seria pedagógico convidar alguns dos senhores deputados, que agora propõem a legalização da canábis, para passar algum tempo nos serviços de urgência de psiquiatria e de pedopsiquiatria para verificarem in loco os inúmeros casos de adolescentes e jovens que dão entrada regulamente com quadros psicóticos gravíssimos, decorrentes do consumo desta substância. Alguns deles desenvolvem psicoses breves, enquanto outros, mais suscetíveis, desenvolvem esquizofrenia ou perturbações delirantes persistentes.”
 
Regresso aonde comecei: desta vez a canábis recreativa não passou, mas será que da próxima não passará? Possamos ao menos no futuro ter um debate mais informado, pois não duvidemos que o debate voltará. De resto, desejo a todos um bom fim-de-semana, com boas e informadas leituras.
 
 
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