sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Opinião | Os coveiros da Saúde

Em 18 de Maio de 2018, no Congresso Fundação Saúde SNS, realizado em Coimbra, António Arnaut, figura incontornável da Democracia portuguesa e “pai” do Serviço Nacional da Saúde, proferiu as seguintes palavras:
Como todos sabemos, os meus amigos como profissionaisao |  e eu como utente, o nosso SNS atravessa um tempo de grandes dificuldades que, se não forem atalhadas rapidamente, podem levar ao colapso. E tudo em consequência de anos sucessivos de subfinanciamento e de uma política privatizadora e predadora resultante da Lei nº 48/90, ainda em vigor, que substituiu a lei fundadora de 1979. A destruição das carreiras depois de tantos anos de luta, iniciada em 1961, foi o rombo mais profundo causado ao SNS.
Sem carreiras, que pressupõem a entrada por concurso, a formação permanente, a progressão por mérito e um vencimento adequado, que há muito defendo seja igual ao dos juízes, não será possível ter um Serviço Nacional de Saúde digno desse nome. A expansão do sector privado, verificada nos últimos anos, deveu-se a esta desestruturação e ao facto de a Lei nº 48/90 considerar o SNS como um qualquer sistema presente no “mercado” em livre concorrência com o sector mercantil, que visou a destruição do Estado Social e reduziu o SNS a um serviço residual para os pobres. É preciso reconduzir o SNS à sua matriz constitucional e humanista.
Na verdade, com a prossecução, pelos governos de António Costa, da mesma política que António Arnaut criticava, a situação presente do Serviço Nacional de Saúde, não obstante os patéticos desmentidos da Ministra da Saúde, é de um verdadeiro caos que só ainda não chegou – embora para lá caminhe, e a passos largos – ao desastre completo em virtude da extrema dedicação dos profissionais, médicos, enfermeiros, auxiliares e técnicos que ainda trabalham no nosso sistema público de Saúde.
A enorme gravidade do actual estado do SNS é todos os dias confirmada por novos e cada vez mais inaceitáveis episódios. Como confirmou uma recente e excelente reportagem das jornalistas Vera Lúcia Arreigoso e Raquel Albuquerque, publicada no “Expresso”, metade dos médicos têm actualmente mais de 50 anos e, consequentemente, têm o direito de não fazer urgências. Há cada vez mais vagas (actualmente cerca de 30%) por preencher por haver cada vez menos profissionais dispostos a suportar as péssimas condições de trabalho (desde o número de horas até à falta quer de equipamento adequado, quer de outros profissionais, designadamente enfermeiros) em inúmeros Centros de Saúde e hospitais.
Preocupados com as consequências que essa falta de condições pode acarretar, multiplicam-se as demissões de médicos chefes de equipa: os chefes de equipa de Medicina e de Cirurgia do Hospital de S. José em Julho de 2018, os de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital Amadora-Sintra em Agosto desse mesmo ano, os da Urgência do Hospital D. Estefânia em Dezembro e 6 chefes de equipa de Medicina Interna do Serviço de Urgência e Polivalente do Hospital de Viseu em Maio de 2019.
Tal como se multiplicou a apresentação de declarações de escusa de responsabilidade, cujo número, só até meados de Novembro, já atingiu as 244, mais 168 que no ano anterior. Em Agosto deste ano, mais de metade dos obstetras do Hospital de Santa Maria apresentaram esse documento e no princípio do mês de Novembro foi a vez de fazerem o mesmo 21 chefes de equipa do Serviço de Urgência dos Hospitais de Santa Maria e Pulido Valente.
No Hospital de Leiria, cujo Presidente se demitiu em Março de 2019 alegando precisamente a falta de recursos, há apenas 3 especialistas de Medicina Interna na equipa de urgência para 470 mil habitantes, tendo chegado a suceder frequentemente que o chefe de equipa fosse um médico que concluíra a especialidade há um mês, apoiado por 2 médicos internos.
Em Vila Franca de Xira, na escala de urgência de obstetrícia, onde deviam constar 5 especialistas, muitas vezes estão apenas 2 obstetras e um médico interno ou até indiferenciado!?
Depois de, em Setembro, 10 chefes de equipa da urgência pediátrica do Hospital Garcia de Orta terem ameaçado demitir-se, contra as declarações e promessas da Ministra da Saúde (nomeadamente à saída da sua audição na Comissão Parlamentar da Saúde em 5/2/19, onde afirmou peremptoriamente estar tal encerramento “fora de causa”), esse serviço deixou mesmo de funcionar à noite desde a segunda-feira passada, 18 de Novembro, obrigando os pais das crianças doentes residentes na margem esquerda do Tejo a terem de se deslocar a Lisboa ou a Setúbal para serem atendidas.
No Hospital Amadora-Sintra – programado para servir 350 mil pessoas, mas que, na realidade, serve um universo de 700 mil – a urgência de obstetrícia está a ser assegurada por médicos com mais de 55 anos que têm até aqui aceite integrar as respectivas escalas (embora tivessem direito a não o fazer) e a escala de anestesia tem apenas 2 anestesistas, com a proibição de qualquer gozo de férias.
No Hospital de São Bernardo, em Setúbal, a “solução” encontrada pela Administração foi a ilegalidade, obrigando os médicos a fazerem horas extraordinárias para além do limite legal.
Em 2019 continua a haver 700 mil cidadãos sem médico de família e 100 mil doentes com tempos de espera superiores a 1 ano até serem finalmente atendidos.
Tal como o Movimento de Utentes dos Serviços Públicos (MUST) tem insistentemente denunciado, por ausência de quartos ou camas disponíveis nos hospitais, há pessoas a ficarem longos períodos, por vezes 2 e 3 dias, numa maca, fazendo assim com que as ambulâncias que as transportam (às vezes às dezenas!) fiquem inoperacionais, tal como já sucedeu inúmeras vezes, nomeadamente no Hospital de Santo André, do Centro Hospitalar de Leiria, em Janeiro deste ano, e anteontem no Hospital de Viseu.
Toda a situação da ala pediátrica do Hospital de São João, no Porto, é outro caso infelizmente paradigmático desta verdadeira calamidade. Na verdade, durante pelo menos uma década, as crianças com doenças graves, como cancro ou leucemia, foram autenticamente despejadas em contentores sem o mínimo de condições de conforto e, pior que isso, de higiene e sanidade.
Foi então precisa uma tenaz e corajosa luta de pais para que, após múltiplas denúncias e públicas manifestações, as crianças tivessem finalmente passado, em Julho último, desses miseráveis contentores para o edifício principal, mas só então foi desbloqueada a verba dos 23,5 milhões de euros necessários à construção do novo edifício, tendo sido necessário impor ao Governo e à Ministra da Saúde a adjudicação da obra por ajuste directo, dada a particularíssima urgência da obra. A mesma urgência que, recorde-se, o Governo soube invocar para a tristemente célebre negociata (ao dobro do preço corrente de mercado) das golas anti-fumo, mas que resistiu até à última a adoptar no caso da ala pediátrica de São João. E a mesma adjudicação sem concurso que o Governo de António Costa soube usar para entregar, em exclusivo, o negócio da recolha de resíduos orgânicos urbanos à empresa EGF, do Grupo Mota-Engil…
Para onde quer que nos viremos, constatamos uma crescente falta de profissionais, como médicos e enfermeiros, e, muito em particular, de especialistas. Verificamos que aqueles que ficam, ganhando muito menos que no privado e trabalhando horas a mais e em condições crescentemente degradadas, se sentem caca vez mais exaustos e desmotivados. São verdadeiramente estarrecedores os resultados do estudo“Burnout na Classe Médica em Portugal: Perspetivas Psicológicas e Psicossociológicas”,realizado em 2017 pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, sob a coordenação do Professor Jorge Vala: 66% dos médicos da amostra inquirida apresentaram um nível elevado de “Exaustão Emocional”, 39% um elevado nível de “Despersonalização” e 30% um elevado nível de “Diminuição da Realização Profissional”. Isto, quando um estudo da Universidade do Minho, em 2016, já revelava que 1/5 dos enfermeiros inquiridos sofria de exaustão, decorrente, designadamente, de milhares e milhares de horas extra ilegais com capitações de 40 doentes por um único enfermeiro. Faltam equipamentos adequados, nomeadamente para os imprescindíveis exames auxiliares de diagnóstico, como falta quem os possa utilizar adequadamente, tudo isto enquanto há equipamentos instalados de milhões à espera de autorizações burocráticas ou de profissionais habilitados para começarem a funcionar (como sucede com o Laboratório de Hemodinâmica do Hospital da Senhora da Oliveira, em Guimarães).
Mas o desastre não fica por aqui. Já em Outubro deste ano ficou a saber-se que a prestigiada revista científica “The Lancet” salientou que o SNS português não estava a ir ao encontro das necessidades da população, sublinhando que os gastos com a Saúde a cargo dos doentes (para além do que já pagam em impostos) já representam 28% da despesa total das famílias portuguesas, o que significa uma percentagem que “é significativamente mais elevada do que a média da União Europeia (15%)” ao mesmo tempo que enfatiza que “a falta de investimento no SNS (…) está a impedir a modernização dos hospitais e a substituição de material médico obsoleto”, bem como a desmotivar os profissionais do SNS que, precisamente devido às “precárias condições de trabalho”, vão procurar emprego “no sector privado e no estrangeiro”.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), Portugal é um dos únicos quatro países, entre os 33 analisados, que reduziu a despesa em saúde pública, empurrando quem carece de cuidados de saúde, e ainda os vai podendo pagar, para as instituições privadas e para os seguros privados, tendo, como denunciou o Bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, a percentagem de cidadãos portugueses que, com maior ou menor custo, subscreveram seguros privados de saúde subido de 24%, em 2014, para 37%, em 2018.
Aliás, em 2017, a percentagem do PIB destinada à Saúde dos portugueses diminuiu para 9%, enquanto a média da União Europeia aumentou para 9,6%, e aquela redução só não foi maior devido ao enorme crescimento da despesa suportada pelas famílias, tendo aumentado 86,7% entre 2000 e 2018 (5,1% dos quais nos últimos 9 anos). O subfinanciamento crónico e propositado do SNS levou assim a que, entre 2010 e 2019, a sua despesa tivesse sido de 94.769 milhões de euros, enquanto as transferências do Orçamento do Estado para o mesmo SNS foram de apenas 88.277 milhões o que representa uma diferença de 11.492 milhões de euros, diferença essa que foi coberta com as receitas das taxas moderadoras e dos serviços prestados pelo SNS a entidades privadas, mas sobretudo com uma dívida cada vez mais astronómica. E, assim, se os prejuízos do SNS foram de 345,6 milhões de euros em 2017, em 2018 eles já ascenderam ao valor inacreditável de 848,2 milhões de euros.
E a verdade é que, precisamente ao contrário dos discursos oficiais, a parcela transferida para o SNS através do Orçamento do Estado, medida em termos de percentagem do PIB, não tem deixado de diminuir desde 2010 (4,9%) até 2018 (4,3%).
Por outro lado ainda, à guisa de “compensação” pelos baixos salários pagos no SNS (que representam perdas efectivas do poder de compra na ordem dos 10,7% a 17,1% nos últimos 10 anos) e das péssimas condições de trabalho, assiste-se ao acentuar da promiscuidade público-privada dos profissionais da Saúde, tendo a figura jurídico-laboral da dedicação exclusiva sido retirada deste sector sob o pretexto de que era “cara”.
Desta forma errada e oportunista, tolera-se, se não mesmo incentiva-se, que um número crescente de profissionais do SNS trate de “compor” ou completar os respectivos orçamentos familiares arranjando ocupações profissionais no sector privado
Entretanto, e perante a assim crescente e propositadamente criada inoperância do sistema público, o negócio privado da Saúde autenticamente explodiu. Em 2017, já o número de hospitais privados era de 114, representando 51% do total, com pessoal contratado de forma precária, ganhando ao doente ou à peça (acto clínico), e aos quais o Estado vem atribuindo uma parcela crescente dos cuidados de Saúde sob o argumento de que não os consegue prestar. Tudo isto fazendo com que o financiamento pelo SNS do sector privado da Saúde fosse de 5.446 milhões de euros e, em 2019, seja já de 5.756 milhões, 3.922 milhões dos quais com “fornecimentos e serviços externos”, ou seja, com aquilo que não é, nem podia ser, feito no SNS e que o Governo prefere encomendar aos grupos privados.
Se a situação em termos de profissionais já hoje se encontra em ruptura (tendo emigrado 1.225 médicos e cerca de 10.000 enfermeiros nos últimos 3 anos) e se a verdade é que, entre os médicos mais antigos que saíram do SNS, 43% se reformou, 33% trocou o sector público pelo privado e 7% emigrou, já a percentagem dos mais novos que, no final de 2017, ponderava emigrar assim que tivessem a respectiva especialidade, chegava aos 48%!
Finalmente, importa sublinhar que, pela Portaria nº 153/2017, foram definidos os chamados Tempos Máximos de Resposta Garantidos (TMRG) para primeira consulta hospitalar, sendo de 30 dias para uma consulta médica prioritária de especialidade e de 120 dias, a partir de 1/1/18, para as consultas de prioridade normal. Ora, basta ver que há unidades hospitalares onde uma consulta de urologia chega a demorar 4 anos e 3 meses, uma de oftalmologia atinge os 2 anos e 10 meses e uma de obesidade 442 dias, para se perceber a hipocrisia da definição desse tipo de regulamentos.
Já neste mês de Novembro, através do chamado “Índice Nacional do Acesso ao Medicamento Hospitalar”, promovido pela Ordem dos Farmacêuticos, pela Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares e pela Faculdade de Farmácia de Lisboa, soube-se que 39,1% dos hospitais têm rupturas diárias no fornecimento de uso hospitalar e 30,4% têm rupturas semanais.
Ora, é relativamente a toda esta verdadeira catástrofe que a Ministra da Saúde vem afirmando – como ainda há pouco tempo declarou quer no debate parlamentar, quer no Fórum TSF – que “não há caos em dia nenhum” e até fala num SNS “mais robusto”.
O que temos hoje em curso – e já temos há longo tempo, com governos quer do PS, com ou sem apoios, quer do PSD e do CDS – é um processo de destruição progressiva do SNS. 
Sob os habituais, e não demonstrados, argumentos, arvorados em postulados indiscutíveis pelos ideólogos do neo-liberalismo (“liberdade e da excelência da iniciativa privada”, “supremacia da gestão privada sobre a gestão pública” e “liberdade de escolha do doente”), tratou-se de levar a cabo um plano justificador da degradação sucessiva do SNS e precisamente sob o pretexto assim construído entregar fatias crescentes da Saúde aos grandes grupos privados do sector.
A estagnação e destruição das carreiras profissionais, a degradação das suas retribuições e das condições de trabalho em geral, designadamente os horários, a par do não investimento na construção e no (re)apetrechamento das unidades hospitalares, a amputação e o encerramento progressivo de unidades de cuidados de saúde primários, a preferência e consequente pagamento a peso de ouro, da contratação da prestação de serviços por empresas privadas em detrimento da contratação de mais profissionais para os quadros, a pressão para a adopção da ilegalidade para fazer face a situações caóticas como as das urgências hospitalares (por exemplo, forçando à prestação de horas extraordinárias infindas ou eliminando períodos de consultas para assim conseguir realocar mais médicos aos serviços de urgência), corte sucessivo dos recursos materiais e humanos do SNS, eis a receita que todos os últimos ministros da Saúde têm seguido para promover e justificar o enterro do mesmo SNS. 
Mas Marta Temido, especialista encartada na manipulação, tem levado a mistificação, a falsidade e a calúnia ao extremo.
Corrida da presidência da Autoridade Central dos Sistemas de Saúde (ACSS), precisamente por o Tribunal de Contas ter denunciado que, com intuitos fraudulentos, manipulara e falsificara os dados relativos aos números e tempos de espera de consultas, foi ela que António Costa escolheu para suceder a Adalberto Campos Fernandes e agora para continuar no Governo.
Marta Temido tem merecido esta honra por parte do Primeiro-Ministro, precisamente por não apenas seguir à risca a estratégia de desarticulação e destruição do SNS que António Arnaut denunciou, como por tratar de a disfarçar e camuflar de forma relativamente eficaz.
Assim, se os enfermeiros reclamam e lutam, logo, e com a mais venenosa das perfídias, se lhes atira para cima o anátema de que seriam financiados pelos grupos privados para destruírem o SNS e de que até estariam a deixar morrer doentes. A Ordem dos enfermeiros sai em defesa dessa classe profissional e denuncia as mais criminosas situações de maus tratos de doentes (designadamente nas urgências hospitalares) e logo se lhes lança a “guarda pretoriana” da IGAS, com uma sindicância em que até escutas telefónicas anónimas e ilegais valeram para procurar descredibilizar e crucifixar os dirigentes da mesma Ordem. Os médicos e respectivos dirigentes da Ordem e dos sindicatos médicos põem a nu o escândalo da crescente falta de cuidados e até de segurança para os doentes, muito em particular nas Urgências, e o risco cada vez maior de atrasos, de insuficiência de meios e até de erros clínicos, e logo Marta Temido, sempre com a preciosa ajuda dos especialistas da “Comunicação” corre a jurar que os doentes são a sua maior preocupação e que as preocupações por aqueles expostas não passariam de exagerados ou até mal-intencionados relatos, pois o governo de tudo está a tratar, e bem. Os cidadãos e as suas organizações protestam contra o encerramento das urgências e o discurso governamental é o do “vira o disco e toca o mesmo”.
E, assim, enquanto na própria França do ultra-liberal Macron, acaba de ser anunciado um denominado Plano de Urgência para o Hospital Público que passa pela criação de carreiras mais atractivas, pela dignificação das remunerações, pela revalorização profissional e social dos médicos e demais profissionais, por um significativo e imediato investimento nos serviços públicos de saúde e pela assunção e resolução de grande parte das dívidas dos hospitais públicos, António Costa e Marta Temido, sempre com os habituais sorrisos “para a fotografia” e as frases feitas da propaganda oficial, fingem tomar medidas para tudo afinal ficar na mesma.
Quem assim actua, ainda por cima em cargos públicos, não pode deixar de ser responsabilizado. Até porque, como todos sabemos, quando são os coveiros a tratar, é a Saúde que agoniza!…
António Garcia Pereira
Fonte: noticiasonline

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