quinta-feira, 4 de junho de 2020

O “conspiracionismo” à luz da doutrina católica

José Antonio Ureta

Antonio Guterres, ex-presidente da Internacional Socialista e atual Secretário-Geral da ONU, concedeu uma entrevista ao Osservatore Romano, publicação que tem funcionado por volta dos últimos 160 anos como órgão oficioso da Santa Sé. À pergunta de como enfrentar o sentimento de pânico que ultimamente se tem difundido entre as pessoas, o alto dignitário respondeu, em uma velada referência às acusações levantadas contra o governo comunista da China, que “nas últimas semanas houve um aumento das teorias da conspiração e dos sentimentos xenófobos”. Segundo ele, o alimento do pânico seria “uma epidemia de desinformações”, uma verdadeira “montanha de histórias e postagens enganosas publicadas nas mídias sociais”.

Para retificar essas “desinformações”, Guterres informa ter “lançado uma iniciativa de resposta das Nações Unidas às comunicações denominada Verified, com o objetivo de fornecer às pessoas informações precisas e baseadas em fatos”, e encoraja os líderes religiosos a utilizar as próprias redes de comunicação para “apoiar os governos na promoção das medidas recomendadas de saúde pública da Organização Mundial da Saúde — do distanciamento físico à boa higiene — e negar informações falsas e rumores”[i].

O que fica claro na entrevista é a existência de um entrechoque entre duas visões da chamada “crise do coronavírus”, que deveria chamar-se mais apropriadamente “crise do confinamento”: uma é a versão oficial, amplamente disseminada pela grande mídia, outra é a versão alternativa, restringida às redes sociais. Mas esta versão alternativa está de tal maneira ganhando adeptos, que a ONU se viu obrigada a montar uma dupla ofensiva de descrédito através do seu sistema Verified, destinado a monitorar e replicar tudo aquilo que circula nas redes sociais, tachando com a etiqueta infamante de “conspiracionismo” os que ousarem questionar a versão oficial. Uma etiqueta que obedece ao mesmo propósito do velho rótulo de “fascista”: denegrir e silenciar os opositores.

Já antes dessa entrevista de Guterres tal etiqueta havia sido empregada pelos bispos alemães para qualificar o apelo promovido pelo arcebispo Carlo Maria Viganò, o que representou da parte deles um estratagema vergonhoso para fugir ao debate com os cardeais e prelados que assinaram o documento de Dom Viganò.

Qual o valor dessa etiqueta? Tem algum cabimento, do ponto de vista da doutrina católica, a hipótese de uma conjuração anticristã? Como interpretar a “nova normalidade” pós-confinamento: será uma evolução espontânea, ou o resultado de uma da maior operação de engenharia social e de baldeação ideológica da História, como denunciou recentemente o Instituto Plinio Corrêa de Oliveira?

São três aspectos da questão que mereceriam um livro, mas que abordaremos o mais sumariamente possível no presente artigo.

Qual é o valor científico do rótulo “conspiracionista” e dos estudos sociológicos sobre as “teorias da conspiração”

Os sociólogos que popularizaram o conceito de “Teorias da Conspiração” as descrevem como explicações simplistas de eventos naturais ou humanos que resultariam da ação maligna de um grupo de pessoas — uma minoria ou todo um “sistema”— que agem em segredo para um fim distinto da versão “oficial” ou “óbvia”. Aos olhos dos adeptos dessas teorias, a trama oculta tornar-se-ia exposta se se vinculassem diversos eventos ou detalhes desconexos, mas discrepantes com a versão geralmente admitida (ou não explicáveis por ela), e que só se esclareceriam caso se admitisse a hipótese de uma maquinação.

Segundo tais sociólogos, os inventores e os seguidores de tais explicações seriam pessoas ofuscadas pela complexidade da realidade ou, pior, espíritos paranóides que julgam que a força motriz dos eventos da História não é o operar livre das pessoas ou o azar, mas uma conspiração de dimensão apocalíptica, fruto da luta entre o bem absoluto e o mal absoluto, diante da qual tais espíritos doentios se sentem vítimas impotentes.

A popularidade das teorias da conspiração seria também o resultado da ansiedade experimentada pelas sociedades ocidentais contemporâneas diante dos cenários inquietantes da atualidade: catástrofes ecológicas, terrorismo, fragmentação e complexidade crescentes da realidade, rapidez das mudanças, velocidade da informação, riscos associados às novas tecnologias etc. Contribuiria igualmente para tal sucesso a sensação da perda de valores éticos e religiosos e de regras sociais claras, conduzindo a uma desconfiança em relação às instituições sociais existentes e à impressão de perda de controle sobre o entorno em que a pessoa vive.

De onde um elevado número de pessoas hoje acreditarem em diversas “conspirações”: desde as que teriam provocado o assassinato de John Kennedy (atribuído à CIA ou à máfia siciliana), a morte de Lady Di (tramada pelos serviços secretos britânicos) e o atentado islamista às Torres Gêmeas (supostamente organizado pela Mossad israelense ou a CIA), até as fantasiosas teses de que a chegada do homem à lua foi uma fotomontagem ou de que a Terra na realidade é plana.

Nesse conceito sociológico de “teorias da conspiração” e na etiqueta “conspiracionista” esgrimida contra aqueles que questionam a versão oficial ou a explicação midiática de algum acontecimento ou realidade há dois aspectos contestáveis.

O primeiro deles é que esse conceito atribui a teses ridículas e carentes de provas que circulam em grupúsculos insignificantes o mesmo nível intelectual de estudos de grande calibre científico produzidos por intelectuais ou instituições de renome. Assim, por exemplo, a etiqueta “teoria da conspiração” permite desqualificar intelectualmente os milhares de cientistas que, a partir de diferentes áreas de pesquisa, questionam com dados fundamentados as previsões ou conclusões do Painel Intergovernamental sobre a Mudança Climática. Ou então as denúncias muito bem fundamentadas das associações de pais de família que se inquietam pelos programas educativos visando impor a teoria do gênero no currículo escolar de seus filhos, uma evolução que tem claramente por detrás o poderoso lobby LGBT.

O segundo aspecto contestável desse conceito sociológico é que as “teorias da conspiração” assim ridiculizadas são, na sua imensa maioria, “de direita” e raramente “de esquerda”. E isso apesar de nos meios ditos progressistas ser oficialmente ensinado que a burguesia está mancomunada com os políticos para explorar os proletários, ou que os homens se articulam entre si para impedir o desmantelamento do patriarcado e a libertação das mulheres, ou ainda, que as grandes companhias petrolíferas compram políticos, órgãos da mídia e cientistas com vistas a promover o atual modelo de desenvolvimento industrial não sustentável. Por que dois pesos e duas medidas, se é notória a existência de grupos de pressão nos dois sentidos? Por que seria “teoria da conspiração” somente a denúncia daquilo que vai contra a doxa oficial ou midiaticamente correta, e não as denúncias diametralmente opostas formuladas pelas correntes de esquerda contra os representantes e os defensores da ordem atual?

A conspiração anticristã: realidade ou hipótese paranoica?

A Teologia e a Filosofia da História são as ciências que fornecem elementos para responder à pergunta em epígrafe, de grande atualidade. A existência no curso da história humana de uma luta entre a Cidade de Deus e a Cidade do Homem é uma convicção ensinada pela Igreja desde os tempos de Santo Agostinho (354-430). Mas, pergunta-se: tal luta implica necessariamente numa conspiração por parte das forças do mal?

Vários teólogos, filósofos e historiadores católicos têm-se debruçado sobre o assunto, chegando a um consenso, pelo menos genérico, da existência de uma “conjuração anticristã”, para tomar o título da conhecida obra de Mons. Henri Delassus [foto acima].

As razões teológicas são assaz evidentes e resumidas muito apropriadamente pelo Pe. Henri Ramière S.J. em seu trabalho O Reino de Jesus Cristo na História — Introdução ao estudo da Teologia da História [capa abaixo]. Após demonstrar que Deus teve um fim ao criar e segue um plano no governo do mundo (“o Reino de Jesus Cristo, eis a expressão que melhor resume o plano divino e que melhor exprime a restauração e a recapitulação universal que São Paulo nos mostra como termo de todos os desígnios de Deus (Ef 1,10)”), o grande promotor da devoção ao Sagrado Coração de Jesus passa a estudar “o plano satânico”[ii] que visa vingar na Terra a derrota que o chefe dos espíritos rebeldes sofreu no Céu. “É o que indica o nome Satanás, que significa adversário”, pois ele “só tem luz, energia e poder para se opor ao Bem, e lutar contra o divino Amor”.

Segundo o Pe. Ramière, Satanás não visa apenas entravar e destruir o plano divino, mas executar uma contrafação dele: “O sonho de seu ódio é arrastar os filhos de Deus como escravos, para poder na pessoa deles insultar Aquele que o venceu”. Mas, para isso, o demônio “precisa, como Jesus Cristo, de apóstolos, de soldados, de confessores, de padres e até de mártires”.

No paganismo da Antiguidade, já tinha ele, à imitação de Deus, templos de sacrifícios, oráculos, mistérios, sacerdotes e adoradores. Mas, “assim como a Igreja verdadeira estava ainda apenas no esboço, também a igreja diabólica não tinha recebido a última organização” e, além do mais, “os homens ainda não estavam suficientemente esclarecidos para chegar ao grau de perversidade necessário a Satanás para a execução completa dos seus pavorosos objetivos”. Os idólatras só o reconheciam como deus porque não conheciam o Deus verdadeiro, mas ele quer aderentes que se unam a ele com inteiro conhecimento de causa e por um mistério de iniquidade:

“Quando o homem chega ao ponto de considerar a obediência voluntariamente prestada a Deus como a pior das infelicidades, fica capaz de se ligar a um amor aparente por aquele que o leva à revolta e que procura ajudá-lo como todo o seu poder. O ódio à ordem produz, ao mesmo tempo, o ódio ao amor e o amor ao ódio. É a perversidade completa.”

E assim como a santidade consiste em amar a Deus até o esquecimento de si, a perfeita iniquidade consiste em amar o mal ao ponto de se sacrificar pelos interesses dele.

Para realizar seus desígnios maléficos de contrafação e desenvolver com maior eficácia seus planos de perdição, Satanás procura copiar a hierarquia da Igreja de Jesus Cristo, estabelecendo poderes diversos que sobem de grau em grau para dirigir a obra do mal. “À medida que as dificuldades de comunicação entre os diferentes povos foram vencidas pelas descobertas científicas e que o plano de Satanás se tornou mais compreendido pelos seus seguidores, facilitou-se a ação uniforme e conjugada da perversidade”, acrescenta o Pe. Ramière [foto ao lado]. “Este exército também aprendeu hoje uma disciplina que antes lhe era desconhecida. Obedece, de fato, com espantosa pontualidade a palavras de ordem, ora ficando imóvel, ora retrocedendo, ora avançando com ímpeto furioso. Todos os meios de que dispõe disparam ao mesmo tempo e atacam sem descanso os alvos que lhes são designados.”

Esse plano diabólico, passando pelas vicissitudes da História, deverá atingir sua plenitude no Fim do Mundo com a chegada “do homem que deverá ser a manifestação suprema do ódio satânico, e para oferecer à adoração dos outros homens o mal encarnado na sua pessoa”. Esse homem do pecado “será o Anticristo por excelência e completará a obra que todos os anticristos parciais esboçaram”, produzindo aquilo que São Paulo chamou a suprema “apostasia” (2 Tes. 2,3). No entanto, “esse supremo êxito de Satanás trará a intervenção suprema d’Aquele que já o venceu, no momento em que ele triunfava no mundo inteiro” — conclui o Pe. Ramière.

Articulação visando uma organização revolucionária

Com base no anteriormente visto, pode-se afirmar sem temor que negar a possibilidade de uma conjuração anticristã implica em negar dados incontroversos da fé: a rebelião de Lúcifer e sua obra de perdição; as nefandas consequências do pecado e o mistério de iniquidade ao qual ele conduz; a vida humana como um campo de batalha cujo desenlace final se dará na Parusia, entre outros.

Algum leitor de mentalidade liberal poderia objetar que isso é válido em tese, mas que na prática, pela diversidade de caracteres e a oposição de interesses, dificilmente um grupo de homens chegará a se conjurar para fazer o mal em âmbito universal.

Dom Bosco [foto ao lado], o grande pedagogo e conhecedor das profundidades da alma humana, verificou exatamente o contrário daquilo que os liberais pressupõem:

“No que se refere aos maus, direi apenas uma coisa, que talvez pareça inverossímil, mas que é verdade certa, tal qual a digo: suponhamos que entre 500 alunos de um colégio haja um de vida depravada; chega depois um novo aluno pervertido; são de regiões e lugares diferentes, até de nacionalidades diversas, estão em cursos e lugares diferentes, nunca se viram nem se conheceram; apesar de tudo isto, no segundo dia de estadia no colégio, e talvez após algumas horas, vê-los-eis juntos durante o recreio. Parece que um espírito mau os faz adivinhar quem está manchado de seu mesmo negrume, ou então é como se um ímã demoníaco os atraísse para travar íntima amizade. O ‘dize-me com quem andas e te direi quem és’ é um meio facílimo de dar com as ovelhas sarnentas, antes que se transformem em lobos rapaces.”[iii]

Comentando esse trecho, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira observou que, ao atingir certo nível de profundidade, o mal dota as almas ruins de uma penetrante agudeza de vistas e de uma recíproca atração. A união que daí resulta acentua nessas almas suas características más e aumenta seu ódio ao bem, incitando-as à luta para modificar o ambiente, o que, por sua vez, as conduz ao proselitismo e à combinação de esforços, de cuja articulação resulta uma organização:

“Oculta como a maçonaria, semi-oculta como o jansenismo ou o modernismo, declarada como o luteranismo ou o comunismo, esta associação se propõe ao combate em todos os terrenos — ideológico, artístico, político, social, econômico etc. — para a conquista de seus objetivos. Numa palavra, faz revolução”[iv], observa o ilustre pensador brasileiro.

Uma Revolução que tem sido a espinha dorsal dos acontecimentos nos últimos séculos, conforme a luminosa descrição feita por Pio XII [foto ao lado] do misterioso “inimigo” que tem ameaçado há séculos a Igreja e o mundo inteiro:

“Ele se encontra em todo lugar e no meio de todos: sabe ser violento e astuto. Nestes últimos séculos tentou realizar a desagregação intelectual, moral, social, da unidade no organismo misterioso de Cristo. Ele quis a natureza sem a graça, a razão sem a fé; a liberdade sem a autoridade; às vezes a autoridade sem a liberdade. É um ‘inimigo’ que se tornou cada vez mais concreto, com uma ausência de escrúpulos que ainda surpreende: Cristo sim, a Igreja não! Depois: Deus sim, Cristo não! Finalmente o grito ímpio: Deus está morto; e, até, Deus jamais existiu. E eis, agora, a tentativa de edificar a estrutura do mundo sobre bases que não hesitamos em indicar como principais responsáveis pela ameaça que pesa sobre a humanidade: uma economia sem Deus, um Direito sem Deus, uma política sem Deus.”[v]

A Igreja defende o antimaçonismo primário de algumas correntes de direita laica?

Na construção desse mundo sem Deus, a Maçonaria tem desempenhado um papel relevante, que ela mesma reconhece.

Por ocasião dos 300 anos de existência da Maçonaria na França, o ex-presidente François Hollande fez uma visita à principal loja do Grande Oriente em Paris, pouco antes de deixar o seu mandato. Ele exaltou seu trabalho, dizendo enfaticamente: “A República sabe o que vos deve”. Segundo ele, “a Maçonaria não fez a Revolução Francesa, mas a preparou”, já que “muitos maçons foram os artesãos dos grandes textos desta Revolução”.

Igualmente, reconheceu que a maioria “das leis de liberdade adotadas entre 1870 e 1914 foram reflexionadas e trabalhadas nas lojas”, entre as quais a famosa lei de separação da Igreja e do Estado. E acrescentou que, depois de três séculos, são sempre os mesmos valores que a Maçonaria promove: “Primeiramente, a liberdade. A liberdade contra o obscurantismo, contra o fanatismo, contra o fundamentalismo. A liberdade absoluta de consciência, contra os dogmas. A liberdade de pensamento contra aqueles que pretendem censurar” (referência preocupante, porque foi em nome da luta pela liberdade e contra o “obscurantismo” e o “fanatismo” que milhares de sacerdotes católicos foram guilhotinados, fuzilados, afogados, encarcerados e banidos do território durante a Revolução Francesa, de cuja preparação as lojas se orgulham…).

Esse reconhecimento eloquente do papel da Maçonaria na descristianização da França não impediu François Hollande de denunciar os “conspiracionistas” que destacam esse papel: “Basta clicar na Internet para fazer ressurgir os conspiradores, ou seja, todos aqueles que pensam que vocês estão aqui preparando não sei que conspiração, não sei que organização, não sei que preparação. Tudo isso é perfeitamente disparatado”, pontificou. Não parece tão disparatado, uma vez que pouco adiante ele afirma que, na questão temível do “transumanismo”, a utopia de um homem “aumentado”, “o olhar da Maçonaria é uma bússola preciosíssima neste período, e uma luz que ajuda a entender os desafios e a lhes dar uma resposta”[vi].

Visto que membros ou amigos da Maçonaria como François Hollande reconhecem seu papel central no avanço da descristianização do Ocidente, é legítimo indagar se um católico deve aceitar sem titubeios as denúncias de certo antimaçonismo laico ou pagão que atribui às lojas um plano meramente político ou econômico de dominação mundial, bem como uma intervenção direta delas em cada mudança política, econômica ou social.

O aspecto deficiente desse antimaçonismo simplório — que abre o flanco para a acusação aviltante de “conspiracionismo” — é que ele alija inteiramente de sua visão da realidade o aspecto religioso explicado acima. Ou seja, o papel do demônio e das más paixões que levam os homens a se afastarem de Deus.

Para Plinio Corrêa de Oliveira [foto], a força propulsora mais dinâmica da Revolução são as paixões desordenadas, notadamente o orgulho e a sensualidade, que levam o homem à revolta contra a ordem posta por Deus no universo e a sonhar com uma utopia anárquica na qual coexistam a plena igualdade e a plena liberdade. Dessas tendências profundas de rebeldia — expressas em mil aspectos da vida quotidiana, nos ambientes e costumes de uma sociedade — emergem depois ideias revolucionárias que as justificam e preparam os espíritos para uma mudança na situação concreta dos fatos, que pode ser súbita e radical ou lenta e gradual, dependendo do estado de apodrecimento moral e religioso daquela sociedade. Em outros termos, aquilo que, segundo Antonio Gramsci, vem sendo chamado de Revolução Cultural, é de longe o fator mais importante do processo revolucionário, sem o qual a Revolução nas ideias e nos fatos não poderia se desenvolver ou fracassaria.

O antimaçonismo primário desconhece inteiramente essa realidade mais profunda do processo revolucionário e leva seus adeptos a pensar que ele resulta tão-só das más ideias espalhadas na sociedade e das manobras políticas de grupos de pressão ocultos.

Outra diferença fundamental reside no fato de o antimaçonismo primário acreditar que a finalidade última desses lobbies é apenas a de conquistar um poder absoluto para submeter toda a população a uma escravidão universal e obter assim para si grandes riquezas e uma situação privilegiada. Na realidade, como vimos acima, o que as forças coligadas dos maus procuram — às vezes com o sacrifício de seus próprios interesses — é o afastamento das almas de Deus e a conquista delas pelo demônio, assim como a construção de um mundo cuja desordem e vulgaridade sejam uma ofensa contínua ao divino Criador.

Dessa diferença abissal entre uma visão religiosa e moral do processo revolucionário e de seus agentes e uma visão laica e exclusivamente política, resulta depois uma total disparidade no foco da atenção e nas hipóteses de interpretação dos fatos. 

A “crise do coronavírus” à luz do conceito católico de conjuração anticristã

A crise gerada pela difusão do vírus Sars-Cov-2 a partir de Wuhan é um bom study case para se ver na prática a diferença entre a visão católica e contra-revolucionária da ação dos agentes da Revolução e a visão laica e simplória de alguns adeptos do antimaçonismo.

Está hoje provado que as projeções da Organização Mundial da Saúde e do Imperial College sobre o eventual número de vítimas da Covid-19 resultaram de modelos matemáticos falhos baseados em índices exagerados da letalidade do vírus. Já estamos quase no fim de sua difusão e o número global de mortos é cinco vezes inferior às previsões menos alarmistas, não havendo indícios de uma segunda onda expansiva. É voz comum que o estrondo publicitário feito em torno dessas previsões apocalípticas provocou pânico na população, levando por sua vez a imensa maioria dos governantes a tomar medidas drásticas de confinamento para não serem estigmatizados como irresponsáveis, quando não genocidas.

É patente que a brusca e prolongada redução da atividade econômica já está tendo efeitos desastrosos, como o desemprego e o soçobro de milhares de empresas médias e pequenas, requerendo uma intervenção massiva do Estado na economia, para alegria da esquerda e dos ecologistas, que aproveitam para exigir que os planos de resgate sejam condicionados à aceitação de um novo modelo de desenvolvimento sustentável. Igualmente, os defensores de uma governança mundial apontam para o fato de que somente uma resposta solidária e global é de molde a resolver uma crise global.

Em outras palavras, o grande beneficiário da “nova normalidade” é a Revolução anticristã, cujos corifeus sempre sonharam com uma República Universal cujos contornos foram mudando com o tempo e agora se apresentam como uma sociedade aberta, multicultural, socialista e ecológica.

Porém, a visão católica e matizada da conjuração anticristã e sua caricatura laica e simplória têm observações e conclusões muito diferentes a respeito dessa imensa manobra de engenharia social e de baldeação ideológica da humanidade.

De um lado, o “conspiracionismo” simplista fixa sua atenção na suspeita de que o vírus teria sido produzido intencionalmente em um laboratório de Wuhan como parte de um programa de fabricação de armas biológicas, ou que pelo menos teria escapado de lá após uma manipulação errada. De outro lado, ele desenterra estudos de antecipação de crise ou romances de ficção científica evocando medidas estritas de distanciamento social em caso de nova pandemia, os quais provariam que os governantes responsáveis por sua aplicação não fizeram senão obedecer a um plano pré-estabelecido; e, finalmente, conjecturam que o objetivo prioritário das mudanças é impor a vacinação obrigatória da população mundial em benefício do BigPharma, em preparação para a inserção subcutânea em todo o gênero humano de microchips coletores de informações com vistas a transformá-los em Zumbis de uma Nova Ordem Mundial.

O foco das hipóteses e análises de uma visão autenticamente contra-revolucionária é absolutamente outro.

Em primeiro lugar, ela procura esquadrinhar as causas culturais remotas da atitude da população em face da epidemia e os condicionamentos psicológicos que levaram as autoridades a tomar atitudes imediatistas, ainda que desastrosas em longo prazo. Por dar prevalência aos fatores religiosos e morais, a visão contra-revolucionária põe em relevo o abandono da pregação dos quatro Novíssimos — morte, juízo, céu e inferno —, sua concomitância com a queda gradual da prática religiosa e, acima de tudo, com a difusão na sociedade de uma concepção pagã e hedonista da vida que erigiu a saúde em valor supremo e passou a considerar a morte como uma charada incompreensível e maléfica, facilitando as atitudes de pânico.

Reconhece-o inclusive o filósofo agnóstico Luc Ferry, ex-ministro da Educação da França entre 2002 e 2004. Em recente artigo no jornal Le Figaro, comparando a reação da população diante da pandemia atual e da gripe de Hong Kong de 1968-1969 (que não alarmou quase ninguém, apesar de ter ceifado vidas em proporção similar à da Covid-19), ele deduziu que nesses cinquenta anos houve uma mudança em relação à morte que deixa os agnósticos ou os menos religiosos em uma situação trágica: “Eles são ao mesmo tempo menos protegidos pelas promessas das grandes religiões em face da morte, mas também mais expostos do que nunca por causa da afetividade que se desenvolveu exponencialmente na família moderna. Para a maioria deles, o Céu ficou vazio, não há cosmos ou divindades que possam dar o menor significado à morte de um ente querido”. Para esses agnósticos, diante da realidade funesta [da morte], não resta “outra alternativa senão ‘meter fundo o pé no freio’, o que a meu ver explica a amplitude nova, propriamente falando inédita, das reações de ansiedade e confinamento que se observam em face da pandemia”[vii].

Em segundo lugar, a visão autenticamente contra-revolucionária destaca o impacto que essa mudança profunda nas tendências teve no campo das ideias, cujas conclusões serviram, por sua vez, de guia para as decisões adotadas para frear a epidemia. Ou seja, como o medo neopagão da morte favoreceu aquilo que o filósofo americano Matthew Crawford [foto] chamou de “securitarismo”: “Uma tendência que cresce em poder após dezenas de anos e conhece hoje um momento de triunfo por causa do vírus. É uma determinação de eliminar qualquer risco à vida, uma sensibilidade claramente burguesa”. O securitarismo leva a um paradoxo : “Quanto mais se está seguro, tanto mais o risco que permanece nos parece intolerável”. 

Para Crawford, “a facilidade com a qual ultimamente nós aceitamos o poder dos especialistas da saúde para remodelar os contornos da nossa vida comunitária — talvez de maneira permanente — se deve ao fato de o acautelamento ter suplantado largamente outras sensibilidades morais que poderiam lhe oferecer certa resistência. […] O acautelamento se tornou um meio de intimidação moral”[viii].

Uma intimidação dos espíritos que, por sua vez, acarretou uma mudança de paradigma em matéria de segurança sanitária, que teve como gatilho a transferência do antigo temor de uma conflagração atômica — evanescido após o colapso da URSS — ao medo em face de riscos emergentes, tais como um ataque bioterrorista ou novas doenças infecciosas particularmente letais ou resistentes.

Se até o fim do século XX as políticas de prevenção tentavam calcular as probabilidades reais de uma ameaça sanitária com base em dados seguros das epidemias precedentes, na passagem do milênio um novo critério entrou em vigor: o princípio da preparedness (preparação); ou seja, a convicção de que um país deve estar em condições de enfrentar qualquer eventualidade, até a pior delas, levando os responsáveis pela segurança sanitária a concentrar seus exercícios de antecipação em acontecimentos de escassa probabilidade, mas de consequências catastróficas.

Esse deslizamento intelectual foi muito bem analisado no livro Tempêtes microbiennes. Essai sur la politique de sécurité sanitaire dans le monde transatlantique (Tempestades micróbicas. Ensaio sobre a política de segurança sanitária no mundo transatlântico) [capa ao lado], publicado em 2013, no qual Patrick Sylberman, professor de História da Saúde na Escola Superior de Estudos de Saúde Pública de Paris identificou três eixos principais na mudança de paradigma do conceito de segurança sanitária:

1. A importância crescente atribuída a cenários fictícios para imaginar respostas e treinar os reflexos;

2. A preferência sistemática pela lógica do pior como critério de racionalidade, mesmo sabendo que os eventos raramente ocorrem como se imagina, e que, portanto, a fixação no pior obstaculiza o pensamento para chegar a uma avaliação realista;

3. A tentação de impor um civismo superlativo à população, na esperança de fortalecer a adesão às instituições políticas e a aceitação de quarentenas, vacinações ou a constituição de grandes reservas sanitárias[ix].

“A segurança sanitária é hoje o objeto ou o pretexto de uma degringolada vertiginosa na ficção”, concluía em 2013 o Prof. Zylberman. E acrescentava: “Cifras exageradas, analogias sem fundamento, cenários de terror biológico são exemplos assinalados dessa degringolada”[x]. Como declaravam os antigos filmes, qualquer semelhança com a atualidade é mera coincidência…

“Nova normalidade” miserabilista e ecológica

De todo o anterior se depreende que as medidas de confinamento radical da população e a atual chantagem consistente em oferecer uma libertação parcial da “prisão domiciliar” em troca de um maior controle da vida privada das pessoas (com aplicativos nos celulares ou registros de visitas nos restaurantes e outros lugares públicos) não são apenas a execução de um plano de filme de science fiction (um punhado de conspiradores à procura de imensos ganhos financeiros ou políticos), mas o resultado de um longo processo psicológico e ideológico a partir do neopaganismo hedonista que se disseminou no Ocidente depois da Segunda Guerra Mundial. As forças que favoreceram essa evolução não a criaram ex nihilo, mas cavalgaram, orientaram e exacerbaram — através do cinema, da televisão, da arte, da cultura etc. — as tendências mais profundas da população, favorecidas pelas paixões desordenadas e as tentações diabólicas.

Como afirma Plinio Corrêa de Oliveira, já em seu início o processo revolucionário possuía “as energias necessárias para reduzir a atos todas as suas potencialidades, que em nossos dias conserva bastante vivas para causar por meio de supremas convulsões as destruições últimas que são seu termo lógico”. Tais destruições últimas são hoje os restos de civilidade e de ordem fadados a serem varridos pela “nova normalidade” miserabilista e ecológica.

Esse processo revolucionário segue por vezes caminhos bem sinuosos, mas sem deixar de progredir incessantemente para o seu trágico fim, porque ele é influenciado e condicionado no seu curso em sentidos diversos “por fatores extrínsecos de toda ordem — culturais, sociais, econômicos, étnicos, geográficos e outros”, afirma o autor de Revolução e Contra-Revolução [capa ao lado].

O que importa destacar para a boa intelecção do tema que nos ocupa, ou seja, como distinguir a verdadeira denúncia da conjuração anticristã do falso “conspiracionismo”, é o fato de que os agentes da Revolução — a Maçonaria e as demais forças secretas — constituem apenas um desses fatores extrínsecos, mas não a principal força propulsora, que são as paixões desordenadas do orgulho e da sensualidade. Convém repeti-lo até à saciedade: a Revolução não é um mero processo político; ela resulta de uma imensa crise religiosa e moral.

Porém, é inegável que a Revolução não conseguiria chegar à vitória que almeja sem o concurso desses agentes. Admiti-lo “é o mesmo que admitir que centenas de letras atiradas por uma janela poderiam dispor-se espontaneamente no chão, de maneira a formar uma obra qualquer, por exemplo, a ‘Ode a Satã’, de Carducci”, conclui o saudoso fundador da TFP brasileira.

Uma visão teológica e histórica tão bem fundamentada e equilibrada do papel limitado dos agentes da Revolução merece o rótulo depreciativo de “conspiracionismo”? Claro que não. Surge, então, a pergunta: A quem favorece a disseminação de várias “teorias de conspiração” — das quais as melhores são simplistas e as piores são simplesmente ridículas — senão aos próprios agentes da Revolução, que passam a ter maior liberdade de ação pelo descrédito em que fica a denúncia de uma conjuração anticristã rotulada de “conspiracionista”?

Por infelicidade, nesta matéria, mais do que em muitas outras, “os filhos deste mundo são mais prudentes do que os filhos da luz” (Lc 16, 8).

ABIM

[ii] Ed. Civilização, Porto, 2001, p. 95-106.
[iii]Biografia S.D.B. – B.A.C. – Madri, 1955 – págs. 457/58

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