A Cozinha dos Anjos – Bartolomé Esteban Murillo (1646). Museu do Louvre, Paris.
- Nelson R. Fragelli
Oquadro acima é uma obra-prima de Murillo (1617-1682), na qual o grande pintor espanhol retrata o milagre ocorrido na cozinha de um dos mosteiros da Ordem de São Bruno.
Acabavam os caridosos monges de saciar a fome dos pobres, à custa de suas últimas provisões. Despensa vazia, faltava tudo no mosteiro, até mesmo o pão. Privação, pois, para todos. O Superior tinha ordenado dar de comer a quem pedisse, faltasse o que faltasse aos religiosos. Esta era a regra. Com paz de alma, inclinando-se à santa obediência, todos deram tudo, dispostos à míngua. O afluxo de indigentes vinha sendo grande, e não era a primeira vez que, após se retirarem os pobres com pão e toucinho no alforje ao ombro, restava aos religiosos apenas a penúria.
Consideremos as aves do céu…
À hora do almoço, tocou o sino no claustro na velha abadia. Nos bons dias, aquele timbre rotineiro prenunciava pão fresco e uma consistente sopa fumegando já à mesa. Naquele instante ele soava, mas privado da expectativa de deleites do paladar. A regra, entretanto, era positiva: tocado o sino, todos devem comparecer ao refeitório. No quotidiano de um monge, cada ação era marcada por regradas horas, e seguir a voz do bronze fazia parte da estrita observância. Formado o cortejo, todos se dirigiram às mesas, dispostas sob as altas abóbadas do austero salão onde os corpos se restauram das atividades religiosas. Na galeria de acesso ao refeitório, nenhum odor prenunciava o caldo quente: mesas nuas, fogões apagados, cestos vazios de pão. Conformados, os religiosos recordavam-se da palavra do Mestre: “Não vos preocupeis por vossa vida, pelo que comereis, nem por vosso corpo, pelo que vestireis. Não é a vida mais do que o alimento, e o corpo mais que as vestes? Olhai as aves do céu: não semeiam nem ceifam, nem recolhem nos celeiros, e vosso Pai celeste as alimenta. Não valeis vós muito mais que elas?” (Mt 6, 25-26).
Um dos monges, de nome Tiago, mais tarde canonizado, seguiu o cortejo abismado em orações. Não pedia pão, pedia fidelidade em circunstância tão propícia ao exercício desinteressado do amor de Deus. Fervorosos pensamentos o transportaram em êxtase, e ele gravitava elevado do solo. Subtraiu-se assim, milagrosamente, às leis naturais que regem a humana condição neste mundo. Deus, que recompensa quem se esquece de si mesmo para se abismar em Seu amor, acorreu para dar-lhe o prêmio. À vista de todos, anjos desceram do Céu e começaram a cozinhar às pressas, enquanto Tiago rezava de mãos postas.
Dois anjos discutiam o cardápio e alguns dispunham os utensílios de cozinha: caldeirões, gamelas de cobre, jarros de faiança. Um deles empunhava uma tigela de argila para buscar água na fonte. Outro colocava os pratos. Um terceiro, pondo sal num caldeirão, fazia ferver a sopa, enquanto seu angélico auxiliar socava temperos num pequeno pilão. Coube a querubins escolher legumes num cesto, e Aquele que multiplicara pães e peixes no deserto Se mantinha o Mesmo. Sua bondade é eterna, e se rejubilaram os frades: vai sair o almoço. Segundo o historiador francês Alfred Nettement, de quem tomamos esta descrição, o Superior entrou com dois convidados, cavaleiros da Ordem de Calatrava. Sem o trabalho dos anjos, como poderia receber condignamente tão importantes convivas?
Retratando o milagre, Murillo externou a fé de seu tempo e pôs à consideração de todos esta realidade esquecida, se não denegada: os anjos estão sempre junto aos homens, iluminando e governando aqueles que reclamam seu socorro. Quase nunca visíveis, entretanto, com sua presença sobrenatural eles nos circundam. Com profusão de detalhes claro-obscuros, o quadro sugere a misteriosa — mas quão real — ajuda dos anjos àqueles a quem guardam.
A França sem restaurantes não é a França
Embora pintado por um espanhol, esse quadro está em Paris, no Museu do Louvre. Não por acaso. Ninguém entende tão bem como os franceses que a cozinha tem parte com os anjos. Uma reportagem do Paris Match, de 13 de maio passado, evoca a tela de Murillo. Seu título — “A França sem restaurantes não é a França” — exprime o melhor do artigo. É importante, sem dúvida, a análise da catástrofe financeira ocasionada pela quarentena, a pretexto da atual epidemia, e a cozinha é forçosamente ligada a aspectos financeiros. Brutalmente fechados por ordem do governo, sem prévia advertência, os chefs serão dentro em pouco obrigados a mendigar seu pão. Isto nunca se deu, nem mesmo nos períodos de guerra. Entretanto, a perda vai além.
A cozinha francesa nasceu nos mosteiros medievais, sobretudo entre os beneditinos de Cluny, cujos conventos civilizaram a Europa. Os cozinheiros de Cluny — em geral monges de famílias distintas — tinham como dever não copiar o mesmo cardápio duas vezes ao ano: a cada dia, nova receita. Não havia livros de receitas, e obviamente era preciso esforço de imaginação, variedade de ingredientes, qualidade dos produtos. Desse empenho dos conventos surgiram os altos predicados da culinária francesa, que perduram até hoje.
O discernimento religioso dos monges penetrava a natureza das substâncias alimentícias, o espírito dos condimentos, a percepção dos paladares, a harmonização de sabores: “O arroz é um amável conciliador, aproximando truculências melindrosas; em sua essência, o espinafre vale pouco, mas é suscetível de bem acolher impressões várias”. Embebidos de cogitações como estas, penetradas de profundo espírito religioso, tinham em vista a formação das almas. Desenvolveram assim uma arte próxima de uma ciência. Assim a arte culinária francesa sacralizou a mesa, e esta sacralização subsiste gloriosamente até os correntes dias, quando quase toda a nossa cultura apresenta catastróficos aspectos de fim de civilização.
A aristocracia aprimorando e elevando a culinária
Pintores e poetas têm por vezes intuições notáveis. Murillo, com sua obra, ligou a cozinha aos anjos. Ele estava certo. Até parece que, ao pintar, pensava na França. Nascida nos mosteiros, desenvolvida nos castelos, a autêntica cozinha francesa sempre comunica um nítido sentido espiritual ao que elabora. Por meio dos sabores simples ou requintados, caseiros ou palacianos, sempre põe no espírito imagens de perfeição. Seus sabores pedem reflexão para serem bem entendidos. Não é exagero dizer que seus pratos frequentemente pedem recolhimento, talvez mais do que reflexão.
Os santos abades de Cluny lutaram para conferir elevação espiritual ao ato de comer. Sua época, por volta do ano mil, era ainda tomada por hábitos bárbaros, ainda pagãos em tantos aspectos, semelhantes a maneiras animais. Um dos modos de essa procurada elevação se operar foi pelo aprimoramento do paladar, daí a proibição de apresentar à mesa pratos já servidos no mesmo ano. Quanto pensamento foi necessário para cumprir este ponto do famoso Ordo de vida monástica!
As elites sociais dos primeiros séculos da Idade Média se formaram progressivamente, segundo o modelo de conduta dos monges. Estes lhes modelaram o caráter e os rústicos costumes, segundo a dignidade eclesiástica, e ao longo dos séculos foram destilando uma nobreza. Não descuidaram dos modos e da mesa. Em recíproco entendimento entre o ideal da nobreza e a habilidade dos cozinheiros, surgiram paulatinamente ao longo dos séculos os chefs famosos.
Pratos célebres tomaram o nome de nobres a quem sua cozinha dedicou tais elaborações: vitelos levam muitas vezes o nome dos duques de Lavallière; o Príncipe de Condé deu nome a sopas, que nos gélidos invernos confortam os que as tomam; até hoje se aprecia o filé à Chateaubriand ou o frango a la Reine (à moda da rainha). A nobreza, zelosa de toda estética, deu aos pratos não só sabor, mas um décor maravilhoso, segundo o princípio “se a vista não tem uma surpresa, o apetite não é suficientemente despertado”.
Se a aristocracia elevou a culinária francesa ao parnaso das artes, evidentemente essa elevação contou com a participação do homem do campo — simples hortelãos ou fazendeiros, cultivadores, modestos vinicultores, e tantos outros despretensiosos camponeses. Sem a aristocracia eles não aprimorariam seus produtos, mas sem o homem do campo o húmus agrícola civilizador não chegaria à elite. Portanto, a mesa uniu jubilosamente as classes sociais.
Inspiração angélica no aprimoramento dos sabores
Antes de ser luxo, essa arte era caridade. Por caridade se entende os ritos da cortesia a fim de tratar bem o próximo. Esses ritos eram inúmeros, e em alguma medida ainda permanecem. A boa mesa tem o dom de serenar os ânimos e distender os espíritos, dispondo-os à concórdia. Os bons pratos fazem os bons amigos, e a qualidade suscita a caridade. O filme dinamarquês “A festa de Babette” ilustra de modo prazenteiro esta verdade — a cozinha de Babette movia os corações.
A cultura cristã tem como regentes e protetores os três arcanjos de conhecidos nomes — São Miguel, São Gabriel e São Rafael. Segundo o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, o Príncipe da milícia celeste, São Miguel, tem funções guerreiras, foi seu brado Quis ut Deus que esmagou a revolta dos anjos e precipitou no Inferno os anjos maus. São Gabriel, com iluminada missão diplomática, foi o embaixador do Altíssimo junto a Nossa Senhora, e com seu tato apuradíssimo perguntou delicadamente à Virgem Maria se Ela consentiria em ser a Mãe do Messias. São Rafael, cuja viagem guiando Tobias é longamente narrada na Sagrada Escritura, ajuda os homens nas dificuldades da vida e inspira-os a seguir os bons caminhos.
Os anjos iluminam, guardam, inspiram e governam todas as ações humanas. O milagre no convento de São Bruno comprovou a sacralidade angélica do lugar e das funções ali realizadas. Ao retratá-lo, Murillo parece ter traçado os rumos da cozinha francesa, assistida pelos três Arcanjos. Inicialmente uma fase atribuível à ação de São Miguel, lutando para vencer a rusticidade pagã entranhada nas almas. Na fase seguinte, São Gabriel fez com que a elevação da mesa cumprisse o mandato do amor ao próximo, proporcionando fraternas reuniões. E finalmente o arcanjo São Rafael seria o orientador do senso espiritual francês, nas vias ascensionais dos requintados sabores.
“A cozinha dos anjos”, de Murillo, poderia chamar-se “Os anjos cozinheiros”. O milagre sacralizou o local, o que ali se fez e quem o fez. Esse milagre ocorrido na Espanha, e perenizado por um de seus maiores pintores, foi tomado a sério pela França, como um fator de superior unidade da Cristandade; pois a culinária une não somente as classes; une também as nações entre si. E une os homens aos anjos.
Uma França sem restaurantes como outrora, sem grandes cozinhas e grandes cozinheiros assemelha-se a uma França sem anjos.
ABIM
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