- Plinio Corrêa de Oliveira
O “Legionário”, 26 de setembro de 1937, Nº 263.
O livro de Paulo Setúbal é muito mais do que o histórico de uma alma ou até mesmo de uma geração. Ele é a própria história viva e empolgante do drama espiritual do Brasil contemporâneo. Todos aqueles que têm qualquer parcela de responsabilidade pelos destinos do Brasil, pais de família, professores, sociólogos, estadistas, deveriam ler a extraordinária experiência íntima de Paulo Setúbal. Através de suas páginas de sangue, não é apenas um homem que chora e que sofre.
“Confiteor” é o grito lancinante de gerações inteiras que foram desviadas de Deus: o grito não apenas da geração de Paulo Setúbal, mas de todas as outras que se lhe tem seguido até aqui, e ainda de algumas outras que virão.
Não pertenço à geração de Paulo Setúbal. Mas a tal ponto é verdade que seu livro é o drama de todos os brasileiros deste século que, ao ler o “Confiteor”, tive a impressão de ser ele um mosaico em que se engastavam pedacinhos de meu próprio passado, de permeio com episódios e impressões que companheiros do meu tempo me contaram em confidência, ou que neles espreitei furtivamente, nos rápidos instantes em que as almas, distraidamente, se abrem. Entre a geração de Paulo Setúbal, a minha e as que se lhe seguiram, há mais do que simples analogias, há identidades profundas no sentir e no pensar. A bem dizer, a diferença foi só uma, mas esta formidável, essencial, básica: o movimento mariano que proporciona aos moços de hoje o ambiente salvador que a Paulo Setúbal e aos do seu tempo faltou inteiramente. Uma diferença, pois, que é uma atenuante para ele e uma agravante para nós.
* * *
“Confiteor” é o grito lancinante de gerações inteiras que foram desviadas de Deus. Em substância, o drama de Paulo Setúbal foi o de uma alma que perdeu a pureza e mais tarde perdeu a Fé, que se esquivou sistematicamente aos chamamentos divinos que eram para ele a moléstia e a vocação sacerdotal, e que, no ocaso prematuro de sua vida, se voltou para Deus em um magnífico gesto de contrição, que encheu de nobreza, de esplendor e de santidade os últimos meses de sua existência terrena.
Mas este drama é de tal maneira vivido, de tal maneira sentido, de tal maneira narrado, que o eleva às culminâncias de uma das mais belas obras do gênero em nossa literatura contemporânea. Maior, por exemplo, do que o comovedor e deslumbrante prefácio de Antero de Figueiredo no “Último Olhar de Jesus”.
Paulo Setúbal foi um dos corações mais genuinamente brasileiros que jamais tenham pulsado em nossa terra. E por isto, tudo o que ele nos conta de si se aplica, com variantes, a cada um de nós.
Criança ainda, sua alma era um fino vaso de cristal, que continha as flores dos mais delicados sentimentos. A Fé, a pureza, o amor filial, a simplicidade, tinham em sua alma aquele delicado e alvo esplendor de meiguice, que é a nota distintiva inefável, suavidade do culto piedoso ao Salvador, pela doçura incomparável do amor de sua mãe, o coração de Paulo Setúbal foi na infância aquele “coeur d´un homme vierge” [coração de um homem virgem] que ele mesmo compara a um vaso de insondável profundidade. E o vaso estava cheio até os bordos dos mais puros e preciosos perfumes.
Mas é só do coração de Paulo Setúbal que se poderia dizer tudo isto? Qual o brasileiro batizado que não guarda, da manhã de sua vida, impressões análogas?
Veio depois a hora da tentação. O primeiro assalto foi o da impureza. O respeito humano, as solicitações instantes de nosso meio social corrupto, o exemplo escandaloso de toda a sua geração, montaram o assalto ao “coeur d´un homme vierge”, ao coração profundo como um vaso profundo, e cheio até os bordos, de inebriantes perfumes. E o vaso trincou-se. Mais tarde, a brecha se tornaria mais larga, até que o vaso se partisse em cacos.
Trincou-se por quê? A mãe, uma santa. O professor, outro santo. O colégio, autenticamente católico. Por que, então, trincou-se o vaso?
Porque a formação religiosa não fora tão profunda, nem tão completa, nem tão perfeita, quanto seria mister. E quando o assalto do mundo, do demônio e da carne investiu sua alma, ele baqueou. Baqueou porque era forte demais para ela o exemplo unânime dos colegas, o escárnio dos irmãos, a atração da concupiscência.
Para resistir, teria sido necessária instrução religiosa, formação espiritual ou ao menos amigos bons.
E Paulo Setúbal só encontrou tudo isto pela metade da parte de todos, excetuada talvez sua Mãe. Mire qualquer brasileiro este quadro, e diga, caso ele não tenha a graça de ser virgem, se esta história é só de Paulo Setúbal, ou se não é também a sua.
* * *
Alargou a brecha a impiedade. Por falta de instrução religiosa, por injunções do ambiente, pelo sarcasmo dos amigos maus e pela ausência dos amigos bons, Paulo perdeu a Fé. Porém perdeu-a também, e cumpre não esquecê-lo, porque na sua alma não habitava mais a pureza que agrada ao Cordeiro de Deus.
Mas perdeu Paulo realmente a Fé? Ele o afirma, e eu o creio. Mas ele perdeu a Fé como a perdem os brasileiros em geral: isto é, muito menos pelo fato de inteligência mal informada no ver a verdade, do que pela recusa da vontade em praticar o bem.
E por isto este rapaz incréu, afogado na sensualidade que dele fizera uma alma gananciosa, sensual e frívola, tinha súbitos movimentos para Deus. Quando entrou para a Ordem Terceira do Carmo, e quando sentiu vocação para o Sacerdócio, que objeções lhe fez sua inteligência de incrédulo? Nenhuma. Porque, no fundo, não tinha nenhuma a fazer. Incrédulo, ele o era. Mas muito mais porque não queria crer, do que porque realmente não cresse.
Paulo Setúbal quis ser Padre! Quem haveria de o supor, lendo há 6 ou 8 anos atrás as suas obras! Mas abra-se tanto e tanto coração que por aí anda soberbo e endurecido. E diga-se depois se também ele não teve horas em que a graça de Deus o visitou no fundo do abismo, como visitou o filho pródigo quando mais duro ia o seu exílio. Aí, como no mais, o drama de Paulo Setúbal é o arquétipo do drama espiritual contemporâneo.
* * *
Finalmente, quando sua vida declinava para o ocaso, Paulo Setúbal se converteu. Sua conversão foi profunda e sua contrição amarga.
Com que carinho de filho Paulo Setúbal se refere ao Bom Pastor que encontrou na tarde de sua vida! Quanto daria eu para saber que longas horas de conversação teve Paulo com Cristo, para poder amá-Lo com tão extremosa adoração!
É preciso ler o que Paulo escreveu de Cristo, para se avaliar a doçura do que Cristo disse a Paulo nessas longas horas de intimidade.
Mas o amor de Paulo não ficou aí. Ele se expandiu no apostolado, e a obra que ele produziu foi esse extraordinário “Confiteor”, ardente apologia da Fé e da Pureza que ele lança, do fundo da sepultura mas também do alto da glória dos justos, à mocidade de sua terra.
Com que humildade autêntica ele o fez! Com que pesar sincero! Com que amor radioso ao Coração de Jesus!
Todas as pessoas a quem a idade e outras circunstâncias permitem leituras realistas, deveriam ler “Confiteor”. Ele é um presente de Paulo Setúbal, moribundo, a todos os brasileiros, mas especialmente às almas virginais ou contritas, que vivem sob o manto da Virgem das virgens, para que amemos ainda mais o bem que praticamos, ou choremos mais o mal que fizemos.
* * *
É curioso, mas eu, que nunca vi Paulo Setúbal, fiquei com saudades dele ao terminar a leitura de seu livro. Saudades dele e simpatia para com as figuras privilegiadas em cujo convívio ele introduz o leitor: sua santa mãe, seu professor, sua esposa, sua admirável filhinha [Teresinha, que morreu em odor de santidade — Vide Catolicismo, Nº 844, abril/2021].
É a todos eles, à memória dos que foram e à virtude dos que ficaram, que dedico este artigo. É uma homenagem sem o valor literário de outras, mas entusiástica, sincera e comovida como poucas.
ABIM
Nenhum comentário:
Postar um comentário