quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Tucano do bico quebrado

  • Péricles Capanema

Do tucanuçu ao araçari-miudinho. O maior dos tucanos é o tucanuçu, bem poderia ter inspirado o símbolo do PSDB. Poderia ser outro, o tucano do papo amarelo, igualmente grande. Bicam forte. Como inspiradores, eles arriscam dar o lugar para o araçari-miudinho, o menor da espécie, bica fraquinho. Todas são aves ameaçadas, o habitat está ficando menor e mais hostil, a caça corre solta. É congruente, os simbolizados políticos tucanos passam por situação parecida, habitat difícil, caça intensa contra eles. Mas não vou tratar especialmente de tucanos, senão como ilustração atual e adequada do que ocorre na ornitologia política brasileira inteira, é o meu ponto. Ou seja, vale para tucanos, vale para todos. O tucanuçu está com o bico quebrado.

Prévias reveladoras. As recentes prévias tucanas permitem entrada fácil na matéria. Tenho afirmado repetidas vezes que a maciça maioria dos políticos — direita, centro, esquerda — foge como o diabo da cruz de um assunto: o voto facultativo. Não gostam de falar nele, embora seja usual, antigo e de efeitos razoáveis em praticamente todas as democracias mais consolidadas e civilizadas do mundo. A mais de previsível melhoria na representação política (só iria até as seções eleitorais o eleitorado interessado), o voto facultativo ocasionaria no Brasil fortíssimo barateamento das eleições. Todos sabem, o custo das campanhas é considerado o maior fator da corrupção na política. Sem muito dinheiro, ninguém ganha eleições. Verbas de gabinete, cotão, rachadinhas, fundo eleitoral, fundo partidário, acordos ligados à liberação de emendas, diretorias de estatais, tudo isso ajuda a financiar campanhas. E a eleger pessoas, infelizmente com pouca ou nenhuma representatividade real. Uma pequena precisão — homens do rádio e da televisão, artistas, celebridades, representantes de categorias profissionais, em geral, podem gastar menos nas campanhas, já são muito conhecidos antes das eleições. Sua eleição não tem elevado o nível da representação política.

Acachapante desinteresse público. E por que político nosso, via de regra, abomina voto facultativo? Por razão simples, colocaria a nu o desinteresse popular em relação a eles e ao jogo democrático. Com voto facultativo, a grossa maioria não iria votar. Com o obrigatório, a carneirada tem que ir ao aprisco (seções eleitorais), se não vai é punida. Temos dia e noite o desfile de prestígios pecos e postiça encenação dos ritos democráticos da democracia moderna, assistidos por população distraída e asqueada. A expressão representante do povo é oca entre nós. Os interesses reais e palpitantes estão alhures. No Chile tão mais politizado, sabem qual foi o comparecimento popular, considerado alto, para o primeiro turno das eleições presidenciais? 47,34 %. Nas últimas presidenciais dos Estados Unidos a participação popular, a maior de 56 anos, foi de 60,8%. No Brasil, meu palpite, as legislativas não atrairiam mais de 25%; se tanto. As eleições para os cargos do Executivo, um pouco mais. Claro, poriam a nu a realidade inafastável, o desinteresse popular, com respingos fortes no prestígio da classe política. Daí, repito, o horror dos políticos, não importa a coloração, pelo voto facultativo.

Os números da prévia tucana. Segundo registros no TSE, afirmam os jornais, o PSDB teria 1,3 milhão de filiados. Todos estariam aptos a votar nas prévias partidárias em que três membros destacados (governadores João Dória e Eduardo Leite, ex-senador Arthur Virgílio) disputavam a pré-candidatura ao Planalto. O voto era qualificado (aqui vale o voto qualificado, em geral tão vergastado pelos políticos). Para exercê-lo, era preciso baixar um aplicativo no celular — o cadastro. Cadastraram-se 44,7 mil tucanos para ato importantíssimo da vida partidária, a escolha do pré-candidato à Presidência do País. Cerca de 3% do total dos filiados tiveram interesse em participar. Por volta de 97% dos oficialmente inscritos no partido, nenhum interesse teve em votar. Pelo menos, quase 45 mil ainda se dispunham a apertar um botão no celular, coisa dificílima, já se vê. Espera aí. Votaram de fato 29.360 filiados. Uns 15 mil se inscreveram, mas nem tiveram ganas de apertar o botão do celular. Na prática, por volta de 2% votaram, em torno de 98% se desinteressaram. O grande fato é a posição (ou falta dela) dos 98%. O fato menor, o racha tucano (54% para Dória, 45% para Leite) ocupou manchetes. Numa mostra de humor negro involuntário, Bruno Araújo, presidente do partido proclamou: “O PSDB sai desse processo muito maior do que entrou no mês de abril”. Aconteceu com os tucanos, aconteceria com qualquer partido, com notas um pouco menos marcantes, talvez, com PT e Novo. Mesmo com o impulso do governo o quadro de desinteresse muda pouco. O presidente Bolsonaro quis criar o Aliança para agrupar apoiadores. Em vista da atual legislação, ao longo de dois anos, é necessário coletar assinaturas que perfazem pelo menos 0,5% do total dos votos dados na última eleição para a Câmara dos Deputados, distribuídas em no mínimo um terço dos Estados da União, nunca menos de 0,1% do eleitorado que tivesse votado em cada um deles — pouco menos de 500 mil assinaturas no total. Não conseguiu, foi se abrigar no PL. Dois exemplos recentes de desinteresse público.

Todos são araçaris-miudinhos. O símbolo do PSB é uma pomba. Nesse quadro ficaria melhor como rolinha fogo-apagou. Se algum partido tivesse escolhido o carcará como símbolo [aliás, adequado, voracidade famosa], no Brasil atual estaria mais conveniente colocar com substituto o quiriquiri. E assim por diante.

Araçaris-miudinhos anêmicos. Sem romantismos, nem superficialidades, a saída do quadro atual requer clareza de vistas, bom senso, maturidade, paciência. Anos de esforços numa mesma direção. Com efeito, a situação política em boa parte é reflexo de realidades sociais atávicas, nas quais estamos imersos. Quem elegeu os políticos atuais foram eleitores com os quais convivemos diariamente, muitos dos quais amigos e parentes. A anemia desagregadora, contudo, pode ser combatida com veracidade e transparência; ter clareza a respeito do quadro. São fatores impulsionadores de participação real e inclusão benéfica, bem como antídotos eficazes contra atrasos e retrocessos.

ABIM

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