O Presidente da República teve a ideia original (mais uma) de convidar Mario Draghi para participar no Conselho de Estado de quinta-feira. O mesmo Draghi que muitos vêem, nos dias pares, como o salvador da Europa com a sua política monetária e, nos dias ímpares, como um dos seus diabos por causa da ortodoxia e falta de transparência do Banco Central Europeu. Sentado à mesa de um órgão consultivo do Presidente da República de um país da periferia do euro, para mais recentemente saído de um processo de resgate, Mario Draghi não arriscou e procedeu como habitualmente: trouxe um discurso escrito e, apesar de em Portugal se entender que o que é dito no Conselho de Estado fica no Conselho de Estado, o presidente do BCE publicou de imediato a sua intervenção no site da instituição: Participation of the President in the Portuguese Council of State. Ainda bem. Duplamente: porque assim ficámos a saber exactamente o que disse, e porque o que disse foram coisas importantes.
Apesar das notícias publicadas pela imprensa portuguesa – incluindo o Observador: "Não se justifica anular reformas anteriores" – é interessante consultar o documento original e lê-lo com atenção. Duas passagens:
a) The signs of the euro area and Portuguese economic recovery should not be an indication that we can rest on our laurels. The euro area as a whole only just managed last year to return to the levels of economic activity seen before the crisis and some countries, among them Portugal, are still not there. And our economies are still marked by significant vulnerabilities which need to be swiftly addressed.
b) Portugal’s reform efforts were (…) both remarkable and necessary. We now see clear signs that these remarkable efforts are paying off here and elsewhere. Just to name a few examples: buoyant employment growth since 2014 suggests that labour market reforms are making the economy more adaptable. (…) However, all reforms take time to yield results. This is true for Member States across the Union, large and small. There is no case for unravelling past reforms. In addition to upholding past achievements, further reform efforts are needed across the euro area. (…) Improving the functioning of the labour market remains key in this respect, with a view to ensuring a rapid adaptation to shocks or structural change. This area remains an important challenge in Portugal.
Ou seja, a mensagem de Mario Draghi acabou por constituir um aviso a Portugal e à reversão das reformas realizadas nos últimos anos. Razão tinha o Bloco de Esquerda para dizer que ele não era bem vindo… (Já agora: repararam que Francisco Louçã apareceu de gravata?)
Independentemente disso, alguns textos publicados nos últimos dias sublinharam precisamente a mesma ideia: a de que a recuperação económica corre riscos, em Portugal e não só. Vale a pena chamar a atenção para alguns deles, com perspectivas diferentes, mas que ajudam a pensar a realidade actual:
- Um par de bofetadas sérias, de Henrique Monteiro no Expresso, onde não se discute João Soares, mas sim o tema das cativações que já ameaça o orçamento das nossas Universidades: “57 milhões de cativações, ou seja dinheiro orçamentado para o Ensino Superior, já distribuído pelas respetivas Universidades (e também Politécnicos), que estas cam impedidas de gastar sem autorização especial. Para quem não sabe, a cativação é um modo de as Finanças (neste caso a Direção Geral do Orçamento) controlar os gastos do Estado. Pode ser virtuoso e pode ser desastroso. De qualquer modo, com este movimento, as Universidades caram com menos dinheiro do que aquele de que dispunham no tempo do Governo anterior.” Parece que afinal, conclui o cronista, “Esperemos que sim, que seja possível às Universidades “virar a página da austeridade”, mas já percebemos que nas Finanças a célebre frase de Vítor Gaspar – “Não há dinheiro, qual das três palavras não compreende?” – mantém-se muito atual.”
- O futuro meteu a marcha atrás, de Maria João Avillez, no Observador, onde fala de preocupações com a situação económica, as quais ilustra exactamente com o exemplo das cativações ao orçamento das Universidades: “Qualquer pessoa séria sabe que não é bem assim, as noticias não são boas, há uma deterioração que os números, mesmo que se manipulem, ainda que se deturpem, nunca poderão esconder: mais perto que longe, a realidade se encarregará de fazer a sua “fracassante” entrada em cena. E não é preciso evocar o papão europeu, os “mercados”, ou seja o que for. Basta só atender à realidade intramuros, quando ela começar a dar de si.”
- O passado, o futuro ou bater no muro da realidade, que eu mesmo publiquei também no Observador, comentando o artigo do Expresso onde se mostrava, com base nos números do INE, que há 20 anos que o rendimento dos mais novos está cair por comparação com o dos mais velhos: “O pensamento dominante tende a reagir a este tipo de revelações (…) defendendo subidas administrativas de salários (como o salário mínimo) e regimes laborais que contrariem a “precarização”. A verdade porém é que não se pagam salários mais elevados sem que se crie mais riqueza, nem se criam mais empregos sem que as empresas sejam capazes de competir nos mercados abertos do tempo da globalização. É por isso que há muito se fala, em toda a Europa, da necessidade de reformas do mercado de trabalho, reformas que a Alemanha e os países nórdicos já concretizaram no essencial, reformas que são violentamente combatidas na Europa do sul”. A seguir explicava como os últimos aumentos do nosso salário mínimo parecem estar já a prejudicar a criação de novos empregos.
- Os cúmplices do mal, de Miguel Angel Belloso, no Diário de Notícias, onde relata a sua experiência de participação num debate numa televisão espanhola, um debate formatado para defender ideias próximas das do Podemos, como a de uma forte subida do salário mínimo: “Só lamento não ter tido acesso a tempo ao relatório elaborado pelo Departamento Federal de Emprego da Alemanha no qual se faz o balanço da introdução do salário mínimo no país, que foi uma das condições exigidas pela esquerda para formar o governo de coligação com o partido de Merkel. A conclusão deste relatório é que a introdução de um salário mínimo de 8,5 euros por hora desde janeiro de 2015 destruiu 60 mil empregos na principal locomotiva do continente.”
- Interesses totalitários, de João César das Neves, no Diário de Notícias, a propósito de um cartas da Fenprof onde se escrevia que "os nossos impostos são para investir na escola pública, não para gastar com privados": “A frase representa a atitude corporativa, clientelar e burocrática que há séculos impõe o atraso nacional. Foi também esta mentalidade protecionista e interesseira que gerou a recente crise orçamental e financeira. Os professores são apenas um dos muitos grupos que se instalaram nas instituições nacionais, pondo o seu interesse particular no lugar do bem público que deveriam promover. Através de muito meios, mas sobretudo pelo Orçamento, esta distorção foi gerando a dívida que agora nos paralisa, bem como os incentivos, regulamentos e institutos que bloqueiam o desenvolvimento.”
- Gratuito? Não acredite: alguém vai pagar a factura, de Paulo Ferreira, no Observador, a propósito do anúncio de que os estudantes do 1º ciclo do Básico passaram a dispor de manuais escolares gratuitos: “Os manuais passam a ser “gratuitos” para quem os utiliza mas são pagos pelo Estado, portanto por todos os contribuintes, às editoras, que mantêm o seu negócio. Como a medida vai ser universal, as famílias mais abastadas serão tão beneficiadas como as mais carenciadas. É o mesmo truque de magia das SCUT. Neste caso a factura não é paga na livraria mas sim na repartição de finanças.”
- Reabilitar, de Vital Moreira no Diário Económico, a propósito do programa de reabilitação urbana e da intensão de algumas autarquias de criarem rendas acessíveis para a classe média: “As rendas “acessíveis” colocam um problema de “concorrência desleal”, suscitando a questão de saber se o Estado pode praticar rendas reduzidas na oferta de habitações ou estabelecimentos no mercado de arrendamento. Uma coisa é a obrigação do Estado (e dos municípios) de assegurar o direito à habitação a quem não tenha meios (oferta de “habitação social”, subvenção de rendas das pessoas de baixo rendimento, etc.), outra coisa é participar como agente no mercado de arrendamento e abster-se de cumprir as suas regras.”
- Dinheiro das pensões para a construção civil?, de Pedro Sousa Carvalho no Público, sobre o mesmo programa de reabiçitação urbana, onde critica o modelo de financiamento: “A engenharia financeira é parecida: o Estado, as câmaras, as IPSS e até os privados podem entregar os seus imóveis a um fundo que, por sua vez, trata de os recuperar e de os colocar no mercado, segundo o Governo, com rendas acessíveis e abaixo do preço de mercado. Em troca recebem unidades de participação do fundo e, ao longo dos anos, previsivelmente dez, vão recebendo dividendos gerados pelas receitas das rendas e pelo produto da eventual venda de imóveis. (…) [O dinheiro virá do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social, só que “pôr ao serviço da construção civil e da reabilitação urbana, sem garantia de retorno, já que as rendas serão fixadas abaixo do preço de mercado, é um risco desnecessário para a Segurança Social.”
- Ainda o Estado maternal social-democrata, de José Manuel Moreira, no Diário Económico, sobre as discussões ideológicas contemporâneas: “A conversão da direita ao estatismo e a sua contaminação pelo politicamente correcto ajudaram a agravar a crise, talvez teminal, de uma social-democracia que foi tornando insustentável o Estado fiscal-social(ista) de Bem-estar (dos políticos). Poderíamos dizer, corrigindo a profecia de Schumpeter sobre o fim do capitalismo, que a social-democracia foi vítima do seu êxito. Absorvendo de tal modo as populações e as classes dirigentes na sua rede de interesses que a situação parece já não ter saída.”
- A culpa é sempre do capitalismo, de Francisco Assis, no Público, onde constata que, sobre os Panama Papaers, Daniel Oliveira não usou palavras muito distintas das que Marine Le Pen: “Sejamos sérios: nenhum dos pensadores ou teóricos do capitalismo receitou ou defendeu a selvática ausência de regras de enquadramento do funcionamento dos mercados. Pelo contrário (…) preconizaram sempre a necessidade da existência de regras como condição imprescindível à prevalência do princípio da livre concorrência. Se nalguma coisa falharam foi justamente nesse excesso de optimismo que os levou a desvalorizar a dimensão política e a desguarnecer a salvaguarda de uma forte intervenção da instância estatal. (…) O sucesso da social-democracia reside precisamente aí, na capacidade de regular as pulsões próprias de um modelo capitalista, integrando-as numa perspectiva mais geral de uma sociedade eminentemente democrática. Quando o socialismo pretendeu ir mais longe do que isso revelou-se uma tragédia.”
Como viram consegui fazer hoje um Macroscópio quase sem me debruçar sobre o episódio das bofetadas, entretanto encerrado com a demissão do ministro. Não foi por acaso: os ministros vão e vêm, o país e os portugueses é que estão cá antes, durante e depois e não nos convém nem ignorar as recomendações de Mario Draghi, nem deixar de questionar e reflectir sobre o rumo que estamos a seguir.
Tenham um bom fim-de-semana, reencontramo-nos na segunda-feira.
Mais pessoas vão gostar da Macroscópio. Partilhe:
no Facebook no Twitter por e-mail
Leia as últimas
em observador.pt
Subscreva
as nossas Newsletters
Nenhum comentário:
Postar um comentário