terça-feira, 21 de março de 2017

Macroscópio – Uma pergunta estranha: o centro-esquerda tem futuro na Europa?

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
Para quem vive num país governado pelo PS e por António Costa, a pergunta pode fazer pouco sentido. Contudo é a que fazem alguns colunistas depois dos resultados eleitorais… na Holanda. Em Portugal, como em muitos outros países, só houve olhos nas eleições holandesas para Geert Wilders, o líder da extrema-direita islamofóbica. Contudo o segundo lugar do seu partido – visto como uma derrota – pode estar longe de ser o resultado mais significativo do escrutínio. A derrocada dos social-democratas – para tinham 38 deputados e ficaram reduzidos a 9, o seu pior resultado de sempre – está a ser lida como mais um sinal das dificuldades porque passa o centro-esquerda um pouco por toda a Europa, com algumas excepções. É por isso ao centro-esquerda que dedico hoje o Macroscópio.
 
O meu ponto de partida é um texto cujo título vai directo ao assunto: The real story in the Netherlands? The implosion of the center-left. Trata-se de mais recente crónica da historiadora Anne Applebaum no Washington Post, onde ela sublinha que “the implosion of the unified center-left — the Dutch Labor Party — which is a story that really does have pan-European significance, affecting electorates in almost every country. Though temporarily halted in some places by centrists such as Tony Blair, this slow-motion collapse has been going on for two decades, ever since the end of communism removed the dream of the state-run economy and economic change undermined the trade unions, as well as the working-class solidarity they created.” Mais adiante considera mesmo que “In the end, the demise of the Old Left, and the story of what replaces it, may turn out to matter more than the rise of the “New Far Right.”
 
Há já quase um ano, Pierre Briançon tinha escrito no Politico sobre o que designou como o Long goodbye of the European Left. Depois de notar que “Across the Continent, socialists are failing to capitalize on political opportunities”, discutia a possibilidade de estarmos a assistir a uma mudança fundamental de referências: “As the traditional social-democratic parties keep wondering what it means to be on the Left today, some are already proclaiming the end of the traditional party system. Politicians such as France’s reformist economy minister Emmanuel Macron hardly hide the contempt they have for a bureaucratic party system where the traditional notions of “Right” or “Left” have lost their significance. “The real split, more and more, will be between reformers and conservatives,” said a Macron associate.
 
Nessa altura Macron ainda não era o fenómeno em que se tornou – o candidato melhor colocado para suceder a Hollande como Presidente da França – mas os sinais estavam lá. Ou seja, estávamos a entrar num novo tempo na política francesa, algo que a Spiegel analisava esta semana em How Emmanuel Macron Upended French Politics, um texto onde também se questiona a tradicional divisão esquerda-direita que sempre tendeu a “arrumar” o espaço político desde a Revolução Francesa:  “It is clear that if Macron faces off against Le Pen on May 7, the unwritten law which holds that the left and the right hold power alternately in the France will become obsolete. It would serve as evidence that the decisive conflict is no longer between these two classic camps, but between pro-European liberals and protectionist nationalists -- yet another sign that societies are now structured differently than they were only a few years ago.”
 
Isso será tão ou mais verdade quanto num país onde a direita tradicional, representada nesta eleição por François Fillon, também está em crise, o desespero quase se apoderou de Bernard-Henri Lévy, que, no Project Syndicate, fala de Another Strange French Disaster. As suas palavras são especialmente duras para com o candidato oficial do PS: “Now, at the very moment when one might expect a presidential candidate to tell the nation what he thinks of Donald Trump, Vladimir Putin, and Islamic radicals, the Socialist candidate, the wan Benoît Hamon, finds nothing better to talk about than legal marijuana, red sludge, and endocrine disruptors.”
 
Mas para analisar melhor o novo quadro em que se move o centro-esquerda é indispensável ir até ao Reino Unido, onde um dos partidos mais importantes de toda a tradição trabalhista, o Labour, passa por sucessivas crises desde que escolheu para a sua liderança Jeremy Corbyn, um velho “esquerdista” que muitos se interrogam se realmente deseja lutar pelo poder e ser um dia primeiro-ministro. John Carlin, no El Pais, escreve mesmo sobra La imperdonable frivolidad de la izquierda británica: “Ahí está la imperdonable frivolidad, ahí está el onanismo infantil de aquellos que prefieren la irrelevante limpieza ideológica a la responsabilidad del poder, que ven más valor en formar parte de un club de autosatisfechos biempensantes que incidir materialmente en las vidas de las clases desfavorecidas a las que juegan a defender pero, en realidad, abandonan a sus miserias. Reconocieron a Corbyn como uno de los suyos.”
 
Porventura ainda mais duro é o texto de Ross McKibbin, na Prospect, um ensaio que recua até às origens do Labour e aos seus tempos de glória – Labour in crisis: The red sag. Na opinião do autor, “Labour's problems are far deeper than Jeremy Corbyn, tracing back to the mid-20th century. But things will get worse unless he goes. The great bulk of MPs should now walk away.” Mas antes de chegar a esta conclusão – e a uma severa condenação de liderança de Corbyn – este ensaio põe o dedo nas várias feridas do movimento trabalhista, nomeadamente: Britain’s social structure has been profoundly altered by the effects of de-industrialisation. Scarcely 40 per cent of the workforce are manual workers and the unions have lost both numbers and authority. Britain is now predominantly a middle-class society—though it is a very diverse middle class—and Labour has struggled to adjust to that. In fact, it has never found a reliable alternative electoral base to the unionised manual working class of 1951. This has been something common to all western industrial economies and their social-democratic parties; all now have their rustbelts, their decaying industries and their jobs lost to Asia. But in Britain it went farther and faster because there was so much more to lose.”

 
Até há pouco Itália parecia ser uma excepção. O centro-esquerda estava no poder, o primeiro-ministro Mateo Renzi reivindicava credenciais reformistas e o populismo incaracterístico de Beppe Grillo parecia contido. Só que um referendo convocado para mudar o sistema político criou o caos, como Jorge Almeida Fernandes descreveu, no Público, em Após demissão de Renzi, Partido Democrático entra em rota de cisão: “A consumar-se, a ruptura do PD mudará a paisagem política italiana, abrindo uma avenida aos populismos. Não se deve a divergências ideológicas mas a uma disputa do poder entre pessoas e clãs.”
 
Uma disputa que poucos entendem, nomeadamente entre o eleitorado mais fiel da força que resultou da aproximação entre os antigos comunistas convertidos à socil-democracia e os democratas-cristãos mais à esquerda. Disso mesmo podemos ter uma ilustração muito viva na reportagem da revista da esquerda britânica The New Statesman: “What are we supposed to say to comrades in town?”: why Italy's centre left is breaking apart.
O que neça se relata é o ambiente de perplexidade vivido em Cavriago (na foto), um município governado pelos comunistas e pelos seus herdeiros desde 1948 e onde na praça central deve estar o único busto de Lenine num lugar público de toda a Europa Ocidental. Contudo, “Even over a glass of wine, the deputy mayor looks disheartened. “There’s no clash of ideals, no alternative view of the party or back-up plan for the country,” Corradi says. “There’s only political opportunism: with a proportional system, defectors now have more possibilities to get re-elected in parliament. But what about us? What about the party? What are we supposed to say to comrades in town?”
 
Já aqui ao lado, em Espanha, trava-se uma aguerrida luta pela liderança do PSOE depois de o partido ter perdido sucessivas eleições e visto muitos dos seus eleitores desertarem para os esquerdistas do Podemos. Desta vez Pedro Sanchez, o anterior secretário-geral, é desafiado pela mulher que preside ao governo da Andaluzia, histórico feudo socialista. Vale a pena conhecê-la melhor através de um perfil do El Pais, Susana Díaz, el socialismo de vieja escuela: “Su obsesión es que el PSOE vuelva a ser el partido que más se parece a España, como en los primeros años del Gobierno de Felipe González, con quien habla y consulta a menudo. Su relación ha tenido altibajos, pero desde hace tiempo vuelve a ser fluida ya que ambos ven a Sánchez como un dirigente ajeno a la escuela histórica del PSOE y consideran que es esencial recuperar los valores que lo hicieron un partido ganador.”
 
Neste panorama geral, repito, Portugal parece ser a excepção de relevo, pelo menos enquanto se espera pelo resultado das eleições alemãs depois de uma mudança de liderança – sufragada por unanimidade no Congresso do SPD, o que nunca sucedera nos 143 anos de história do partido – que vai permitir a Martin Schulz desafiar a recondução de Angela Merkel como chanceler. Mesmo assim é útil recuperar dois artigos com alguns meses e que, abordando também esta crise, acrescentam mais alguns elementos de reflexão.
 
O primeiro é The centre left in Europe faces a stark choice, do comentador de política do Financial Times, Tony Barber, para quem é chega a altura de assumir que o eleitorado tradicional do centro-esquerda está hoje muito dividido: “It is nonsense to suggest that the moderate European left is a political carcass. But its electorate is deeply split. One side consists of less well-off voters with conservative social values who feel under siege from EU policies and globalisation. The other consists of affluent cosmopolitan liberals who like the EU and benefit from an open world. In Austria, France and elsewhere, it is looking like a futile task to keep these two groups together under one party roof. The pro-EU side therefore faces a choice. Either it retains its internationalist outlook as a matter of principle and the two camps part ways — or it demands tougher EU policies, above all on migration, conscious that nothing less will win back its lost voters.”
 
Já Sheri Berman, escrevendo no Washington Post, defende a ideia de que a crise do centro-esquerda não deve preocupar apenas a esquerda, pois mina a coesão social e política que tem caracterizado a Europa do pós-guerra. Em Europe’s traditional left is in a death spiral. Even if you don’t like the left, this is a problem escreve que “the rivalry between the center-left and center-right helped to build the foundations of popular democracy in Europe. Now that the center-left is in decline, it is difficult to build common ground with other established parties or to organize democratic politics in a reasonably stable way. In addition, the decline of the center-left has reflected and furthered the decline of the postwar order. This order generated unprecedented prosperity, diminished class conflict and undercut support for extremism. Europe’s center-left was an architect and mainstay of this order, and it is hard to imagine it being revived or a replacement for it being constructed without a strong center-left. And without broad-based agreements to reform European economies, welfare states, immigration and integration policies, and the European Union, Europe’s current mess is likely to be long-lasting indeed.”
 
E por hoje é tudo. Em Portugal tudo costuma acontecer de pois de ter acontecido noutras paragens, e quase ninguém reflecte sobre isso. Por isso, mesmo podendo parecer um problema longínquo, a crise do centro-esquerda europeu não é só coisa de outros. Mas esse é outro debate, que a seu tempo chegará. Para já, tenham bom descanso e melhores leituras. 

 
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