Lívia de Souza Vieira
Doutoranda no POSJOR e pesquisadora no objETHOS
Adelmo Genro Filho, um dos autores que mais se aproximou da concepção de uma teoria do jornalismo, dizia que este é uma forma de conhecimento cristalizado no singular, com relações indissociáveis ao particular e ao universal. Do ponto de vista epistemológico, ele propôs uma reversão da pirâmide invertida, enfatizando que o singular é a forma do jornalismo, e não seu conteúdo. Assim, faz uma crítica ao jornalismo apressado, que não se detém a uma dimensão explicativa, mas que se fragmenta em inúmeros pedaços desconectados.
São raros os jornalistas e veículos que tomam para si essa responsabilidade teórica. Por isso, quando algo grande acontece, especialmente no contexto do jornalismo brasileiro atual, é preciso demarcar. Este texto parte do posicionamento político de que, apesar do cinismo da imprensa brasileira, é possível atuar nas brechas. Foi o que fez o G1, num projeto digno de menção e reconhecimento.
O Monitor da Violência, lançado no último dia 25, é uma parceria do G1 com o Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Neste primeiro especial jornalístico do projeto, o G1 registrou todas as vítimas de crimes violentos ocorridos em uma semana no Brasil (de 21 a 27 de agosto). O resultado é aterrorizante: 1.195 mortes, postas em perspectiva pelo coordenador do G1 Dados, Thiago Reis, quando comparadas à marca de quase 60 mil homicídios anuais. Segundo a reportagem, “230 jornalistas do G1 espalhados pelo país apuraram e escreveram as histórias dos 1.195 mortos em 546 cidades – quase 10% do total de municípios brasileiros”.
Só com essas informações já podemos pontuar duas coisas: primeiro, o estabelecimento de uma parceria entre veículo jornalístico e instituições especializadas no assunto. Trata-se de uma tendência mundial e, neste caso, partiu da academia. No vídeo em que Thiago Reis e o coordenador de Produção Athos Sampaio contam os bastidores da investigação, eles enfatizam que o NEV procurou o G1 em maio com essa proposta, que foi aceita e também oferecida ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Em segundo lugar, a mobilização de uma equipe grande de jornalistas (230) também chama a atenção e mostra como o G1 pode aproveitar melhor a capilaridade que tem. Só com esse número de repórteres na rua é que foi possível contar as histórias dessas 1.195 pessoas – vejam aí a singularidade de que falava Adelmo Genro Filho. Thiago Reis sintetiza: “mais importante que números foi mostrar quem são essas vítimas, expor os rostos, contar as histórias, revelar as circunstâncias dessas mortes e tirar essas pessoas da invisibilidade”. Assim, vamos reiterar aqui o óbvio: para fazer bom jornalismo é preciso investimento em recursos humanos e em estrutura.
A falta de transparência e precisão dos órgãos oficiais fez com que o G1 criasse uma base de dados própria, em consonância com uma tendência que também se vê em grandes veículos pelo mundo. Os coordenadores explicam que tiveram que checar e cruzar dados de diversas fontes: boletins de ocorrência das polícias, relatórios de IMLs, entrevistas com delegados e com os familiares das vítimas, informações dos necrotérios das cidades. A partir daí, montaram uma força-tarefa na redação de São Paulo para criar uma tabela única com diversas categorizações, como idade, tipo de morte etc. Eles destacam essa dificuldade de obtenção dos dados:
“Boa parte das mortes, por exemplo, só foi registrada pelas equipes do G1 após a semana analisada. Isso porque vários casos foram conhecidos dias depois, quando os órgãos de segurança divulgaram seus balanços mensais. Várias secretarias, porém, se negaram, tanto durante a semana como posteriormente, a passar uma listagem das vítimas ou mesmo um dado consolidado. O trabalho mostra a falta de transparência de muitos governos estaduais. Mas não só: revela também uma total ausência de padronização e de um sistema nacional que abranja homicídios e demais mortes violentas”.
Exatamente por conta da parceria que estabeleceu, o G1 deu bastante peso à análise dos especialistas (foram duas matérias separadas, escritas pelos próprios experts). Em “Por dentro da engrenagem dos homicídios no Brasil”, Bruno Paes Manso, jornalista e pesquisador do NEV-USP, faz uma extensa e densa reflexão sobre os crimes e sobre a violência. Percebam como a análise de um jornalista-pesquisador enriqueceu a reportagem, associando os fatos a fenômenos sociológicos, que nos ajudam a entender como e por que chegamos a esse ponto:
“Essa crença compartilhada por indivíduos ou grupos de que os assassinatos fazem parte de seu repertório de escolhas cotidianas produz um efeito multiplicador de homicídios, presente nos bairros mais violentos do Brasil. Conforme os assassinatos se repetem e os autores continuam soltos, tiranias privadas vão se formando. Como as autoridades públicas não interferem, por incompetência ou falta de vontade política, outras pessoas ou grupos reagem e passam a matar para não ficarem sujeitos ao poder dos assassinos. Cada homicídio tem a capacidade de produzir vinganças, criando uma engrenagem que se retroalimenta”.
Já em “Faces da indiferença”, Samira Bueno e Renato Sérgio de Lima, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, fornecem dados atualizados a partir de uma metáfora muito interessante da queda de um avião Boeing 737 (técnica bastante utilizada pelo jornalismo para facilitar o entendimento quando lidamos com números). E concluem:
“Os assassinatos cometidos no Brasil na semana de 21 a 27 de agosto são equivalentes à queda de oito aviões deste tipo, sem, contudo, causar a mesma indignação e mobilização da sociedade”.
Por fim, destaco a contextualização que a reportagem faz, comparando os homicídios do Brasil com os de outros países do mundo. Isso dá uma dimensão comparativa muito interessante, e se aproxima do “universal” de Adelmo Genro Filho. Segundo ele, é quando explica os porquês que o jornalismo mostra todo o seu potencial revolucionário. O G1 fez exatamente isso, em “Mortes violentas no Brasil: perguntas e respostas”.
O resultado a que a investigação chegou traz questões importantíssimas, como o aumento da violência no Ceará – que registrou o maior número de mortes na semana -, vítimas que custam menos de R$ 100 e mulheres como alvo de violência por parte dos parceiros. Só isso já rende outras investigações e mostra como o jornalismo, quando feito de forma séria, com muitos e bons repórteres, é fundamental para o entendimento do tempo presente.
Fonte: OBJETHOS
Referências:
GENRO FILHO, Adelmo. O Segredo da Pirâmide: Para uma teoria marxista do jornalismo. Florianópolis: Insular, 2012.
PONTES, Felipe Simão. Adelmo Genro Filho e o contexto de produção de “O Segredo da Pirâmide”: detalhes históricos de uma teoria do jornalismo. In 10. Encontro Nacional de História da Mídia (Alcar) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), 2015. Disponível em: http://bit.ly/2xM2aJW
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