Ocupados que temos andado com o drama dos incêndios e com a crise catalã temos deixado, aqui no Macroscópio, alguns temas importantes para trás e alguns textos relevantes sem a devida atenção. Vou por isso procurar recuperar alguns deles, a começar pelos desenvolvimentos mais recentes da Operação Marquês, cujo despacho de acusação (quatro mil páginas) foi conhecido este mês.
Na altura notei que, afinal, a montanha não tinha parido um rato, sublinhando que “O que o despacho de acusação nos mostra é que este não é um mero caso de Justiça, é muito mais do que isso. Mostra até onde chegou a concentração de poder e a sofreguidão do duopólio Sócrates-Salgado.” Agora que todas essas páginas vão sendo digeridas pelos órgãos de informação, há muito mais que vamos sabendo, e por isso justifica-se voltar ao tema, desta vez dando atenção especial a um só ponto: a relação do antigo primeiro-ministro com a comunicação. Três textos merecem refer~encia especial.
Primeiro o especial do Observador Como Sócrates tentou controlar a comunicação social. Nele Sónia Simões recorda seis entre muitas histórias:
- O Grupo Lena e o negócio dos jornais;
- Comprar um jornal nacional (em concreto o Público, de que eu director na altura);
- A fundação do jornal i;
- A tentativa de compra da TVI (ao tempo do Jornal de Sexta de Manuel Moura Guedes);
- A presença no grupo que detém o DN, o JN e a TSF;
- Como Sócrates tentou desmentir o Correio da Manhã.
Como se escreve a abrir este dossier, “Era quase uma “obsessão”. Quem lidou de perto com José Sócrates descreve assim a sua relação com a imprensa. O ex-primeiro-ministro preocupava-se com as notícias que saíam sobre si e sobre o impacto que podiam ter na opinião pública. Por causa de pormenores, ligava, irado, a jornalistas. De tal forma que, segundo a acusação do Ministério Público, terá engendrado um plano para controlar os jornais através do Grupo Lena e do seu alegado testa de ferro, Carlos Santos Silva, começando pela aquisição de jornais regionais até à criação de um jornal nacional.”
No Público São José Almeida põe o dedo em várias feridas numa coluna de opinião: O padrão era conhecido. Depois de sublinhar que “O relatado na acusação não é ficção. É a sinistra realidade de um país sujeito à apropriação das instituições e do poder democrático por uma quadrilha de ladrões.”, a jornalista glosa várias vezes a ideia de que o padrão de actuação de José Sócrates era bem conhecido, pois muitos “casos” houve antes daqueles que acabariam por desembocar na Operação Marquês. Contudo... “Quase todos se calaram. Quase todos fingiram não ver. Quase todos acharam que quem noticiava era invejoso, rancoroso, inimigo político. Quase todos foram coniventes — fruto, possivelmente, de uma total ausência de consciência e de cultura cívica dos portugueses que torna a sociedade (e as suas elites) complacente com comportamentos ilícitos, com a corrupção.” Houve excepções, não muitas, mas a autora recorda-as.
Por fim, também no Público, o advogado Francisco Teixeira da Mota reflectiu sobre A Operação Marquês e o “jornalismo de sarjeta”onde, depois de recordar que “Todos sabemos que o ex-primeiro ministro José Sócrates sempre conviveu mal com a comunicação social”, confessou desconhecer “a contabilidade exacta mas Sócrates meteu processos em tribunal contra tudo e todos. Processos crime e processos cíveis. Processos contra jornais, jornalistas, colunistas, televisões, revistas, bloggers. Processos por causa da licenciatura, por causa do Freeport, por causa da Operação Marquês. Atirou sistematicamente contra tudo o que mexia.” Entre todos os alvos, destaca porém um: “A investigação do Correio da Manhã com a deslocação de jornalistas a Paris seguia um caminho que se veio a revelar coincidente com o da investigação criminal: os indiciados gastos excessivos de Sócrates. Chama-se a isto jornalismo.” A seu tempo, como também lembra o advogado, Augusto Santos Silva, actual ministro dos Negócios Estrangeiros, chamava a todos os investigavam e denunciavam promotores de um “jornalismo de sarjeta”.
E como recordar é sempre importante, recordemos algo que se passou há muito mais tempo mas cujo 500º aniversário se celebra precisamente amanhã, 31 de Outubro. Refiro-me à publicação das 95 teses de Martinho Lutero, que marcaram o início da Reforma Protestante. Há um ano que temos vindo a assistir a diferentes comemorações, sendo significativo que o Papa Francisco se tenha até associado ao início delas numa visita à Suécia. Isso mesmo na altura foi comentado num Conversas à Quinta de há precisamente um ano, um programa onde Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto reflectiram sobre o como depois de Lutero o Cristianismo nunca mais foi igual, até porque o cisma não foi apenas religioso. Gostei por isso de rever Lutero, 500 anos depois da Reforma. Chegou o tempo da reconciliação?, penso que os leitores desta newsletter também vão gostar.
Quanto a artigos, escolhi dois algo surpreendentes, um pela história que conta, outro pelo país onde foi publicado. O primeiro saiu no El Pais e fala-nos de La Biblia del Oso y la España de la Reforma que pudo ser. De facto, “En la Sevilla del siglo XVI un monasterio católico practicó en secreto el protestantismo”. Mas além desta história que era para mim desconhecida, o trabalho também recorda “Casiodoro de Reina y otros compañeros -como Cipriano de Valera o Antonio del Corro, uno de los primeros britanistas- se establecieron en la Europa reformada. En esa Europa protestante, Casiodoro de Reina y Cipriano de Valera más tarde, con la versión calvinista de la Biblia del Oso, protagonizan la gran aventura de la Reforma española. Una historia que no solo apela a la religión sino a un episodio de la Historia de la Cultura europea. La historia de unos españoles olvidados y perseguidos por su humanismo heterodoxo, por pensar y atreverse a leer lo prohibido y seguir el espíritu de su tiempo: el Renacimiento clásico en la época de las intolerancias religiosas.”
O outro texto encontrei-o num diário israelita, o Haaretz e tem um título quase provocador: The 500th Anniversary of the Protestant Reformation: When Faith Was Privatized. A tesa da autora, Tzvia Greenfield, é que “Luther brought about not only the privatization of religious belief, but also the privatization of economic activity. Today we call it capitalismo.” Vale a pena desenvolver um pouco a sua ideia: “As sociologist Max Weber noted in his revolutionary work, “The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism,” Luther’s assertion that the individual, his faith and personal decisions are at the center of social reality led millions of followers to the realization that they must also take their economic fate into their own hands. Apart from obeying the law and one’s personal conscience, there is no place for intermediary institutions to tell people what is good for them and how they should behave. This radical position, which shaped the modern theory of personal rights, today poses a philosophical and historic challenge to the currents that champion the common good as the most important social principle. In the ongoing dispute between these two opposing viewpoints, it’s important to remember that both of them derive from the struggle for freedom and the human spirit.”
Antes de passar a duas sugestões finais para a sempre presente discussão sobre o futuro da Europa, deixem-me chamar-vos a atenção para mais dois especiais do Observador que vos podem ter passado despercebidos e que bem merecem a vossa atenção.
O primeiro é uma reportagem de João Francisco Gomes e João Porfírio, que andaram Com Ricardo Araújo Pereira num país em cinzas. “Não é muito, mas se calhar este espetáculo já deu para arranjar um telhado ou dois”. O que nos relatam é como o comediante e cronista anda a realizar espectáculos para angariar dinheiro para ajudar as vítimas dos incêndios, algo que se sentiu como que obrigado a fazer: "O país é muito pequeno e toda a gente conhece alguém ou tem um amigo que é de uma zona afetada ou, de uma forma ou de outra, ficou preocupada com alguém. Eu dei por mim a ligar a amigos e a perguntar se estava tudo bem com eles e com as famílias várias vezes"
O outro trabalho é uma interessante recolha de depoimentos realizada por Marta Leite Ferreira: Como era o sexo nos tempos das nossas avós? Elas contaram-nos.A jornalista falou de forma muito franca com onze mulheres diferentes sobre o namoro, sobre como conheceram os maridos, sobre a perda da virgindade, sobre o sexo e o prazer e sobre a falta de sexo e do prazer. Eis os nomes e idades de quem deu o seu testemunho: Maria do Rosário Ferreira, 77 anos; Délia Cadete, 67 anos; Rosa Sousa, 87 anos; Rita de Jesus, 79 anos; Teresa Matias, 86 anos; Alzira Sousa, 92 anos; Luísa Francisco, 94 anos; Leonor Nogueira, 69 anos; Piedade Neves, 84 anos; Felisberta Marques, 79 anos; e Maria do Carmo Costa, 70 anos. O mínimo que vos posso dizer é que há testemunhos verdadeiramente surpreendentes.
Sobre a Europa duas referências para ajudar a pensar. What Macron Means for Europe: 'How Much Will the Germans Have to Pay?' é um ensaio de Jürgen Habermas publicado na Spiegel, um texto muito europeísta e, também, muito crítico da sua Alemanha, mas que começa com um relato que ajuda a explicar muita coisa, apesar do autor achar detestável a situação que retrata: “For Walter Benjamin, Paris was the capital of Europe. For Robert Menasse, the Austrian author with a penchant for both irony and defiance, it's Brussels' task to prove itself worthy of replacing it. That, though, is a fragile hope and Menasse - recently awarded the Deutscher Buchpreis, Germany's most prestigious literary award - tempered expectations in an interview with Berlin-based daily Die Tageszeitung by relating a telling anecdote about an evening with a German correspondent in a smoky café in Brussels frequented by journalists. He was sitting there when the journalist received his latest Brussels dispatch back from his Frankfurt-based editor with the injunction: "Your writing is too convoluted. Just write how much the Germans will again have to pay." It would be hard to find a more succinct enunciation of the limited interest shown by German politicians, business leaders and journalists when it comes to shaping a politically effective Europe.”
Já Where Europe went wrong é uma apresentação, no Político, do livro “Fractured Continent: Europe’s crises and the fate of the West,”, uma obra que Paul Taylor considera ser “A timely warning for both sides of the Atlantic”. Nela Drozdiak, um jornalista que trabalhou muitos anos em Bruxelas para o Washington Post, “takes readers on a tour of European capitals, diagnosing the fractures he says still threaten to pull the EU apart”. Em concreto “his dark tableau is a usefully unflattering mirror for any Europeans tempted by complacency following the defeat of anti-EU populists in France and the Netherlands earlier this year. The surge of support for the anti-immigration far right in Germany and Austria underlines the persistent danger of centrifugal forces tearing at the fabric of European integration.”
E por aqui me fico por hoje, desejando-vos, como sempre, boas leituras e bom descanso.
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