quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Macroscópio – Um dia em que temos de dar a palavra aos historiadores (mas não só)

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
No último Macroscópio falei-vos do centenário da Revolução de Outubro, mas na verdade é hoje, 7 de Novembro, que se assinala a tomada do poder pelos bolcheviques, o seu assalto ao Palácio de Inverno, destituindo o Governo Provisório formado por socialistas moderados (no calendário então em vigor na Rússia, o calendário juliano, estávamos a 25 de Outubro). Vale por isso a pena revisitar o tema. Até porque há alguns textos de grandes historiadores que não posso deixar passar em claro. Assim como uma originalidade portuguesa.
 
Comecemos pelos historiadores e por Anne Applebaum, também jornalista e cronista, autora de obras como Gulag – Uma Históriae, mais recentemente, Red Famine: Stalin's War on Ukraine. No Washington Post publicou um texto muito interessante: 100 years later, Bolshevism is back. And we should be worried. Depois de resumir a forma como Lenine orquestrou a tomada do poder a partir do seu exílio em Zurique e logo após a sua chegada a Petrogrado com a ajuda dos alemães, Applebaum recorda como a sua endoutrinação não persuadiu, longe disso, a maioria dos russos, nem sequer a maioria dos membros do soviete da capital do império russo, “But they did persuade a fanatical and devoted minority, one that would kill for the cause. And in the political chaos that followed the czar’s abdication, in a city that was paralyzed by food shortages, distracted by rumors and haunted by an unpopular war, a fanatical and devoted minority proved sufficient.”
 
O que podemos aprender com isto? Ao menos a saber ler algumas tendências detectáveis no presente. Depois de notar que “History repeats itself and so do ideas, but never in exactly the same way. Bolshevik thinking in 2017 does not sound exactly the way it sounded in 1917”, defende que, curiosamente, os revolucionários mais perigosos de hoje não são os neo-marxistas, mas outros: “In truth, the most influential contemporary Bolsheviks — the people who began, like Lenin and Trotsky, on the extremist fringes of political life and who are now in positions of power and real influence in several Western countries — come from a different political tradition altogether”, Em concreto, pessoas como Donald Trump, Viktor Orban, Nigel Farage, Marine Le Pen e Jaroslaw Kaczynski, que define assim: “the neo-Bolsheviks of the new right or alt-right do not want to conserve or to preserve what exists. They are not Burkeans but radicals who want to overthrow existing institutions. Instead of the false and misleading vision of the future offered by Lenin and Trotsky, they offer a false and misleading vision of the past.”
 
O outro texto de um grande historiador foi, neste caso Simon Sebag Montefiore, autor de uma celebrada biografia de Estaline em dois volumes, saiu no New York Times e é mais especulativo, partindo de uma pergunta clássica que os historiadores gostam sempre de fazer: What If the Russian Revolution Had Never Happened? Montefiore descreve como, na Revolução de Outubro e na consolidação do poder soviético “It all depended on Lenin. He was very nearly overthrown in a coup by rebellious coalition partners but he made his own luck, though, by a combination of ideological passion, ruthless pragmatism, unchecked bloodletting and the will to establish a dictatorship. And sometimes, he just got plain lucky.”. Só que Lenine sobreviveu os anos suficientes para vencer a guerra civil e tornar a Rússia Soviética uma das realidades mais incontornáveis do século XX. É aí que Montefiore, na linha de muitos outros historiadores, a coloca na origem de fenómenos políticos que levaram a outros totalitarismos e a grandes tragédias. A começar por Hitler: “Without the Russian Revolution of 1917, Hitler would likely have ended up painting postcards in one of the same flophouses where he started. No Lenin, no Hitler — and the 20th century becomes unimaginable. Indeed, the very geography of our imagination becomes unimaginable.” Imagino que alguns leitores se surpreendam com esta conjectura – “no Lenin, no Hitler” – mas garanto-vos que por isso vale mesmo a pena ler Montefiore.
 
Se estas são as duas principais referências que tinha para hoje, não posso deixar de referir a forma como o tema foi tratado na imprensa portuguesa, chamando a atenção para alguns trabalhos antes de vos falar das análises e opiniões. Eis dois exemplos que me parecem dignos de nota:
  • De Petrogrado a Kiev: a história da revolução bolchevique é um ensaio do historiador Fernando Martins editado no Observador. Dividido em quatro pontos (1. Vésperas de Outubro: as diferentes tácticas de uma estratégia para a tomada do poder; 2. Vésperas de Outubro. Sensibilidades e Programas; 3. A Revolução Bolchevique como Guerra Civil feita à imagem de Lénine; e 4. Sobre a Natureza Moral do Bolchevismo e da História da Revolução de Outubro) trata-se de um texto que faz uma boa recapitulação do processo histórico que terminou com a revolução. Sem tibiezas: no terceiro ponto recorda como a abertura dos arquivos da ex-União Soviética, depois da queda do comunismo, permitiu conhecer textos de Lénine que nunca deveriam ter sido divulgados e que contrastam vivamente como registo supostamente “idealista” dos coligidos nas “Obras Completas” oficiais – “Muitos dos textos da autoria de Lénine que sobreviveram, e cuja publicação nunca esteve prevista, revelam quanto era falsa a sua imagem divulgada oficialmente. Ou seja, a de um homem idealista que apenas recorria à fraude e à violência quando pressionado por acontecimentos que não controlava. De facto, a documentação revela aquilo que nas palavras de Richard Pipes não passava de “um cínico cruel que de muitas maneiras constituiu um modelo para Estaline” e para outros dirigentes bolcheviques. Não admira por isso que durante décadas se tenha impedido o acesso à documentação que ilustra o que pensava e como agia Lénine.”
  • O dia mais longo da curta memória de Petrogrado, de Manuel Carvalho, um jornalista do Público que nos últimos dias tem publicado vários trabalhos fruto de uma reportagem em várias cidades russas, incluindo Moscovo e Volvogrado (a antiga Estalinegrado onde se travou uma das batalhas que decidiu a II Guerra Mundial). Eis uma parte do que ele nos reporta da antiga Petrogrado, hoje São Petersburgo: “Konstantin Mogilevskiy “afirma que a Revolução é mais uma etapa do processo de destruição do poder antigo”. Mas é uma etapa feita por um processo que, não sendo novo (a Revolução Francesa ou a Comuna de Paris já o tinham tentado), desta vez provou ser suficiente duro para resistir. As suas marcas existem hoje ainda nas ideias, nas ideologias revolucionárias que subsistem, na arte ou na História. Particularmente na de São Petersburgo. A cidade que se quis afastar da revolução precisa talvez de outra revolução para apagar tantas estátuas, tanta toponímia, tantas estrelas incrustadas nas casas, nas pontes ou nas estações de metro.”

 
Quanto aos textos de opinião que hoje assinalaram a passagem do centenário o meu destaque não pode deixar de ir para o de Jerónimo de Sousa, no Diário de Notícias. De facto deve haver poucos líderes políticos em todo o mundo que se continuem a reivindicar da herança de uma revolução marcada por tantas tragédias, mas o nosso PCP é o nosso PCP. Em Revolução de Outubro: Ideais e valores para o nosso tempo o secretário-geral dos comunistas portugueses sustenta que “Digam o que disserem os detractores da Revolução de Outubro ao serviço do grande capital referindo-se a ela como se o seu legado não passasse de um amontoado de destroços e a sua essência estivesse associada ao caos, desordem, conflitos violentos, crimes, erros trágicos, sonho, utopia ou terror, o século XX fica assinalado para sempre pela Revolução de Outubro. Por muito que lhes custe, a Revolução de Outubro é (e continuará a ser) o acontecimento maior da história da humanidade, que inaugurou uma nova época, a época da passagem do capitalismo ao socialismo.”
 
José Milhazes, que foi viver jovem (e como jovem comunista) para a União Soviética e lá assistiu à derrocada do sistema (uma experiência que recordou em As Minhas Aventuras no País dos Sovietes – A União Soviética tal como eu a vivi), é que não deixou passar em claro este texto, tendo-lhe respondido no Observador. Num texto em que cita muitas passagens da prosa de Jerónimo de Sousa, Milhazes procura rebatê-las ponto por ponto. Por exemplo: “Primeiro, a revolução comunista não foi feita contra o “poder autocrático e repressivo dos czares e da mais alta nobreza”, mas contra um Governo Provisório que mantinha na Rússia um sistema pluripartidário e se preparava para dar uma Constituição democrática ao país”. Segundo, não foi o proletariado russo que tomou o poder, mas um pequeno grupo de bolcheviques que só na cabeça de Jerónimo de Sousa queriam criar um regime sem exploração do homem pelo homem. O dirigente comunista não deve conhecer a velha anedota soviética: “Qual a diferença entre o capitalismo e o socialismo? O capitalismo é a exploração do homem pelo homem, enquanto que o socialismo é exactamente o contrário”.
 
Ainda no que se refere ao textos de análise e opinião editados em Portugal, mais duas referências incontornáveis, ambas do Observador:
  • O verdadeiro encanto do comunismo soviético, de Rui Ramos, onde o historiador assinala que “A pluralidade, a discussão, a alternância, o império da lei eram naturalmente incompatíveis com a sua concepção de um Estado absoluto e “científico”. E foi o encanto desse poder e a ilusão das suas possibilidades que desde 1917 predispuseram tanta gente a fechar os olhos à verdade e a deixar-se “enganar”. Não nos enganemos nós, portanto, sobre o verdadeiro encanto do comunismo soviético, porque se o objecto desse encanto morreu, não morreu a predisposição da humanidade para se deixar encantar.”
  • A fraude da revolução soviética, de João Carlos Espada, onde o cientista político nota que “Ao condenarem o que chamaram de ‘moralismo burgês’ do socialismo democrático e da social-democracia, Marx e Engels deram alegada justificação ‘científica’ à ausência de moral em política. A revolução comunista, disseram eles, não deve ser apoiada por razões morais, mas por razões científicas — porque o comunismo é o futuro inexorável. (...) Esta foi na verdade a premissa não dita que o chamado ‘socialismo científico’ adoptou — a premissa do culto do poder sem restrições morais (que Nietzsche também espalhou, entre outras clientelas).”
 

Termino esta newsletter com uma pequeno nota de rodapé, um detalhe, mas que vem bem a propósito da imagem escolhida para ilustrar o texto de Jerónimo de Sousa no DN, a de Yuri Gagarine, o primeiro cosmonauta. Acontece que, da mitologia criada em torno dos sucessos na exploração espacial soviética, há uma cadela que ocupa um lugar de relevo: Laika, que foi o primeiro ser vivo ser colocado em órbita. Ora, como se escreve na New Yorker em Remembering Laika, Space Dog and Soviet Hero, também esta história tem um lado sombrio: “In 2002, forty-five years after the fact, Russian scientists revealed that she had died, probably in agony, after only a few hours in orbit. In the rush to put another satellite into space, the Soviet engineers had not had time to test Sputnik 2’s cooling system properly; the capsule had overheated. It remained in orbit for five months with Laika inside, then plunged into the atmosphere and burned up over the Caribbean, a space coffin turned shooting star. Turkina quotes one of the scientists assigned to Laika’s program: “The more time passes, the more I’m sorry about it. We shouldn’t have done it. We did not learn enough from the mission to justify the death of the dog.
 
E julgo que chega de Revolução de Outubro, pelo menos por agora. Ficam reflexões interessantes, boas sínteses históricas e alguns avisos – no fundo aquilo para que serve o Macroscópio. Tenham bom descanso e boas leituras. 

 
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