Todos sabemos como é pouco provável sair-nos o Euromilhões – a probabilidade de isso acontecer é de apenas 0,00000086%, ou seja, de um em 116 milhões. Mas hoje os acusados no Processo Marquês festejaram como se lhes tivesse saído o Euromilhões. Se tiver achado estranho talvez compreenda um pouco melhor o porquê se ficar a conhecer um pouco melhor o perfil do juiz que vai decidir se os seus casos vão mesmo a julgamento – é por isso que vale a pena ler o trabalho de Luís Rosa, Sara Antunes Oliveira e Sónia Simões Quem é o juiz que vai decidir o futuro de Sócrates, publicado no Observador. A diferença para o Euromilhões é que, neste caso, eles havia 50% de probabilidade de ser um juiz com este perfil a ser o escolhido. Por isso, se eles festejam, eu inquieto-me. E nem espero ser compensado pelo verdadeiro Euromilhões porque esqueci-me de jogar.
Mas adiante, que não é este o tema do Macroscópio de hoje. Nele vamos olhar para Ocidente – para o espaço Atlântico e para os Estados Unidos – e também para o que fica nas nossas costas quando viramos a cara ao pôr-do-sol, mais precisamente uma Europa em marcha cada vez mais desordenada. Em condições normais estes deviam ser dias em que celebraríamos a aproximação entre os Estados Unidos e a Europa (já explico porquê) e nos empenharíamos em reforçá-la face aos desafios colocados pela agressividade da Rússia e pelo crescente poder da China. Mas não é isso que está a suceder.
Recuemos 100 anos. A 26 de Setembro de 1918. Foi nesse dia que 1,2 milhões de soldados americanos se lançaram na Ofensiva Meuse-Argonne, a derradeira ofensiva aliada na I Guerra Mundial que levaria à capitulação alemã mês e meio depois, a 11 de Novembro. Nessa batalha morreriam 26,277 soldados americanos, mais do que em qualquer outra batalha da sua história militar. Mas se este aniversário já seria um bom pretexto para celebrar a aliança transatlântica, sucede que nessa batalha as tropas dos Estados Unidos foram comandadas pelo general John J. Pershing, um nome que dirá pouco à maioria dos meus leitores mas que está associado a outro momento critico das relações entre os aliados: há precisamente 35 anos começaram a ser instalados na então República Federal da Alemanha mísseis balísticos norte-americanos destinados a contrabalançar a ameaça dos mísseis russos presentes do outro lado da “cortina de ferro”. Esses mísseis chamavam-se Pershing II, precisamente em homenagem ao general da I Guerra Mundial, sendo que em Outubro de 1983 decorreram na Alemanha as maiores manifestações pacifistas de sempre, daquelas em que se gritava “better red than dead” (“antes vermelhos do que mortos”). Também a batalha dos chamados “euromísseis” foi uma das últimas da Guerra Fria na Europa, guerra que terminaria, como sabemos, sem termos ficado nem vermelhos, nem mortos.
Fiz esta longa evocação histórica para introduzir o texto que Timothy Garton Ash escreveu esta semana, It’s not just Trump. Much of America has turned its back on Europe. Nele o autor não nos fala do tema do dia nos Estados Unidos – a lamentável sessão que teve lugar no Senado em torno da nomeação de Brett Kavanaugh para o Supremo Tribunal, um processo de saem feridas todas as principais instituições da democracia americana – mas de como a “deriva continental” para longe da Europa não é algo que suceda apenas por causa de Trump estar na Presidência. O texto, onde também foi buscar a evocação da batalha de Meuse-Argonne, tem muitos pontos interessantes e uma conclusão central: “A former US secretary of state tells me just how little interest audiences across the country now express in foreign policy. Anyone who experiences American airports, highways, trains or schools can easily understand why Americans would now want to focus more on improving them rather than airstrips and schools in Afghanistan or Iraq. America First is not just a Trump slogan. It is a national mood, to which even the most internationalist president would have to adapt. Trump is awful, but in this respect, he is as much symptom as cause. The problem of transatlantic divergence was there before Trump, has underlying causes deeper than Trump, and will still be with us after Trump.”
Se pensarmos um bocadinho, talvez na Europa não sejamos muito diferentes – a política está de novo a ser cada vez mais local, e boa parte dos problemas que a Europa enfrenta derivam de nas suas lideranças muitas vezes isso não ser entendido. E como não são poucos esses problemas, achei que valia a pena deixar-vos aqui alguns artigos que alertam para o que pode estar para chegar.
Começo, como era quase inevitável, pelo Reino Unido, onde esta semana esteve reunida a conferência anual dos trabalhistas, de onde estes saíram entusiasmados, até porque os conservadores continuam profundamente divididos sobre o Brexit. Acontece porém que, quando Bruxelas e Washington olham para Londres e vêem que a possibilidade de Jeremy Corbyn se tornar um dia primeiro-ministro do Reino Unido assustam-se. O Politico, sempre uma boa ponte para o que se pensa no centro da União Europeia e na capital dos Estados Unidos, não esteve com meias palavras: intitulou Cuba on the Thamesa sua crónica sobre a conferência trabalhista. É que, como aí se escreve, “Corbyn’s fate greatly depends on the unfolding Brexit drama, expected to climax in the coming weeks as the U.K. pushes for a deal before its scheduled exit in March 2019. But the impact of a Corbyn government, should he assume the reins of power, could be much more significant.” Isto porque com Corbyn tudo mudaria na política interna e externa do Reino Unido. Internamente renacionalizaria dezenas de empresas e aumentaria dramaticamente os impostos, externamente acabaria com a “relação especial” com os Estados Unidos: “Prime Minister Corbyn would present a major challenge for U.S. foreign policy. A Corbyn government, even Labour MPs admit, would all-but end the “special” security and military relationship between the U.S. and its pre-eminent ally. One of Corbyn’s most senior advisers, Andrew Murray, gave a glimpse of the direction a Corbyn government would take in a pre-conference article for the New Statesman. Murray, a committed Marxist and defender of the Soviet Union, said Corbyn’s foreign policy radicalism is anathema to “the establishment” in the U.K. and elsewhere.”
Mas se a incerteza chegou a este ponto no Reino Unido, não é verdade que ao menos temos Macron em França, perguntarão os mais optimistas? Sim, é verdade. Só que também para Macron os dias não estão fáceis. Primeiro, nunca os seus níveis de aprovação estiveram tão em baixo. Depois, sucedem-se os problemas na sua equipa ministerial. A New Statesman faz um balanço em Macron’s black September: how the French president fell to Earth, onde se escreve, por exemplo: “The French are increasingly impatient for visible signs that the reforms Macron promised during his 2017 election campaign are being delivered and bearing fruit. As it is, Macron appears to the French public as arrogant and detached from reality, an image not helped when the president recently snapped at an unemployed gardener that he had only “to cross the street to get a job”. Para além destas dificuldades na frente interna, os sonhos europeus de Macron têm vinco não só a chocar com a realidade, como o projecto de construir noutros países movimentos à sua imagem se revelam verdadeiras quimeras, como nos conta o Politico em EU party politics out of step with Macron’s En Marche.
Continuando sem sair dos grandes países europeus, e antes de chegarmos ao maior de todos, a Itália vive as dores de um orçamento que tem de conciliar as promessas populistas com as regras de Bruxelas. Ora, como se conta também no Politico, em Italy’s populism in fiscal handcuffs, a verdade é que “Delivering on campaign pledges without increasing public spending is close to impossible”. A solução parece ser acrescentar mais regulação a uma economia que já tem regulação a mais e, também por isso, crescimento a menos. Ou então incumprir, culpando a Europa, um cenário que Alberto Mingardi, director-geral do Instituto Bruno Leoni de Milão considera criar uma situação em que Italy’s not the new Greece. It’s the new Argentina.Sendo que “It’s possible that the budget unveiled this week reflects an underlying acceptance among Italy’s political and business classes that the country is simply incapable of reform — that Italy’s descent into a Latin American-style struggling economy is now inevitable.”
E depois há a Alemanha, onde o governo de Angela Merkel vai de crise em crise, arrastando-se à espera de um fim que só não se sabe quando vai chegar. Esta semana foi a própria chanceler que foi humilhada no seu partido, que não escolheu para líder parlamentar o candidato que ela apoiava. No entanto, mesmo antes disso acontecer, já o director do Handelsblatt Internacional, Andreas Kluth, escrevia desassombradamente: Put this coalition out of its misery. No seu lugar sugeria que se formasse um governo minoritário, já que “Germany’s governing coalition is not “grand” but pathetic. Why not let it collapse and try minority government? Germans have no reason to fear it.” Passada a votação e confirmada a derrota da chanceler às mãos dos seus próprios deputados, o Telegraph de Londres sentenciava-a:This really is the beginning of the end for Merkel - but it will be a slow and painful departure for the 'Queen of Europe'. O “slow” e o “painful” ainda é o mais preocupante de tudo. Muito interessante e bem argumentado é sobretudo o texto de Konstantin Richter Time for Angela Merkel to go. Eis uma passagem: “Today, l’état, c’est Merkel. But for how long? She has made the same mistake as her predecessors and overestimated her own importance. Konrad Adenauer and Helmut Kohl, two of Germany’s most prominent post-war chancellors, believed in the end “that anyone who had run the state as excellently as they had done should be identical with the state itself,” wrote biographer Kurbjuweit. “They didn’t realize there were better candidates by then, and they missed the exit.”
A fechar, notas sobre dois países mais pequenos, notas mais fora da caixa e do pensamento dominante em Bruxelas, mas a merecer uma reflexão:
- Suécia: What does an illegal migrant have to do to get deported from Sweden?É a desafiadora pergunta de Douglas Murray na Spectator, onde ele nos relata como um palestiniano que entrara ilegalmente no país e aí incendiou uma sinagoga acabou por não ser deportado. Uma história reveladora que ajuda a perceber a subida do partido anti-imigração nas recentes eleições.
- Polónia: Polish Democracy Is under Siege—by the European Union, de Salvatore Babones na The National Interest, é um artigo que contesta a ideia de que a maioria no poder na Polónia não pode alterar a forma como nomeia os juízes dos seus tribunais superiores, usando o seguinte argumento: “Poland only regained full independence in 1991, and its current constitution was adopted in 1997. In American Constitutional time, that would put Poland at right around 1810. Democracy is messy, and it takes time to mature. Poland’s democracy can handle this issue on its own. It doesn’t need Big Brother to make a decision for it. There’s an election due in 2019, and if the Polish people don't like what their government has done, then the Polish people can take their vengeance. But if the Polish people approve of what’s being done in their name, then what business is it of Juncker and Co. to interfere?”
E por hoje é tudo. Tenham um bom fim-de-semana, descansem, leiam, e aproveitem este Outono com tempo de Verão. Vale a pena, garanto.
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