De repente, como se viesse do nada, o Bloco de Esquerda apresentou-se na sua Convenção do passado fim-de-semana com ambições de ir para o governo e até com uma lista de ministeriáveis. O Expresso apresentou-os como “a nova geração” e o Observador deu mesmo nomes às pastas que ambicionam. Mesmo não devendo haver grande surpresa com esta ambição bloquista – há um ano eu já escrevera sobre um BE “mortinho por ter um ministro” – o jogo desta Convenção talvez tenha ido um pouco longe demais, até pela evidente naivetédas declarações sobre o que “aprenderam” da realidade da máquina do Estado nestes anos de geringonça. Seja lá como for resultou desta Convenção uma questão: será que o partido de protesto já é mesmo um partido institucional? Ou, sendo mais directo, será que o partido revolucionário já é sinceramente um partido de governo?
Essa foi a imagem que os seus líderes procuram passar nos seus discursos e entrevistas, conseguindo que muitas das análises das televisões se ficassem pela avaliação da validade eleitoral desta estratégia, isto é, por saber se este é ou não o melhor caminho para o partido de Catarina Martins conseguir evitar uma maioria absoluta do PS que o poderia afastar das margens de um poder cujo sabor claramente apreciou. E mesmo que os discursos tenham evitado as “arestas” mais radicais do programa do Bloco, que as alas mais radicais do partido tenham tido votações inexpressivas, o que é que se escreve na moção da direcção, aprovada por larga maioria? Em um bloco mais forte para mudar o país recorda-se que, na frente europeia, o Bloco “reforça o campo da rutura com os tratados”, sendo até mais radical que uma parte do Partido da Esquerda Europeia, pois continua a não aceitar as decisões do governo Syriza e a recusar o caminho por ele seguido. Mais adiante esclarece-se que, na plataforma eleitoral, o BE “proporá a reestruturação da dívida pública e a nacionalização dos setores estratégicos”, já que considera que “sem reverter as privatizações dos setores estratégicos da economia, Portugal continuará a assistir à sangria dos seus recursos”. Em concreto estamos a falar de reverter privatização de empresas como a EDP, os CTT ou até a PT. Isto sem esquecer que o Bloco continua a ser contra a União Bancária, penosamente negociada nos últimos anos e destinada a debelar novas crises, por considerar que esta “retira a Portugal a capacidade de decidir sobre a banca”.
É difícil ver como um partido se pode manter fiel a todos estes princípios e fazer parte de um governo sem, perdoem-me a ironia, cometer o pecado de sirizarprogramática e ideologicamente, e foi isso mesmo que alguns comentadores mais atentos fizeram questão de sublinhar, sobretudo no Observador e no Eco. Dois exemplos:
- Eu próprio, no Observador, no apanhado 8 opiniões rápidas sobre o futuro do Bloco, fiz uma comparação entre Os Verdes alemães e o Bloco, para sugerir que o caminho para a “institucionalização” pode não ser assim tão fácil: “Permitam-me muito cepticismo e algum cinismo. A origem desses dois partidos é muito diferente, mesmo tendo um ou dois pontos comuns. A matriz feminista e ecologista dos Verdes sempre os colocou mais perto do liberalismo do que a matriz trostkista/maoista do bloco. É por isso que a “agenda” dos “ministeriáveis” do Bloco, falemos de saúde, de educação, de segurança social, de habitação ou de energia, é o mais estatista e anti-capitalista que é possível ser sem assustar a sua base eleitoral burguesa da classe média. São esses os instintos do Bloco, sempre foi essa a cartilha de Louçã e Fazenda e continua a ser essa a doutrina que ensinam nos acampamentos de Verão.”
- António Costa, no Eco, em Um Bloco de ‘fake news’, também teve o cuidado de ler as propostas políticas e não esquecer o seu significado: “Mas o Bloco de Esquerda mudou? Na substância, nem uma linha. Continua a querer o controlo público da banca e da energia, por exemplo. É uma das propostas na agenda “reformista” ou, melhor, “progressista”. E se tirou do discurso público a reestruturação da dívida, foi por puras razões de tática política.” Mais adiante, conclui: “Foi “normalizado”, “normalizou” o discurso, mas o radicalismo e extremismo continuam lá. O ataque à liberdade, à iniciativa privada, à concorrência. À espera de uma oportunidade.”
De entre os que veem na evolução do Bloco um movimento no sentido da real normalização destaco a opinião de Luis-Aguiar Conraria, publicada no mesmo bloco de textos do Observador – 8 opiniões rápidas sobre o futuro do Bloco –, onde escreve: “É um partido a fazer muito rapidamente a evolução de partido de protesto para partido institucional. Claro que há alguns militantes que se sentem órfãos, com algumas correntes a queixarem-se da perda de radicalidade do Bloco, mas são correntes com cada vez menos água. Temas que antes eram tidos como essenciais ‒ como um governo que, como o italiano, enfrente a ditadura orçamental de Bruxelas ‒ são agora suavizados ou até esquecidos. O BE almeja ser o partido anti-sistema do sistema.”
Num texto onde dá conta de como se comportaram as várias correntes na convenção, São José Almeida, no Público, sustenta que O cimento do poder não colou o BE: “O discurso anti-sistema e de contrapoder está atenuado na atitude dos principais dirigentes bloquistas. As críticas à União Europeia são em tom mais suave e matizadas pela perspectiva explícita que a direcção do partido tem de ampliar a sua capacidade de influenciar o poder executivo e legislativo no próximo ciclo eleitoral. A experiência de três anos de partilha do poder, devido ao acordo parlamentar que estabeleceu com o PS — assim como o PCP e o PEV — para afastar o PSD e o CDS do Governo e levar o líder socialista, António Costa, à chefia do Conselho de Ministros, deu ao BE uma perspectiva pragmática da política que ficou visível nesta convenção.”
É também de analista político o olhar de Martim Silva no Expresso Diário, em O Bloco está mortinho por ir para o governo (e isso é uma fraqueza, não uma força). Depois de constatar que “Três anos depois da criação da geringonça, o Bloco é mesmo o partido que mais parece enamorado com esta nova realidade. Enquanto o PS vai afirmando que o que correu bem deve ser continuado. Enquanto o PCP e Jerónimo repetem a tal cassete eterna do verdadeiro governo de esquerda, os bloquistas atiram-se de cabeça”, nota que “é o Bloco quem mais tem a perder nesta altura. O PS já sabe, com um ano de antecedência, que tem ali uma muleta. Basta precisar dela. Com esta confissão, quem perde poder negocial é o Bloco. No fim de contas, o que parecia uma afirmação de força e de crescimento de um partido, não passa de um reconhecimento da sua fraqueza.”
Regressando ao Observador e a mais um dos textos reunidos em 8 opiniões rápidas sobre o futuro do Bloco passo a palavra a Miguel Pinheiro pois ele retrata bem como esta estratégia de se querer apresentar como um partido de governo se tornou mesmo na “grande obsessão na cabeça dos altos dirigentes do BE ao longo desta convenção era apenas saber: “Qual de nós vai para o Governo? E para que pasta?”. A lista, como mostrou o Observador, já existe. Até ver, o radicalismo de esquerda quer mostrar que vestiu as pantufas. Até ver.”
Ora “O problema é que, por muito que mudem a sua imagem de partido de protesto para partido mais respeitável, por muito azul que coloquem como enquadramento do palco para as televisões, o extremismo natural do Bloco está sempre presente”, notou Luís Rosa, ainda no Observador, em “Rui Rio” é a password para o sucesso (ou insucesso) do Bloco de Esquerda. Destaco neste texto sobretudo as passagens em que o autor nota a forma como os dirigentes do BE, e Louçã em particular, têm sido selectivos nos casos de corrupção que apontam a dedo, algo que não farão por acaso, sobretudo por omitem regularmente o mais importante de todos: “Porque Louçã sempre soube que a Operação Marquês colocaria em xeque o PS. O ex-líder do BE sabe que um PS eleitoralmente fragilizado e marcado pela corrupção (como o PT no Brasil), pode beneficiar o Bloco mas beneficiaria muito mais o centro/direita e catapultaria o PSD e o CDS para muitos anos no Governo.”
Encerro por isso este Macroscópio com uma leitura mais política da actual estratégia dos bloquistas, tal como analisada sem paninhos quentes por Rui Ramos quando responde à questão que ele próprio se colocou: Onde está a moderação do Bloco? E à qual responde recapitulando os sinais políticos que nos chegaram da Convenção e da linguagem aí usada pelos dirigentes do BE: “No Portugal venezuelano dos bloquistas, a direita não tem lugar: “não conta para o futuro do país”. É apenas um bando de “rufias” contra os quais o Bloco se propõe erguer uma “barreira de aço”. A linguagem é significativamente soviética: tal como na URSS de Lenine, Trotsky e Estaline, os que não alinham são “rufias” (“elementos anti-sociais”). O “aço” é outra imagem desse mundo: também aparecia, por isso, na cantiga gonçalvista do Verão de 1975 (“Força, força, companheiro Vasco, nós seremos a muralha de aço”).” Daí a conclusão inevitável: “Não, o Bloco não está mais moderado: está até muito mais radical na rejeição do pluralismo político. Antes, atacava as “políticas de direita”. Agora, ataca a ideia de que possa haver uma “direita”.
É costume dizer que o diabo está sempre nos detalhes, e só é pena que tantos deem tão pouca atenção a esses detalhes – sejam eles as passagens programáticas com a rigidez de sempre, sejam eles as novas derivas linguísticas tão reveladoras do que realmente vai na alma dos deputados que ainda se sentam na bancada mais à esquerda na Assembleia e, que se saiba, ainda não pediram para mudar de lugar.
De resto, tenham um bom descanso, mas não deixem de estar alertas aos sinais dos tempos, mesmo os que se disfarçam.
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